Um pai vende a virgindade da filha de 15 anos de idade. Um adolescente alvejado com 12 tiros no rosto por causa de uma dívida de crack. Uma igreja dividida por uma discussão em torno da mensagem impressa do tapete da entrada principal. Há 19 anos, esses três fatos foram decisivos para que os membros da Igreja Batista em Coqueiral, na Zona Oeste do Recife, avaliassem a relação de distanciamento que mantinham com comunidades do entorno. A partir de uma reflexão profunda e coletiva, proposta pelo pastor dirigente, José Marcos, um paraibano com formação em Ciências Políticas e Psicologia, uma nova igreja nasceu e, hoje, ela funciona aberta, sem paredes que a separe da comunidade local, maior beneficiada pela atuação ciristã voltada para o bem estar do próximo.
Seja no território, na comunicação, na política partidária ou na academia, evangélicos (as) lutam por igualdade em um país onde o nome Deus é usado em vão. São ativistas, lideranças religiosas, cristãos e cristãs, seguidores “do favelado preto de Nazaré” que desenvolvem boas práticas de combate à corrupção, criticam a instrumentalização da fé por parte da Direita, defendem o estado laico e lutam pela garantia de direitos. Os preceitos bíblicos servem de inspiração para a disseminação de valores e informações que geram grande impacto em territórios onde o Estado não oferece o mínimo para garantir uma vida digna à população.
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“Se a nossa Igreja fechasse ela faria falta para o nosso bairro?”. A partir dessa provocação, Pastor José levou os membros do templo a perceberem que “aquilo que entristece a Deus não entristecia a Igreja”. A semente plantada germinou e, hoje, a Igreja Batista em Coqueiral desenvolve um trabalho de impacto e apartidário por meio do Instituto Solidare, que atua com crianças, adolescentes e seus familiares na região Oeste da capital pernambucana.
Para além dos projetos sociais, o Instituto também atua comprometido com o fortalecimento dos Direitos Humanos e de valores pautados pela Justiça divina que, essencialmente, está à serviço dos “cansados e oprimidos”. Exemplos de iniciativas que, muitas vezes, são invisibilizadas por uma generalização que não considera a relevância de ações desenvolvidas por grupos evangélicos em áreas de vulnerabilidade social que são invisíveis para o poder público. Com base na bíblia, a entidade promove a democratização do acesso à informação, principal ferramenta na luta contra a corrupção.
O conhecimento é transmitido por meio de ações internas de formação e de assistência também. Lugares como a comunidade do Cortiço, que a educadora Roberta Barbosa conhece bem. Cristã vinculada à Igreja Batista Nacional em Coqueiral, ela sempre se incomdou com o tipo de tratamento que é dado às crianças do Cortiço. Uma das colaboradoras do Instituto Solidare, ela fala sobre o preconceito que é direcionado aos meninos e meninas que pertencem a famílias de feirantes que não têm renda fixa. “A maioria são crianças negras que são tratadas como marginais”, comenta ela, que mora próximo e nunca sentiu receio de visitar o local que sofre com a estigmatização e o preconceito de gente de dentro e fora do bairro.
Pastor José dedica a sua vida à espiritualidade e ao trabalho comunitário no Recife (Imagem: Lenne Ferreira)
Só durante a pandemia, o Instituto Solidare beneficiou 1650 famílias com cestas básicas e material para higienização e proteção. A entidade possui 18 projetos que são tocados graças à mobilização de recursos junto a editais e instituições como o Instituto Coca-Cola Brasil, Sesc e Projeto Pescar. Ao todo, só no bairro de Coqueiral, 29 comunidades são atendidas por ações educativas e profissionalizantes por meio de programas como o “Aceleração de Renda, Auto estima e Resiliência” e “Cidadania Integral e Desenvolvimento”.
“Nos últimos 20 anos, a Igreja entendeu que ela tem que ser um ente para fora e de cuidado do outro. Por isso, hoje ela opera 18 projetos sociais que atende diretamente a duas mil pessoas e, indiretamente, a 10 mil, em 18 municípios do Nordeste. Fazemos isso porque entendemos que a fé sem as obras é morta, como diz a bíblia”, pontua Pastor José. O compromisso com os ensinamos de Jesus de Nazaré é levado com muita seriedade pelo dirigente que, nas últimas eleições, sofreu uma série de assédios de partidos e candidatos. Mesmo os que se diziam “servos de Deus” foram ignorados.
“A Bíblia é meu ponto de partida e o Reino de Deus é Justiça e Justiça para todos é uma vida com condições dignas e não com sobras e faltas”, pontua ele, que já foi chamado de “comunista” e “esquerdista” por causa do tom dos seus sermões. “Todos têm direitos, independente de suas escolhas. A minha linguagem é politizada, mas não é partidária. Não sou esquerda nem direita, sou discípulo de Jesus de Nazaré, que se indignava com a miséria do seu povo, por isso, não posso falar a favor de um governo pró-morte como o de Bolsonaro”, conta ele, que chegou a perder integrantes da igreja por conta de seus posicionamentos.
Pastor José, que é co-autor do livro “Jesus e os Direitos Humanos”, organizado pelo teólogo Ronilso Pacheco, explica, à luz da Bíblia, porque a corrupção deve ser combatida pelos cristãos. “Veja: Jesus tem como mensagem central o Reino de Deus. Paulo vai dizer que o Reino de Deus é Justiça, Paz e Alegria no Espírito Santo. Logo, se oReino de Deus é Justiça e isso é a matéria central do evangelho. É um imperativo para o seguidor e para a seguidora de Jesus combater a corrupção porque? Porque ela é a mãe de todas as injustiças sociais”.
Comunicação pelo bom combate
Luciane é filha de pastor, bissexual assumida e produz o podcast “Redomas” direcionado às mulheres (Imagem: Arquivo pessoal)
Nos últimos anos, a comunidade cristã evangélica aumentou sua presença em diversos campos da sociedade. De acordo com Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010, a população cresceu em 61% no país em um intervalo de 10 anos. Um crescimento que intensificou a presença de evangélicos em espaços de poder e virou alvo de pesquisas que buscam refletir sobre os principais fatores que levaram a este cenário. Enquanto estudiosos se debruçam em teorias, cristãos e cristãs avançam em números e rompem as fronteiras das igrejas. Uma ruptura que também se contrapõe aos estereótipos reforçados pela grande mídia. Basta dar alguns passos, em qualquer favela do Brasil, para encontrar gente que anda na contramão e atua comprometida com uma agenda mais progressista.
São inúmeros os exemplos de iniciativas de impacto social protagonizadas por cristãos que lançam mão de ferramentas do campo da comunicação, por exemplo, para disseminar informação, principal aliada no combate à corrupção e outras mazelas da sociedade brasileira. Luciana Peterson, de 23 anos, é estudante de Jornalismo em Minas Gerais. Natural da cidade de Santa Isabel, do interior de São Paulo, onde sua família vive, ela é filha de pastor e já na adolescência começou a questionar algumas interpretações sobre os textos bíblicos que tentam condicionar mulheres a um papel de subalternidade. “Meu pai sempre foi esquerdista, embora não dissesse isso na igreja. Eu sempre fui estimulada a pensar sobre política e quando ouvia sermões de opressão relacionados às mulheres, me incomodava”, relembra ela.
Em 2014, quando ainda tinha 16 anos, Luciane conheceu a página “Feministas Cristãs” pelo Facebook e percebeu que não estava sozinha em suas inquietações. “Fui conhecendo outras ideias e buscando narrativas que fizessem mais sentido, tudo com base na teologia cristã”, conta ela que, em 2015, se uniu à equipe do podcast intitulado “Redomas” . O projeto nasceu com o objetivo de levar mais informações para mulheres cristãs sobre violência de gênero e direitos. Uma ação que possibilita a ampliação de horizontes e contribui para o empoderamento de evangélicas que ainda sofrem com opressões e acabam, inconscientemente, contribuindo com sistemas corruptos uma vez que estão mais vulneráveis e acabam se tornando presas fáceis para o facismo. Um dos materiais produzidos pelo projeto é a cartilha intitulada “Não é falta de oração” para conscientizar mulheres cristãs sobre a necessidade de denunciar situações de violência doméstica.
O compromisso com o campo social também pautou Vinicius André na criação do projeto SP Invisível, que tem atuado no sentido de garantir mais direitos para a população em situação de rua, em sua maioria crianças, homens e mulheres negros (as). A iniciativa leva assistência para pessoas que vivem na rua, além de informação sobre seus direitos. A inspiração veio do trabalho do pastor Joabe Santos, da Igreja Batista de Água Branca, na Zona Leste, que, em 2013, teve a iniciativa de provocar os jovens a produzirem um ensaio fotográfico sobre pobreza. Ao notarem a presença constante de gente dormindo em calçadas nas imagens, os jovens evangélicos decidiram contar as histórias daquelas pessoas que passam invisíveis aos olhos apressados nas grandes metrópoles.
“A sensibilidade do pastor serviu como empurrão inicial, mas só em 2014 resolvemos transformar o projeto numa ação permanente que une fotografia e texto para contar histórias nas redes e conseguir ajuda”, explica André, que é evangélico e jornalista. Desde muito jovem, ele colabora com ações realizadas por cristãos em diversas quebradas e Centro de São Paulo. Recentemente, a crise sanitária motivou a formulação de novas estratégias que problematizam o isolamento social, principal medida de segurança para conter o avanço da covid-19, no contexto da situação de rua. “A pandemia que ninguém vê” é o nome do livro que eles lançaram e que reúne histórias de profissionais que não contam com o privilégio de ficar em casa. O valor das vendas será revertido para ações do projeto.
“Quando a gente conta a história de pessoas em situação de rua, a gente conta a história de pessoas que são frutos de uma maneira de São Paulo funcionar, de uma maneira corrupta que as metrópoles funcionam. Porque só existem pessoas na rua porque existe especulação imobiliária, esquemas de corrupção que fazem com que casa se transforme em mercadoria e uma mercadoria cara. Porque existem operações higienistas para poder ajudar imobiliárias, empreiteiras a construírem prédios. São histórias muito afetadas pela corrupção”, pontua Vinicius, que chegou a se candidatar a vereador nas últimas eleições e tinha como principal pauta a defesa dos direitos dos moradores de rua.
Para o jornalista, contar histórias de gente que o Estado finge não ver é mostrar, na prática, as consequências da corrupção no Braisl. “A Cracolândia é um exemplo de lugar repleto de corrupção que envolve policiais, guardas e grandes empresários do tráfico de drogas, que fazem aquilo funcionar. Contar essas histórias é jogar luz sobre histórias que estavam apagadas e combater desigualdades. A visibilidade é o primeiro passo para a garantia de direitos. O projeto Invisível SP mostra quem é afetado pela corrupção na ponta”, finaliza Vinicius.
Incidência política em nome de Deus
Jackson é ativista do Movimento Negro Evangélico e produz conteúdo para o seu canal no YouTube (Imagem: Victor Larcerda)
O pernambucano Jackson Augusto ou Afrocrente, como é mais conhecido, é morador da comunidade Jardim Brasil, em Olinda. Com 25 anos, depois de ter passado a infância em uma das favelas mais populosas da cidade, entedeu cedo seu papel enquanto homem negro cristão. A preocupação com as pautas sociais ele herdou da família, especialmente da mãe, a técnica de enfermagem Sueli Maria. Após 20 anos compondo uma instituição religiosa, Jackson começou a refletir sobre o racismo e como isso afetava a sua vida. “Será que nas minhas tradições religiosas eu posso encontrar respostas para situações que eu sofro?”, se perguntou, na época.
As reflexões foram ganhando forma e moldando o pensamento e posturas do cristão, que, atualmente, integra a coordenação do Movimento Negro Evangélico do Brasil. Há mais de um ano, Jackson deu o pontapé inicial do seu canal no YouTube, que divulga conteúdos sobre assuntos relacionados à fé e política. Na página, videos que falam sobre necroteologia, necroespiritualidade e outros temas baseados na Teologia Negra, movimento que surgiu entre os cristãos negros nos Estados Unidos da América na segunda metade da década dos 60. A corrente se concentra na reflexão sobre a luta dos negros norte americanos, liderados por nomes como o pastor batista Martin Luther King, Jr. com o objetivo de promover justiça e equidade racial. No Brasil, nomes como Ronilso Pacheco tem se dedicado a propagar valores cristão baseados na Teologia Negra.
O contato com essas correntes de pensamentos foram fundamentais para que Jackson se formasse enquanto ativista que vai de encontro a posturas conservadoras e autoritárias de cristãos que usam a fé para alcançar espaços de poder. “Percebo que esses evangélicos, que utilizam do espaço religioso para exercer poder, são pessoas que aderem à uma experiência de fé que nasceu da colonialidade, nasceu da morte de muita gente e que se construiu a partir disso. Por conta, também, das arbitrariedades, por conta das opressões que justificou o tempo inteiro. Uma experiência de fé que não me torna parte. Uma experiência que eu não reconheço”, avalia ele, que hoje ocupa uma vaga como assessor parlamentar da vereadora mais bem votada do Recife nas últimas eleições, Dani Portela (PSOL).
Evangélica e eduadora popular, Isis é ativista em Pernambuco (Imagem: Arquivo pessoal)
Incidir politicamente enquanto mulher negra e cristã também foi o caminho escolhido pela educadora popular, Isis Thaysi, de 28 anos. “Nascida e criada no evangelho”, como faz questão de dizer, ela mora em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife, e faz parte de uma pastoral da negritude, que “tem o papel pedagógico de denunciar o racismo também enquanto um pecado, pois é algo que agride a dignidade de Deus e de acolhida dos que sofrem com ele”. Ela também compõe a Escola de Fé e Política da Igreja Batista de Coqueiral, que é um espaço de capacitação e reflexão que prepara os jovens para atuação política e de enfrentamento da desigualdade à luz do evangelho de Jesus Cristo.
Para Isis, qualquer cristão sintonizado com os ensinamentos bíblicos, terá como prática permanente o combate à corrupção e desigualdades sociais. “O cristão deve ser voz ativa contra a corrupção. É necessário denunciar, cobrar, se engajar no combate e não se conformar, pois é algo que afeta diretamente a nossa vida. A corrupção pode nos tirar direitos básicos para sobrevivência, perpetuando desigualdades e injustiças”. Integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ela ajudou na implantação da creche Marielle Franco, localizada na comunidade Carolina de Jesus, no Barro, Zona Oeste do Recife.
“Uma igreja que se encontra em um território periférico e vulnerável ela cumpre um papel muito importante e tem um significado muito importante para as pessoas que vivem naquele lugar. Inclusive, ocupando um espaço que muitas vezes deveria ser do estado, mas que não é e aí a igreja é um espaço de escuta, acolhimento, um espaço afetivo. Para muitos jovens, por exemplo, a igreja é o único espaço de lazer que ele tem, único espaço de entretenimento, de sociabilidade”, considera Isis, a filha de Toinho e Bel da verdura, que acaba de ser aprovada no mestrado em Educação /UFPE.
“Não dá pra falar de igreja no singular”
Apesar dos incontáveis exemplos que vão na contramão do autoritarismo e fascismo, a generalização ainda recai como uma cruz sobre os ombros de cristãos e cristãs. Uma leitura equivocada, reforçada pela grande mídia, que joga holofote em nomes conservadores e reacionários como o deputado federal Marcos Feliciano e a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Uma leitura que também é feita por parte da Esquerda, que parece desconsiderar a diversidade de posicionamentos, modos de vida e formas de doutrinação que caracterizam a comunidade cristã no Brasil. Mais de 50 milhões de evangélicos não cabe numa caixa só.
“Não é saudável generalizar. Não dá pra falar de igreja no singular. Ela não é uma coisa só. Eu, por exemplo, sinto nojo do que se faz em nome de Jesus e da Igreja Evangélica. Eu não posso ser julgado pelas ações de alguns. Silas Malafaia e Pastor José são duas pessoas completamente diferentes. Ele não me representa”, desabafa o paraibano, Pastor José.
Jakcson chama a atenção para o perigo de adjetivar pessoas faveladas e evangélicas de fascistas sem uma análise profunda do contexto social no qual elas estão inseridas. “A gente não pode olhar para uma pessoa, e só porque ela votou em Bolsonaro, por exemplo, chamar ela de fascista, eu não posso chamar ela de nazista ainda mais se tratando de uma mulher negra, uma mulher pobre. A gente precisa fazer uma análise mais profunda sobre isso, sobre essas contradições, sobre os preconceitos que essa mulher tem, mas também sobre as ações que fazem com que essa mulher tente fugir também e se emancipar. Essas ações precisam ser lidas, precisam ser captadas e precisam ser replicadas. Elas precisam ser vistas como ações de vida, mesmo com todas as contradições desses grupos que não necessariamente são bolsonaristas e conservadores”, explica.
No campo da disputa partidária, não é novidade o uso da fé e da religião para conquistar votos. Candidatos evangélicos têm liderado o ranking dos mais votados eleição após eleição. No pleito de 2018, segundo dados do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a bancada evangélica na Câmara Federal cresceu de 75 para 84 deputados. No Senado, o número dobrou de três para sete representantes. Nas eleições de 2020, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), houve um aumento de 34% no registro de candidatos que utilizam a designação de pastores e pastoras. Só na Câmara Municipal de São Paulo, por exemplo, há 11 vereadores ligados a alguma igreja evangélica foram eleitos ano passado.
O aumento de evangélicos neopentecostais nos espaços de poder trouxe à tona pautas mais conservadoras e reacionárias, mas não são pautas defendidas por todos os cristãos eleitos. O fundamentalismo não é hegemônico e a prova disso é a criação da Bancada Evangélica Popular, representada por nomes que tem o objetivo de ocupar as câmaras e assembléias ao redor do país “promovendo políticas públicas concretas que cessem com a desigualdade social e promovam justiça, paz e dignidade para todas e todos”. São nomes que criticam a instrumentalização da fé por parte da Direita, que defendem o estado laico e a garantia de direitos, mas que são invisibilizados pela grande mídia.
“Esse combate e enfrentamento está aí fora e está dado nessa diversidade que é o campo evangélico. Muitos evangélicos, lideranças, pastores e pastoras com histórias sérias e compromisso com a Justiça, Igualdade, Libertação que tem sistematicamente confrontado os discursos hegemônicos que são os que mais reverberam, que são os que mais polemizam, os que mais são publicados”. A declaração é do teólogo Ronilso Pacheco, um dos mais importantes disseminadores da Teologia negra no Brasil.
Atualmente estudando e morando em Nova York, Ronilso concedeu uma entrevista exclusiva à Alma Preta Jornalismo e falou sobre o avanço e influência das igrejas neopentecostais na periferia e no contexto político brasileiro. Natural de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, o teólogo é pastor auxiliar na Comunidade Batista em São Gonçalo e atua como ativista no campo dos Direitos Humanos. Ronilso possui formação em Teologia pela PUC-Rio e mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia (EUA). É autor de “Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão” e do livro “Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria”.
Confira a entrevista completa com Ronilso Pacheco a seguir:
Ronilso Pacheco é um dos mais importantes nomes da teologia negra brasileira (Imagem: Reprodução internet)
Alma Preta: Quem mora ou já morou em alguma favela brasileira, entende muito bem porque a comunidade cristã cresceu tanto e tem pautado o tom de processos eleitorais, por exemplo. Esse crescimento motivou o surgimento de “falsos cristãos” na política partidária e direitista. A cada eleição, é muito comum ver candidatos com discurso “conservador” para agradar o eleitorado evangélico. Como o senhor avalia esse movimento?
Ronilso: Eu acho que mais do que o uso de um discurso conservador, existe um discurso pragmático, sobretudo nas grandes periferias. Se a gente pensar a baixada fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro e em cidades densamente populosas de São Paulo e nas periferias do Recife e Pernambuco, por exemplo, está muito presente um discurso pragmático que acaba conectando e comunicando com o dia a dia da realidade de forma muito mais afetiva. Acho que essa é uma distinção importante para entender como a Direita faz uso de uma linguagem que é muito mais afetiva enquanto que o campo progressista é muito mais estético. É meio que uma disputa entre o afetivo e o estético. A Direita e os conservadores conseguem um discurso mais pragmático e dialoga com o dia a dia das pessoas para se aproximar e se apropriar literalmente da fé das pessoas por interesses políticos. Mas acho que também tem uma construção de relação. Não é puro e simplesmente um discurso conservador, que é mais palatável por ser mais convincente. A elaboração é muito mais pragmática.
Alma Preta: Como lidar e combater esse cenário?
Ronilso: Se nós quisermos lidar com esse cenário, precisamos enfrentar como isso funciona, como é a estrutura desse discurso. Isso não é uma coisa nova. É parte da formação política da sociedade brasileira, essa presença, interferência, influência e peso que a fé religiosa tem para fins políticos e eleitorais. Não é algo novo e pode ser percebido na forte influência e presença da Igreja Católica no Brasil durante o período do Império e no início da República. Agora, temos forte presença do campo evangélico. Com relação a como combater os falsos evangélicos, parece uma redundância, mas é combater com a verdade. E o que é que eu tô chamando de verdade? A verdade é que a gente tem, e eu sempre insisto nisso e, por isso, falo muito da disputa , de como a gente disputa o sentido da bíblia, o sentido dos textos da narrativa daquela coletânea de histórias. Pode não ter efeito nenhum, mas dificilmente a gente vai encontrar um caminho para combater os falsos evangélicos, ou fazer uma crítica contundente a eles sem ser confrontando suas atitudes, histórias, jornadas, afirmações com o que é a vida de Jesus no Evangelho. Como há uma distância abissal entre o que eles pregam e como eles vivem com o que e como Jesus pregou e viveu. Esse combate e enfrentamento está aí fora e está dado nessa diversidade que é o campo evangélico. Muitos evangélicos, lideranças, pastores e pastoras com histórias sérias e compromisso com a Justiça, Igualdade, Libertação que tem sistematicamente confrontado os discursos hegemônicos que são os que mais reverberam, que são os que mais polemizam, os que mais são publicados.
Alma Preta: Muita gente, inclusive de esquerda, culpabiliza os evangélicos pelo cenário fascista que se desenhou na política brasileira. Uma generalização que desconsidera exemplos importantes de ativismo e trabalho social protagonizados por cristãos que desempenham um importante papel social nas favelas e são invisibilizados. Por que você acha que isso acontece?
Ronilso: Eu acho que isso acontece porque, sem dúvida alguma, a gente tem uma esquerda que ainda é muito herdeira da mentalidade iluminista, da razão, da formação, do conhecimento, de ser ilustradora, instrutora, de ser professoral, de ser mestre e não é mestre no sentido freireano, de quem constrói junto conhecimento, no estímulo à autonomia na descoberta do conhecimento. Mas é o conhecimento tutelado. A nossa esquerda tem uma herança no sentido de salvar e iluminar a periferia e instruir e fazer a periferia entender que ela precisa lutar pelos seus direitos, de ter a melhor cartilha, impor conceitos, pensadores. A mentalidade de uma maneira geral, da intelectualidade da esquerda ainda é muito “senhora do conhecimento”. E essa característica se confronta com a autonomia e a forma prática, efetiva, com a forma negociadora que de alguma maneira a periferia está vivendo e as pessoas no dia a dia, nas suas condições de trabalho, na luta por sobrevivência, elas estão empreendendo. Em tese, é por isso que o discurso conservador consegue acessar.
Alma Preta: Sabemos que boa parte da comunidade evangélica, principalmente de áreas periféricas, é composta por pessoas negras. É muito comum que esse grupo seja definido como “ignorante”, “gado” e por aí vai. Você considera que o racismo também opera na forma como gente privilegiada e branca olha para essa parcela da população?
Ronilso: Aqui tem uma presença muito forte de um preconceito que é atravessado por raça e classe e gênero também, inclusive, intra religiosamente. Se você parar para pensar, por exemplo, tem a perspectiva geral dos evangélicos como bitolados e alienados como conservadores facilmente manipulados, mas quando você vai pra dentro do universo evangélico existe essa perspectiva que é marcada por raça e classe de maneira muito forte também. Membros e pastores consideradas históricas como metodistas e presbiterianas, onde para ser pastor você tem que ter formação acadêmica, mestrado, estudou na alemanha ou estados unidos, igreja majoritariamente branca de pessoas bem comportadas, sermões bem pensado elaborado com hermenéutica. tudo muito bem construído, um discurso que transita muito bem pela perspetiva e que tem muito preconceito com a perspetiva pentecostal como se esses fossem anárquicos, com uma liturgia que não tem uma ordem, muito barulhento e isso é marcado pela perspectiva de raça e classe. Grande parte das pessoas pretas estão na igreja pentescotal. E grande parte das pessoas brancas estão na igreja histórica, a maioria localizada em áreas nobres. É o mesmo tipo de hostilidade que fazem em relação ao Baile funk. isso é uma marca muito forte de raça e de classe que está presente no geral na sociedade.
Alma Preta: Existe um estereótipo que circunda a figura do evangélico no Brasil e qualquer um que apresente posturas diferentes do que se espera seja na forma de vestir ou se portar ou ainda na maneira como atua contra opressões, muitas vezes, é lido como “comunista”, “esquerdista”, “desviado”. Você acredita que isso está mudando?
Ronilso: Na verdade, infelizmente, não me parece que está mudando. Acho que a gente tem um campo de disputa que é mais amplo. As redes sociais tornaram algumas discussões e ressignificações muito mais amplas, mas eu não acredito que tenha mudado significamente. A perspectiva ainda é a mesma, nós ainda lidamos hoje com a mesma crítica que a Teologia da libertação lidava na década de 70, de ter abandonado a fé a igreja, abraçado o comunismo e de ser mais política do que religiosa, etc. Eu acho que nós lidamos com a mesma coisa. Basta dá uma entrevista, escrever um artigo, publicar um livro, postar nas redes sociais ou fazer qualquer movimento que de alguma maneira te associe a uma agenda mais progressista o campo conservador vai estar pronto e muito proto para poder empurrar você para a categoria de comunista, esquerdista, esquerdopata. A gente tem um pastor famoso que usa esquerdopata mais do que bom dia. Então não acredito que tenha mudado significamente não, agora, eu acho que é uma disputa que está mais ampla e mais vista. Até por isso essa insistência da contranarrativa ela precisa continuar.
Alma Preta: Qual o papel do cristão no combate à corrupção?
Ronilso: Eu nem separaria qual seria o papel do cristão. A sociedade tem um papel que deve ser da sociedade no combate à corrupção. É evidente que se a gente for levar para uma perspectiva da influência da fé e da religiosidade, numa perspectiva ética baseada nos evangelhos, na Bíblia e na mensagem de Jesus e etc. O combate acontece de diversas maneiras e posturas. Uma coisa é você ter acesso aos meios que efetivamente combatem à corrupção, de investigação e denúncia e visibilizar e apoiar iniciativas que lidam com a perspectiva da corrupção, fortalecer mecanismos de transparência você pode ter uma ligação direta com isso. Mas você pode não ter ligação com nada desse tipo e sua postura ética já ser uma forma de combate à corrupção. Agora, esse papel é da sociedade, que precisa ser pautada em um ambiente e compromisso em que a corrupção não tenha lugar porque e quando ela tiver lugar, porque infelizmente pode acontecer, que ela seja devidamente denunciada e reparada. Na perspectiva cristã, é importante que a gente saiba hierarquizar prioridades e não ideologizar o combate à corrupção tomado por uma perspectiva moralista, punitivista e como grande oportunidade de manipular ataques a adversários do que necessariamente um compromisso com a justiça.
Alma Preta: Ao que devemos estar atentos quando falamos no combate à corrupção no Brasil?
Ronilso: O combate à corrupção se tornou uma bandeira ideológica com uma relação quase que idolatra que se tornou algo tão anestesiante e neutralizador que foi capaz de invisibilizar e tornar irrelevante outros dilemas na perspectiva enquanto projeto de país outras situações se tornaram absolutamente irrelevantes. Então a corrupção tornou- se algo tão relevante quanto o extermínio da juventude negra, quanto a homofobia e feminicídio, as queimadas da amazônia, quanto o Brasil retroceder no mapa da fome. Quer dizer que nada passou a ser significativamente importante a não ser à corrupção. Mas a corrupção tratada de maneira tão ideológica foi tomada por um discurso absolutamente consevador, moralista, doutrinador, pronto para neutralizar qualquer outro debate que não fosse a corrupção nos termos formulados por muitos que estão completamente comprometidos com a corrupção em suas diversas formas. O cristão como exigência de uma postura ética comprometida com a ênfase e fomento na defesa de instrumentos de transparência. Tanto se falou em corrupção, mas nós tivemos um sucateamento dos instrumentos de fortalecimento de transparência de dados e esses são os caminhos de combate. Um compromisso permanente com a prática de justiça.