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“Se fosse um padre branco, a mão não teria pesado”, diz sacerdote afastado por abençoar casais homoafetivos

Padre Assis Tavares é cabo-verdiano teve o uso de ordem sacerdotal suspenso pela Arquidiocese de São Paulo 

Foto: Orlando Júnior/Prefeitura de Franco da Rocha

Foto: Foto: Orlando Júnior/Prefeitura de Franco da Rocha

20 de dezembro de 2022

“O que eu fiz, para eles, foi ter infringido a lei da Igreja, mas não a lei de Jesus Cristo, que acolhe todo mundo”, desabafa padre Assis Tavares, suspenso pela Arquidiocese de São Paulo após participar de um casamento coletivo e, junto com outros líderes religiosos, abençoar casais, incluindo três casais homoafetivos.

Natural do Cabo Verde, país no noroeste da África, padre Assis Tavares atua na Arquidiocese de São Paulo há dez anos e no último mês foi alvo de uma denúncia de que teria realizado um casamento gay durante a 15ª edição do casamento comunitário realizado em outubro pela Prefeitura de Franco da Rocha, na região Metropolitana de São Paulo.

Homem preto, com dreadlocks, imigrante e pan-africanista, padre Assis analisa que a sua presença incomoda a Igreja Católica e define a decisão da Arquidiocese como racista e homofóbica. “Eu acho, de verdade, que se fosse um padre branco, padrão, a mão não teria pesado assim. A gente conhece casos que fazem pior, mas não são penalizados assim”, diz o padre.

Com a decisão, o padre Assis Tavares fica suspenso de celebrar sacramentos e exercer funções sacerdotais. Vale ressaltar que a medida é válida apenas para a comarca de São Paulo, ou seja, ele continua sendo padre e pode atuar em outros estados.

De acordo com a Arquidiocese, a medida se deu por um “possível delito canônico” por simulação de matrimônio e por uma possível infração das normas eclesiásticas. Segundo a Arquidiocese, o padre deveria ter a permissão do pároco local para realizar a celebração e os casais deveriam ter passado por um processo, dentro das normas eclesiásticas, para verificar se os casais estavam aptos para a realização do matrimônio.

“Vale ressaltar que o fato ocorrido não consistiu apenas em uma benção dada às pessoas individualmente, que, certamente, não pode ser negada a ninguém que a pede. O que houve, na verdade, foi uma bênção às uniões civis ali realizadas. As pessoas presentes desejavam se casar e não apenas receber uma bênção. A Igreja tem o Matrimônio como um dos seus sacramentos e não permite que sejam dadas ‘simples bênçãos’ que possam levar os casais a crerem ter contraído Matrimônio católico”, diz a Arquidiocese em nota.

Já a congregação Missionários do Espírito Santo (Espiritanos), ao qual o padre faz parte, informou também ele infringiu algumas leis do Código de Direito Canônico, como o fato dos casamentos terem sido realizados fora da igreja, com a presença de casais e representantes de diversas denominações religiosas sem a licença do ordinário e a ausência da autorização do pároco local. Em nota, a congregação também destaca a presença de casais homoafetivos no evento.

“Não se pode excluir que, entre os que se ‘casaram’ nessa cerimônia coletiva tenham participado casais com impedimentos dirimentes por causa da existência de vínculos anteriores, além da participação de três casais homoafetivos, conforme confirmou o próprio Pe. Assis”, cita um trecho da nota.

Em nota, a prefeitura de Franco da Rocha informou que é usual a presença de padres no casamento comunitário, realizado desde 2007, e que eles realizam a benção dos casais junto com outros líderes religiosos. Disse também que não foi a primeira vez que houve a participação de casais homoafetivos na celebração e que a prefeitura nunca recebeu nenhuma notificação da Arquidiocese.

Apesar das alegações, o padre Assis garante que a sua atuação apenas foi dar a benção aos presentes no evento, uma prática comum no catolicismo. “Se essas bençãos fossem somente com casais héteros, não teria esse reboliço todo. Você pode benzer moeda, carteira, mas justamente por questões conservadoras e moralistas, casais homoafetivos, não”, comenta Assis.

“Eu, como um jovem preto, quando vejo pessoas sendo discriminadas, respinga em mim. Quando vejo um jovem sendo discriminado por causa da sua orientação sexual, isso dói porque eu também sou discriminado pela minha cor, então eu não posso ficar contido porque estaria sendo conivente com o sistema. Deixa o povo amar do jeito que bem quer. Quem sou eu para ditar quem dorme com quem?”, ressalta.

Desdobramentos 

Após a repercussão do caso, padre Assis conta que seria transferido para outro estado, mas pediu para ser enviado para Cabo Verde, seu país natal. Para ele, uma das maiores consequências desse caso foi ter que suspender as atividades nas comunidades da Vila Prudente, onde atuava desde 2013.

Na região, que ele define como um “quilombo urbano”, padre Assis é conhecido pelas atividades nas comunidades do Morro do Peu, Favela da Ilha das Cobras e a Favela Haiti. Neste ano, o líder religioso iria retomar o projeto “Natal dos Imigrantes”, encontro que reúne famílias estrangeiros para celebrar o Natal com comidas típicas e cultura de cada país. Além disso, também estava prevista a participação dele na construção do centro comunitário da favela do Haiti.

“Para mim, a favela se tornou uma aldeia, um quilombo. É um lugar onde a gente vai transformando lutos em lutas constantes e foi assim que eu cheguei na Vila Prudente, há dez anos”, ressalta Assis.

padre assis“Para mim, a favela se tornou uma aldeia, um quilombo”, diz Padre Assis Tavares | Foto: Divulgação/Prefeitura de Franco da Rocha

Atualmente, padre Assis está em Lisboa, Portugal, onde reencontrou os familiares e irá ao Cabo Verde em janeiro. Ele retorna ao Brasil em março para continuar a faculdade de Direito e espera dar continuidade ao trabalho nas comunidades ou na Pastoral Carcerária, locais onde ele diz que gosta atuar.

A valorização da ancestralidade é uma das principais marcas do padre Assis, que durante as missas utiliza túnicas com elementos e referências à cultura africana. No primeiro domingo de cada mês ele participava da Missa Afro, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Penha de França, região na zona leste de São Paulo. Para padre Assis, a igreja é um local plural e de acolhimento, não de exclusão.

“A minha imagem de Jesus é um Jesus de cabelo crespo, que anda pelos becos e vielas tranquilamente. Essa é a igreja que a gente acredita: uma igreja que denuncia o racismo, machismo, xenofobia, o feminicídio, que é contra a LGBTfobia. Só assim seremos igreja mesmo, senão só seremos uma fachada com homens com poderes de ligar e desligar, como se fosse uma tomada”, completa.

Posicionamento

Em nota, a Arquidiocese de São Paulo informou que a medida não se trata de uma “punição”, mas uma medida cautelar, “prevista nas normas da Igreja, quando há uma irregularidade grave, do ponto de vista religioso, que precisa ser melhor esclarecida”. Disse também que “tratou-se, portanto, da participação inteiramente irregular, do ponto de vista das normas da Igreja Católica, para uma celebração de casamentos”.

Além disso, a Arquidiocese destacou que as comunidades da Vila Prudente continuarão a ser atendidas e que a suspensão do Padre Assis “é cautelar, podendo ser mudada, após serem esclarecidos os fatos e as suas consequências e a depender da aceitação do sacerdote de observar as normas da Igreja”.

Já a congregação Espiritanos explicou, além das possíveis infrações, que o “problema” não foi ter dado a benção, mas que o “problema surge quando o padre benze uma união que é entendido pelo direito canônico como simular ao sacramento de matrimônio para Católicos”.

“Reafirmamos nosso compromisso com a verdade, a justiça, a vida, a escuta, com o diálogo e as relações humanizadoras. Extremismos nunca fazem bem e podem ferir ambos os lados. Há situações na vida em que a paz e a vida podem ser mais importantes do que ter razão”, cita um trecho da nota.

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