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“Se fosse com qualquer outro nicho, haveria um cuidado maior”, destacam trancistas sobre pomadas modeladoras

Diversos relatos denunciam as reações graves, inclusive cegueiras, provocadas após uso de produtos para modelar penteados
A colagem mescla fotos de olhos inchados e de pomadas modeladoras.

Foto: I’sis Almeida/ Alma Preta Jornalismo

20 de janeiro de 2023

Por: Fernanda Rosário

Casos leves ou graves de irritação ocular, sensação de queimadura nos olhos, inchaços e cegueira. Esses são os principais sintomas relatados por pessoas que tiveram efeitos adversos após o uso de pomadas modeladoras para cabelos. Trancistas e especialistas ouvidos pela Alma Preta Jornalismo relatam a necessidade de que haja maior culpabilização das marcas e fabricantes responsáveis pelas pomadas em vez de uma responsabilização sobre as profissionais e pessoas que realizam os penteados.

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Essas pomadas fazem parte dos produtos utilizados por algumas trancistas e outros profissionais na realização de penteados. O uso dos produtos para trançar cabelo ou fazer baby hair também é um hábito que se tornou comum entre mulheres negras nos últimos anos.

A advogada Carolina Pinto, fundadora – junto com a química Taynara Alves – do RAS, salão especializado em tranças afro, critica a maneira como a temática é tratada, sobretudo em meios de comunicação, como um problema especificamente das tranças.

“Esse tipo de produto não é criado só pra fazer trança, as pessoas estão muito associando a isso, mas, na verdade, você usa pra fazer qualquer outro tipo de penteado e tem em qualquer outro tipo de salão, mas a gente sabe que, por conta de todo esse racismo estrutural, estão falando que é um problema especificamente das tranças”, comenta a empresária.

Segundo a advogada, a denúncia e a responsabilização dos efeitos adversos graves que estão acontecendo devem ser associados aos fabricantes, que devem ser cobrados e culpabilizados. Ela relata que teve uma cliente que sofreu uma reação nos olhos após o uso de pomada da marca Be Black utilizada na produção das tranças. O salão prestou todo o suporte à cliente com abertura de reclamação para a empresa da pomada, mas não tiveram nenhum respaldo ou apoio, inclusive para arcar com os custos de medicamentos para a vítima.

“Abrimos uma reclamação formal na Anvisa junto com outras pessoas e acho que uma ou duas semanas depois da nossa denúncia, a Anvisa soltou comunicado sobre o assunto”, explica.

Carolina Pinto conta que optou por seguir com a reclamação, porque acha que há um descaso muito grande com todo o setor na situação, considerando que este é um problema que já aconteceu em outros anos e não houve nenhuma solução mais eficaz.

“Eu vejo que se fosse com outras pessoas ou se fosse com qualquer outro nicho haveria um cuidado maior por parte dos fabricantes. Quando a gente vê quem está prejudicando, quem são os usuários e quem são as vítimas, a gente percebe que não tem uma preocupação tão grande em resolver esse problema”, acrescenta.

Segundo a doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio Luane Bento, diretora e roteirista do curta Memórias Trançadas (2022), o racismo pode ser encontrado na falta de fiscalização dos órgãos competentes sobre a produção em larga escala dos produtos e sobretudo no processo de culpabilização das trancistas, trançadeiras e cabeleireiras afro/étnica.

“Nas redes sociais e em outros veículos de comunicação, as cobranças são feitas em cima das profissionais que realizam os trançados e não dos empresários e industriais que produzem e não ofertam um produto seguro e que não seja nocivo a saúde das pessoas”, explica Luane, que escreveu a tese de doutorado “Trancista não é cabeleireira!”: Identidade de trabalho, raça e gênero em salões de beleza afro no Rio de Janeiro,

“Outro dado relevante é que produtos cosméticos voltados para a textura dos cabelos crespos e cacheados são recentes no mercado. De modo geral, produtos para a população negra. Contudo este fato não significa que a indústria fará com responsabilidades”, também comenta Luane.

Conheça alguns casos

Com o final do ano, explodiram a repercussão de centenas de casos de efeitos adversos adquiridos após o uso de diferentes marcas de pomadas. A influenciadora de humor e beleza Bielle Elizabeth foi uma das vítimas que expôs a situação. Ela contou como passou por momentos de desespero quando chegou a perder 100% da visão após fazer uso da pomada modeladora para fazer baby hair, Feirão dos Cabelos. O produto escorreu para seus olhos após ela pegar chuva ao ir a um evento.

Publicação BielleCrédito: Reprodução/Instagram Bielle

A estudante de Psicologia Kelly Clécia, natural de Ituberá/BA, também relatou que foi parar na emergência oftalmológica após fazer uso de outra pomada modeladora para cabelos, de uma marca chamada Studio Hair, e tomar chuva com a ida a um festival. “A água estava escorrendo pelo meu rosto e meus olhos começaram a arder muito, como se tivesse queimando”.

Ela relata que, ao ir à emergência dois dias depois, o médico relatou que havia outros casos semelhantes ali. “O médico disse que meus olhos estavam lesionados e que era devido à pomada que escorreu do cabelo”.

Daiana Freire Costa, de Salvador/BA, também fala sobre a dor e o abalo emocional que sofreu após utilizar a pomada modeladora Cristal, da Ser Mulher, que chegou aos seus olhos após chuva no começo de novembro de 2022. Até hoje ela tem a visão afetada.

“Tomei chuva e a química escorreu nos meus olhos durante a micareta de Daniela Mercury, no Wet’n Wild, em Salvador. Era um sonho que estava realizando neste dia e, de repente, vi ele acabando por conta de uma química tão forte que me trouxe cegueira temporária. Não tinha recursos pra ir a micareta de Daniela, mas como era um grande sonho, consegui com muitos esforços o abadá, mas não pude ver o show”, conta.

Kelly e DaianaReações nos olhos de Kelly e Daiana | Crédito: Acervo pessoal

No Rio de Janeiro, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, 195 pessoas tiveram lesões nos olhos depois de terem contato com a pomada modeladora Cassu Braids, produzida pela empresa Microfarma, no período entre 26 de dezembro de 2022 e 2 de janeiro deste ano.

A pomada chegou a ter a sua venda proibida pela Secretaria Municipal de Saúde e o Instituto Municipal de Vigilância Sanitária do Rio e a proibição de comercialização e produção pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A empresa não estava devidamente regularizada para fabricar esse tipo de produto, de acordo com informações da Agência Brasil.

Proibições pela Anvisa

Após a repercussão dos casos e as séries de denúncias realizadas, a Anvisa cancelou a autorização de fabricação de algumas marcas de pomadas modeladoras neste mês de janeiro.

Foram elas: Pomada Modeladora para Tranças Anti-frizz Be Black (da empresa Cosmetic Group Indústria e Comércio de Cosméticos Eireli); Pomada Black – Essenza Hair, e Pomada Modeladora para Tranças Boxbraids – Fixa liss (ambas da Evolução Indústria de Cosméticos); Pomada Braids Hair (da Galore Indústria e Comércio de Cosmético Eireli); Pomada Cassu Braids Cassulinha Cabelos e Pomada Braids Tranças Poderosas Esponja Magic (ambas da Microfarma Indústria e Comércio); Rosa Hair Pomada Modeladora Mega Fixação 150g (da Morandini Indústria e Comércio de Cosméticos); Pomada Modeladora Master Fix Black Ser Mulher (da Supernova Indústria, Comércio e Serviços).

Na última quinta-feira (19), mais quatro marcas tiveram a restrição determinada pela Anvisa. Entre as medidas tomadas estão o recolhimento, interdição cautelar, suspensão e proibição da comercialização, distribuição, fabricação e uso; conforme cada caso, de acordo com o G1.

Foram elas: Pomada Modeladora Master Hair; Pomada Modeladora Be Black; Pomada Capilar Incolor Elfa; além de Pomada Capilar Condicionante Modeladora Fixadora Studio Hair Tranças Muriel/ Studio Hair Onduladas Muriel/ Fixadora Studio Hair Tranças Muriel/ Condicionante Modeladora Studio Hair Extra Forte Muriel.

“Para os produtos das outras empresas, a Anvisa está avaliando as ações sanitárias necessárias. Ressalta-se que a Agência segue acompanhando todos os fatos relatados com relação às pomadas capilares e conta, também, com a atuação dos órgãos de vigilância sanitária dos estados e municípios, de modo que todos os produtos envolvidos com os relatos de problemas de visão estão sendo investigados”, informou a Agência.

Mais preocupação com o consumo

Caroline Pinto conta que diante dos receios de ter as reações e da preocupação observada pelas clientes, têm optado por oferecer informação e avaliar se os produtos que compra são regularizados.

“A pomada, infelizmente, é uma coisa que a gente precisa usar, porque ela faz parte da execução do trabalho. Eu acho que a gente seguiu muito mais por um lado educativo. O fato da gente ter se posicionado também sobre isso logo no começo, acabou passando uma certa segurança para as nossas clientes. A gente sempre está passando instrução também para quando a cliente termina de fazer a trança, sobre lavar em até dois dias, tomar cuidado com a região dos olhos”, explica Caroline.

A trancista Juliana Guedes, empreendedora no Salão Beauty Hair, também explica que as pomadas fazem parte do seu dia a dia na produção da trança para deixá-la mais modelada e com durabilidade, mas segue atenta para verificar se são produtos regularizados e alerta as clientes sobre os cuidados sobretudo com os olhos.

“Oriento também o cliente para que o uso em casa e o uso no salão seja básico, tão somente para modelar mesmo a trança. Então não precisa passar a pomada modeladora no couro cabeludo, porque isso realmente pode trazer malefícios. Oriento também o cliente sobre os cuidados quando for fazer a primeira lavagem”, explica.

A advogada e empresária Caroline Pinto também ressalta a necessidade de que haja mais produtos específicos para o setor das tranças e penteados e que observem com mais atenção se os itens de sua composição não causam reações sérias à saúde.

“Se a gente pegar um xampu ou qualquer outro produto, por mais que caia no olho e arda, isso não vai te dar uma cegueira temporária, você vai ficar ali no máximo com uma irritação. A gente entende que a pomada, por exemplo, é um produto que se ela fosse feita direcionada para isso, deveria ter um efeito parecido”, comenta.

A química Taynara Alves, do RAS, complementa que esses produtos ficaram mais em alta após o sucesso das barbearias e muitas pomadas capilares vendidas são fabricadas com base nos componentes de modeladores para a barba. “A gente está falando de uma outra parte do rosto que, com certeza, vai trazer muito menos risco e efeitos para os olhos”, comenta.

A cosmetóloga Samara Castro, fundadora da Maat Neter, destaca que é possível observar alguns componentes em comum nas pomadas modeladoras industrializadas, como álcool e parabenos, que podem estar associados aos casos de reações adversas em contato com os olhos.

Samara Castro Maat NeterSamara Castro e os produtos naturais da Maat Neter | Crédito: Acervo pessoal

“Eu acredito que o surgimento dessas pomadas vem muito pela afirmação das pessoas negras e do capitalismo vendo essa ascensão. Então criaram esses produtos os direcionando para o público preto, mas não há nenhum insumo que possa valorizar aqueles fios como eles são de verdade”, comenta a cosmetóloga.

De acordo com Samara, a troca das pomadas sintéticas por produtos modeladores mais naturais é um caminho para quem opta por fazer os penteados com fixadores. “O resultado de uma pomada modeladora sintética industrializada é o mesmo ou muito similar ao resultado de uma manteiga de cacau, uma manteiga de cupuaçu e um óleo vegetal de coco. Então eu acredito, sim, que a gente possa substituir o uso dessas pomadas convencionais para pomadas naturais”, explica.

Além disso, Samara acrescenta a importância da cosmetovigilância ao utilizar as pomadas modeladoras e outros produtos capilares. “A cosmetovigilância é a observação e o monitoramento dos relatos de pessoas que tiveram contato e experiência com determinados produtos. Ela é muito necessária pra gente poder controlar a qualidade do nosso produto e, se surgir alguma reação adversa, podermos também tomar medidas mais ligeiras e bem sucedidas”, complementa.

A doutora em Ciências Sociais Luane Bento também alerta que quando fez o estudo de doutorado, muitas trancistas relataram ter contraído alergias no pulso, ficando sem esmaltes nas unhas pelo uso das pomadas.

“Então para se proteger é ideal que leiam o rótulo do produto e, caso não encontre autorização da Anvisa, é melhor voltar a trabalhar sem pomada ou substituir o produto por gel. Conheço muitas trancistas que não usam pomadas. Também penso que as trancistas devem deixar explícito para seus clientes se utilizam pomadas regulamentadas ou não regulamentadas”, finaliza.

A Anvisa disponibiliza um canal de consulta de produtos regularizados (acesse aqui) e um canal para a consulta de produtos que constam como irregulares (acesse aqui). Além disso, a Agência solicita que a ocorrência de quaisquer efeitos indesejáveis à saúde supostamente relacionados com o uso de produtos para trançar/modelar os cabelos ou de outros produtos cosméticos deve ser registrada aqui, para cidadão e profissionais que manejam produtos cosméticos, e aqui, para empresa e profissionais da saúde.

Posicionamentos

Após a repercussão, algumas marcas chegaram a publicar posicionamentos em suas redes sociais. A marca Feirão de Cabelos publicou que “apesar da pomada estar autorizada pela Anvisa para venda, por mera liberalidade, retiramos momentaneamente de comercialização, até que se esclareça tudo referente aos últimos acontecimentos”. Também afirmaram que “somente retornaremos à comercialização do produto após os resultados dos testes que estão sendo realizados pela vigilância sanitária, através da Fiocruz”.

Nesse mesmo sentido, a marca Be Black (produzida pela Be Factory Laboratories) informou que decidiram retirar as pomadas de comercialização até terem esclarecimentos da Anvisa, mesmo ela estando aprovada e não ser a mesma que está sendo vendida atualmente.

A Cassulinha Cabelos, distribuidora da marca Cassu Braids, também publicou um posicionamento nas redes sociais afirmando que o ocorrido não diz respeito à Cassulinha Cabelos, mas à Microfarma, empresa a qual empregaram o serviço de produzir as pomadas. Também publicaram um vídeo relatando o ocorrido e sobre a atenção que se deve ter às orientações de uso das pomadas modeladoras.

A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com representantes dos produtos das marcas Studio Hair e Ser Mulher, mas, até o fechamento do texto, não teve um retorno. Caso uma resposta seja enviada, o texto será atualizado.

Leia também: Como as laces mudaram a forma das mulheres negras se relacionarem com seus cabelos?

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