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Caso Ricoy: “O Brasil permite que um rapaz negro possa ser tratado como selvagem”, afirma historiadora

Para especialistas em História, caso de racismo, ocorrido em julho deste ano, remonta o período escravagista no Brasil

5 de setembro de 2019

Texto: Lucas Veloso Edição: Pedro Borges

Em julho, um menino de 17 anos tentou furtar uma barra de chocolate na rede de mercado Ricoy. Os funcionários, responsáveis pela segurança do local, amarraram o garoto, o amordaçaram, tiraram suas roupas e o agrediram com chicotadas.

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No vídeo, que circulou nas redes sociais, o menino negro tenta reagir às agressões com a voz abafada. Enquanto isso, os funcionários gritam ameaças de morte, obrigam o menino a dar a mão para ser agredida, gargalham e filmam o episódio. Enquanto riem, o menino delira com as chicotadas.

A historiadora e pesquisadora em criminologia, Suzane Jardim acredita que a filmagem reforça a diferença no tratamento e punição dado a jovens brancos e negros na sociedade.

Ela cita que, em 1830, a Constituição Imperial proibiu a tortura nas prisões e os castigos físicos como pena. Após a decisão, todo criminoso deveria passar pelo processo penal e ser penalizado com a cadeia, mas a regra só valia para os homens livres. Os escravos ainda podiam ser castigados e penalizados com a morte diante da constituição.

Na época, havia a crença de que o escravo não tinha a mesma moral e ética, sendo assim, passar pelo processo penal e pela prisão não o iria regenerar, já que os escravizados ‘não eram considerados seres humanos’ para entrarem nessa lógica.

“Vendo o mundo de hoje, essa diferenciação escravocrata ainda está muito presente – o infrator branco, de fora da periferia, é pego na mesma situação e jamais açoitado porque a humanidade dele é reconhecida”, defende Suzane. “Já o infrator negro, pode ser tratado com selvageria por se crer que sua origem é também selvagem”, completa a especialista.

O inquérito sobre o caso foi instaurado pelo delegado Pedro Luiz de Sousa, do 80º Distrito Policial, na Vila Joaniza, segundo a Secretaria da Segurança Pública.
O jovem agredido vive em situação de rua, desde os 12 anos, e no depoimento afirmou que recebeu ameaças de morte enquanto apanhava.

De acordo com o delegado Pedro Luis de Sousa, os agressores serão indiciados pelo crime de tortura. Segundo o delegado, o vazamento do vídeo seria um “recado” para eventuais praticantes de furtos no supermercado.

Os responsáveis pelo comércio devem ser ouvidos nos próximos dias. A investigação quer saber se existiu concordância direta com as agressões sofridas pelo menor de idade.

Joice Aziza de Mendonça, historiadora e professora na rede estadual de São Paulo lamenta o caso e a maneira de como os negros são tratados no país. “É lamentável que mesmo tendo se passado mais de um século da assinatura da Lei Áurea 1888 – marco oficial da libertação da escravidão -, o corpo negro seja visto, como um objeto, não como humano”, critica. “Neste país, devido ao racismo, todos os indivíduos têm o direito de escolher qual a punição devida para uma pessoa de pele retinta”, complementa a professora.

Para Suzane, o atual sistema punitivo mantém seletividade das pessoas, onde os negros ainda são vítimas das violências institucionais. “O corpo negro jamais perdeu seu lugar de estranho e de potencialmente perigoso nesse mundo de ‘cidadãos de bem’, que fazem uso da selvageria achando que isso é garantir sua segurança e proteção”, argumenta.

A gestora da ONG Pólo Cultural Lar Maria & Sininha e Yalorixá, Rita Luciana Bispo mora na região do episódio. Segundo ela, o viés racial foi determinante para que houvesse o tratamento agressivo. “O segurança que chicoteia hoje fica feliz porque se tornou capataz. Eles torturam com a certeza de que nada acontecerá. E isso passa pela omissão do Estado”, pontua.

“O que ocorreu ao jovem negro, que podia ser meu filho, é mais um caso de racismo que o Brasil finge não ver e não existir”, define Joice. “Nossa ‘democracia racial’ é tão surreal, que se o mesmo tivesse ocorrido com um jovem branco, ele não teria passado pela tortura”.

Ainda de acordo com a Yalorixá, é importante que a sociedade se atente às recorrentes violações e violências sofridas por meninos negros nas periferias. “A violência nos mercados não é novidade, mas o que fizemos pra mudar isso? Há o cuidado pro menino não ser assassinado depois dessa divulgação?”, questiona.

“O episódio é monstruoso. Não é novela ou filme. Falo no lugar de mãe, cidadã e gestora que há uma impotência em saber que, infelizmente, isso vai voltar a acontecer”, conclui.

Entidades do movimento negro planejam uma manifestação em repúdio ao caso. O ato será no próximo sábado, dia 7 setembro, em frente ao estabelecimento, na avenida Yervant Kissajikian, Vila Joaniza, Zona Sul de São Paulo. Os manifestantes alegam a necessidade de fortalecer a luta contra o racismo e a prática de tortura.

Segundo a Lei Federal 9.455, de 1997, a tortura ocorre quando uma pessoa é submetida, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental. A pena prevista para o crime é de 2 a 8 anos.

Outro lado

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da rede se recusou a responder as questões sobre a quantidade de negros que trabalham na rede, quais são as orientações dadas aos seguranças quando há casos de furto dentro das unidades e se há formação para os funcionários sobre o tratamento dispensado aos clientes, independentes da cor de sua pele.

Por outro lado, o Ricoy enviou nota oficial onde lamenta o ocorrido, diz que valoriza o ser humano com os mais rígidos princípios de respeito. O texto também diz que um funcionário foi indicado a prestar depoimento e colaborar com o caso. O Ricoy também disse que os acusados pelas agressões foram demitidos e uma assistente social vai acompanhar a vítima e a família.

Suzane acredita que avaliar as medidas tomadas pela rede, após o ato cometido, é um desafio. “Uma cena de tamanha barbárie nunca vai parecer reparada para gente que entende o absurdo presente nela”, comenta.

“Entretanto temos um histórico onde os estabelecimentos simplesmente demitem o funcionário sem pensar na vítima. Neste caso, há de fato alguma evolução, a partir do momento que uma assistência a vítima é oferecida, pois é ela o ponto central do caso”, analisa.

“Só a demissão dos agressores, não é uma ação eficaz. Os responsáveis pela empresa Ricoy precisam criar estratégias para que ações como essas não venham a ocorrer novamente”, defende Joice.

A especialista também observa que punir o funcionário, sem pensar na vítima, e sem adotar estratégias para que toda a equipe entenda que isso não deve acontecer – não por medo de demissão, mas por entender que as atitudes ferem a dignidade humana – tende a não resolver a questão.

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