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Sarah Baartman: como a história da gordofobia está atrelada ao racismo?

A exposição da escravizada Sarah Baartman é considerada a raiz da gordofobia contemporânea, pois a ideia social da época era repelir tudo que se assemelhasse à figura negra, grande e corpulenta

Imagem: Reprodução/SPL

Foto: Imagem: Reprodução/SPL

5 de setembro de 2022

Segundo a socióloga norte-americana Sabrina Strings, a raiz da gordofobia contemporânea é o racismo. Em seu livro premiado, “Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia” (“temendo o corpo negro: as origens raciais da gordofobia”, em tradução literal), a pesquisadora pontua um traço da história pouco estudado sobre a transformação das ideologias europeias americanas em direção ao medo do sobrepeso e, sobretudo, da similaridade com o povo negro.

Sob a análise de Sabrina Strings, a gordofobia é anti-negritude devido ao ódio moderno à gordura, que nasce na época da colonização e do tráfico de pessoas vindas do continente africano. A escravização e a remoção forçada de africanos para a Europa e as Américas exigia uma nova forma de racialização, segundo a socióloga, para criar uma ideia de branquitude totalmente oposta ao que era negritude dos escravizados.

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A professora Maria do Carmo Santana, mestre em história, pontua que o marco para esse afastamento da branquitude do que era considerado gordo nasce com a escravizada Sarah Baartman, mulher negra exposta enquanto atração exótica.

“Ela [Sarah Baartman] era negra, retinta, corpulenta, com pernas grossas e corpo volumoso. A violência que Sarah sofreu sendo exposta resultou neste horror que os corpos gordos sofrem até hoje e com certeza é a raiz da gordofobia, pois tudo que Sarah representava tinha que ser expurgado da sociedade da época”, comenta a historiadora à Alma Preta Jornalismo.

Sarah Baartman

A escravizada Sarah Baartman nasceu na Província Oriental do Cabo da África do Sul em 1789. Sua mãe morreu quando ela tinha dois anos e seu pai, um criador de gado, morreu quando ela era adolescente.

Ela começou a trabalhar como empregada doméstica na Cidade do Cabo quando um colono holandês assassinou seu companheiro, com quem havia tido um bebê que também morreu. Em outubro de 1810, apesar de ser analfabeta, ela supostamente assinou um contrato com o cirurgião inglês William Dunlop e o empresário Hendrik Cesars, dono da casa em que ela trabalhava, que disse que ela viajaria para a Inglaterra para aparecer em espetáculos.

Quando ela foi exibida em um estabelecimento em Piccadilly Circus, em Londres, causou fascinação. “É preciso lembrar que, nesta época, nádegas grandes estavam na moda, e por isso muitas pessoas invejavam o que ela tinha naturalmente”, diz Rachel Holmes, autora de “A Vênus Hotentote: vida e morte de Saartjle Baartman”, à BBC.

O motivo para isso é que Baartman tinha esteatopigia, que é uma condição genética que faz com que a pessoa tenha nádegas protuberantes devido à acumulação de gordura. Essa condição é mais frequente em mulheres e, principalmente, entre aquelas de origem africana.

A comparação entre Vênus | Créditos: London MuseumA comparação entre Vênus | Créditos: London Museum

No espetáculo, Baartman usava roupa justa e da cor da sua pele, contas e plumas e fumava um cachimbo. Clientes mais abastados podiam pagar por demonstrações privadas em suas casas, em que era permitido que os convidados a tocassem.

Nesta época, o império britânico já havia abolido o tráfico de escravos (em 1807), mas não a escravidão. Mesmo assim, ativistas ficaram horrorizados com a forma como os empresários de Baartman a tratavam em Londres.

Baartman morreu aos 26 anos de idade, em 29 de dezembro de 1815. A causa foi descrita como uma doença inflamatória e eruptiva. Desde então, cogita-se que tenha sido resultado de uma pneumonia, sífilis ou alcoolismo.

Seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo exibidos em um museu de Paris até 1974. Seus restos mortais só retornaram à África em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.

“O que Baartman sofreu é talvez o maior indício de que a gordofobia e racismo são lados da mesma moeda, pois ela foi alvo de dois preconceitos em que um complementava o outro”, destaca a historiadora Maria do Carmo.

Demonização do corpo e da cor

O que a socióloga Sabrina Strings demonstra em sua obra é que as ondas subsequentes de formação racial – em que a branquitude emergiu e se consolidou – não envolveram apenas a demonização da pele negra, mas também contaram com a identificação da gordura como característica própria da feminilidade negra, considerada excessiva e inferior.

“Então a gente pode pensar que um corpo gordo se torna uma categoria para ser negro, relacionando o físico a tudo que era mal visto, como burrice, ignorância, entre outros aspectos que os brancos associavam aos povos negros escravizados”, pontua Maria do Carmo.

Contudo, a socióloga norte-americana enfatiza que nem sempre foi assim, começando com pintores da Alta Renascença como Albrecht Dürer e Peter Paul Rubens, da era pré-escravagista, momento que, de certa forma, remodelou o imaginário social europeu. No momento destacado, as Vênus brancas e bem torneadas eram valorizadas e a gordura, preferida.

“Mas as preferências estéticas começaram a mudar ao longo da paisagem em mudança de cidades europeias como Antuérpia e Veneza, que estavam passando por dramáticas transformações demográficas e econômicas com o crescente comércio de escravos. As mulheres negras se tornaram cada vez mais presentes nas representações dos artistas, mas eram representadas como servas magras e doentias, vistas como inferiores”, destaca a historiadora Maria do Carmo.

O caminho para a gordofobia

No século XVI, com a escravidão e a colonização em pleno vigor nas Américas, o trabalho extraído deu lugar aos recursos extraídos, principalmente o açúcar. A reconfiguração das dietas européias e a acessibilidade em massa do “ouro branco” significaram mudanças nas formas do corpo e ansiedades repentinas em torno da gordura, principalmente entre a população masculina, segundo Strings.

“É durante o início do Iluminismo que vemos pela primeira vez a magreza admirada como um sinal de racionalidade. Intelectuais consternaram a corpulência como indicativa de estupidez, com o consumo excessivo sendo visto principalmente como um obstáculo ao pensamento superior”, destaca Strings em sua obra.

Segundo a professora Maria do Carmo, isso foi reforçado pelo contexto pós-reforma em que a autorregulação se torna a chave para o cultivo da moralidade, em que a gula era “um pecado a ser evitado”.

Mas foi só no final do século XVII que a gordura se tornou um recurso para a categorização racial. Os escritos dos primeiros cientistas raciais, como George Cuvier, JJ Virey e Georges-Louis Leclerc, estabeleceram ligações diretas entre a gula, a estupidez e as características dos africanos, cuja ociosidade era atribuída ao seu clima quente.

Logo, o racionalismo elevou a comida ao plano moral necessário para a busca intelectual. “Ou seja, aquele físico magro, por ora preterido, deixou de ser um sinal de doença para uma evidência da superioridade moral e intelectual dos europeus, apoiada pelos escritos de antropólogos e naturalistas que buscavam codificar e biologizar uma hierarquia racial”, ressalta Strings.

Nova estética

À medida que o século XIX deu origem ao império americano, também veio o total desprezo à figura da mulher negra gorda, de acordo com a obra de Sabrina Strings. O ideal magro da feminilidade americana branca era endossado por artigos que ligam diretamente a gordura ao lado selvagem das pessoas vindas da África, consideradas deformadas fisicamente na época.

“Em um esforço para definir o ideal de beleza americana e, assim, sustentar a supremacia branca sobre imigrantes e africanos escravizados, a magreza cresceu como um índice de distinção racial e de classe”, pontua Maria do Carmo.

A socióloga Sabrina Strings, ao lado de seu livro “Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia”, que discute a relação entre gordofobia e racismo.A socióloga Sabrina Strings, ao lado de seu livro “Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia” | Foto: Steve Zylius/UCI

Strings deixa claro como os legados da escravização e genocídio africanos que solidificaram a supremacia branca global se basearam em processos de racialização que inferiorizam os corpos das mulheres negras como excessivamente sensuais e grandes.

“Sem entender como a gordofobia surgiu em resposta à escravidão e para solidificar a branquitude como um fenômeno corporal, não podemos entender como nossa obsessão contemporânea pela magreza está enraizada na anti-negritude”, avalia Maria do Carmo.

“A manifestação mais atual da gordofobia institucionalizada em torno da ‘obesidade’ como uma crise de saúde pública é profundamente dependente das mesmas ideologias que os cientistas raciais europeus usaram para construir a gordura como indicativa da preguiça do corpo, da mente e do espírito”, completa a mestre em história.

Corpo atual

Segundo Strings, os corpos das mulheres negras continuam sujeitos à repugnância até os dias de hoje, mesmo após evidências significativas de que o estigma do peso – e não o peso em si – constitui um sério risco à saúde mental das pessoas alvos da gordofobia.

Créditos: Marcha das Mulheres GordasCréditos: Marcha das Mulheres Gordas

“As apostas desse debate em torno da ‘obesidade’ são, portanto, exponencialmente maiores para as mulheres negras, mas os debates sobre o racismo médico raramente abordam a gordofobia. Como tal, é possível perceber uma anunciada compreensão da relação entre supremacia branca e supremacia magra”, destaca a professora Maria do Carmo.

A pesquisa de Strings mostra que a medicina ocidental sempre se baseou na brutalização e desumanização dos negros, que muitas vezes eram submetidos à força a pesquisas médicas e cirurgias sem anestesia sob o pretexto de “descoberta científica”. A aversão contemporânea às pessoas em corpos grandes é, portanto, fruto desses processos históricos de objetificação da gordura como sinal de inferioridade racial.

Em entrevista ao podcast Food Psych (episódio 196), Strings avalia que a razão para a gordofobia afetar as mulheres brancas é porque a gordofobia está relacionada à anti-negritude.

“É muito importante que as mulheres brancas não sejam gordas. Portanto, há uma maneira pela qual a gordofobia, sendo um índice de anti-negritude, prejudica muito diretamente as mulheres brancas na América contemporânea”.

A professora e mestre em história Maria do Carmo afirma que a pesquisa de Strings fornece uma riqueza de evidências empíricas que demonstram as razões que endossam a obsessão contemporânea pela magreza. Para ela, a gordura foi objetificada como um sinal de inferioridade racial e essa relação entre racismo e gordofobia deve ser discutida amplamente nos mais diversos espaços.

“Sabe esse desejo de ser magro a todo custo? Isso é racista. É importante nomear sim, para que isso gere incômodo e, consequentemente, movimentos”, finaliza.

Leia também: ‘Setembro Amarelo: quem olha para a saúde mental das mulheres negras?’

  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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