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“Sem a compreensão da estrutura racista, não há transformação”, diz professor da USP

17 de julho de 2018

Flávio de Campos, professor do departamento de história da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador científico do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas), da mesma instituição, fala sobre a relação entre sociedade e futebol como meio de ascensão social

Texto / Amauri Eugênio Jr.
Imagem / Getty Images

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Em 17 de julho, o Alma Preta publicou a reportagem “O futebol é um meio de ascensão social para jovens?”, em que abordou a relação entre o esporte e a população habitante de regiões periféricas no Brasil.

Confira a seguir a entrevista feita com Flávio de Campos, que falou com a reportagem a respeito do tema.

Alma Preta: De modo geral, como o desempenho escolar é prejudicado pela obrigatoriedade do rendimento em alto rendimento desde a adolescência?

FC: Ao pensar-se no caso brasileiro e no que existe em relação a atletas negros, há um caminho na atividade esportiva em geral, sobretudo a de alto rendimento – que não é o melhor, mas é um caminho – para superar-se uma situação muito difícil na sociedade, que é o genocídio de jovens e adolescentes negros, sobretudo em situação subalternizada na periferia. Temos um olhar preconceituoso para o corpo negro, que é a cara da história do país, de que o corpo negro está associado à situação de inferiorização do ponto de vista social.

O outro olhar, que parte também a partir do estereótipo, é relativo à possibilidade de atuação no esporte, graças à identificação desse corpo como robusto, forte, talhado e apto para a prática, sobretudo em modalidades de alto rendimento – estamos em uma sociedade que teve mais de três séculos de escravidão, na qual o corpo negro era [visto como] apto para o trabalho.

Se por um lado, o esporte é um caminho para a juventude branca e negra, por outro, no caso de negros, esse caminho está marcado por uma carga preconceituosa muito grande. É muito curioso como há aceitação sobre isso e como a gente vê, em determinados esportes, a naturalização da presença de negros – sobretudo no futebol. Sobre a ausência deles no tênis, em esportes náuticos, automobilismo ou até mesmo no voleibol, há uma fronteira racista e de classe, pois a questão do racismo no Brasil é estrutural – e há, inclusive, no esporte.

Ao levar isto em conta, partimos para a outra questão, relativa à hierarquia de funções: há, por exemplo, dificuldade para encontrar negros em posto de direção. Além disso, há fronteira muito bem demarcada quanto a comissões técnicas, com número pequeno de treinadores. Há um fenômeno interessante, que é o de Roger Machado [treinador do Palmeiras]. É muito interessante ver Roger dirigindo o time, mas esse é um ponto fora da curva.

Habituamo-nos a ver treinadores, jornalistas e comentaristas esportivos brancos. Ainda dentro da hierarquia, a regra é negros serem atletas e, descendo um pouco mais, vemos que seguranças, motoristas e massagistas são negros. Isso mostra que há diferenciação nas funções e isso se torna mais evidente quando pensamos em mulheres negras.

Houve avanços na presença feminina, sobretudo na Copa do Mundo da Rússia, com mulheres narradoras, comentaristas e jornalistas – isso significa um avanço desse setor na sociedade. No entanto, não vemos mulheres negras. Há olhar demarcando características na sociedade e essas são fronteiras conflituosas, que impõem dominação. Essa dominação, que é estruturante, é o racismo.

AP: Quais impactos colocar o estudo em segundo plano terá na vida no atleta, tanto cognitivamente, como após a aposentadoria? Por quais motivos?

FC: Isto tem incidência na situação do negro e é devastador. Essa é uma característica geral do esporte de alto rendimento e há em grande escala no futebol. Ao pensar-se em [esportes de] alto rendimento, quais são os setores atraídos ou recrutados? As camadas subalternizadas. É raro encontrar atletas de classe média – existem, mas são exceções. A maioria vem de setores subalternizados.

Este é um problema da sociedade brasileira, que consiste no investimento quase exclusivo na formação atlética, e em não ter formação integral. Falta ao Brasil a implementação de projetos integrais de formação atlética e cidadã, articulando com a educação. Nos casos de negros, há um caminho quase único: investimento quase exclusivo no esporte de alto rendimento.

Quando isto é algo com êxito, estamos falando de exceção do ponto de vista do povo negro no Brasil: os que obtêm êxito colocam a formação escolar e crítica em segundo plano por terem se dedicado quase exclusivamente à formação atlética. Os exitosos furam bloqueios e isso é identificado em alguns momentos da vida, quando eles se expressam sobre a negação da negritude. Eles passam por processo de [auto]negação e de autobranqueamento em uma sociedade acostumada a branquear pessoas – houve, no século XIX, projeto político de Estado para branqueamento da nação, com financiamento público, para a imigração europeia.

Por outro lado, jovens negros que investem quase de modo exclusivo no esporte de alto rendimento não têm formação integral – ou seja, crítica e escolar. Na maior parte dos casos, o desempenho será regular até certo ponto e é cercado pelo risco de não ser possível se estabelecer e alcançar o patamar dos atletas grandes.

Isto é devastador, pois há comprometimento grande, mas, de repente, não há resultados à altura disso. O caminho sem formação escolar crítica, que de repertório para a população negra e/ou feminina subalternizada, resulta na marginalização cultura – ou seja, ficar à mercê da violência, opressão e dominação de classe e racista – e não ter resistência consciente diante da sociedade que se estruturou a partir da dominação.

O resultado é a dominação social e, eventualmente, com resistências pontuais e individuais – revolta da população negra subalternizada. Sem a compreensão da estrutura racista, isso não é transformador.

AP: Por que o futebol é visto como um signo de ascensão social, especialmente para jovens que moram em regiões periféricas? Por quê?

FC: É importante expandir, aplicar e vivenciar a Lei 10.639, que estabelece a questão dos conteúdos da cultura afro-brasileira e afro-americana em todos os níveis da educação escolar, inclusive na educação física.

[Se houvesse conscientização sobre a cultura afro-brasileira] não teríamos fundamentalistas religiosos e fascistas tentando impedir a aproximação da sociedade com elementos culturais afro-brasileiros, combatendo livros e artigos que apontam para a origem dessa cultura, desde a matriz aos elementos cotidianos.

Há outra atividade esportiva que é negligenciada e para a qual não damos o mesmo valor, que é a capoeira. [A modalidade] tem, evidentemente, matriz africana e, com base no ponto de vista sobre o surgimento, com escravos e seus descendentes, foi combatida pelo Estado brasileiro. [Deve-se destacar também] o berimbau, que dá o ritmo da capoeira e é muito semelhante ao arco musical, elemento secular da cultura africana. O berimbau simboliza uma velha luta.

O futebol tem matriz europeia e vem da Inglaterra, um país imperialista, que impôs a modalidade a boa parte do mundo. O lado positivo quanto à preferência ao futebol diz respeito à história brasileira no esporte, que é de resistência e de disputa da população negra. O esporte era restrito à elite no início do século XX e havia tentativas para impedir negros de o praticarem. Todavia, alguns clubes têm história legal no esporte, o que revela a disputa. o Vasco da Gama, por exemplo, foi bicampeão carioca em 1922 e 1923 com atletas negros e foi um dos primeiros clubes a ter dirigentes negros – poucos, mas isso revela espaço de disputa.

AP: Como a origem socioeconômica pobre, aliada à falta de estrutura e apoio psicológico, pode ser problemática para jovens que começam a ganhar quantias elevadas de dinheiro? O que pode ser dito a respeito?

FC: Esta é uma questão muito complicada, que vale para atletas de origem pobre e de camadas subalternizadas. É evidente que isto é mais grave na população negra, com atletas muito jovens, cujo êxito esportivo os fizeram passar de situação de penúria, nas quais os pais eram muito pobres e tinham de lidar com orçamento precário e vida de privações [para a superação].

As famílias depositam esperanças no integrante que demonstra ter mais condições físicas e técnicas para determinado esporte, que é, em geral, o futebol. Quando ele passa a fronteira, ele cai em uma espécie de terra prometida e de extrema abundância com idade relativamente muito pequena. E em uma sociedade de consumo que hierarquiza pessoas pelo o que elas consomem, são criadas condições para a ostentação: falta formação crítica.

Os jovens têm mérito pelo êxito esportivo, o que é fruto de esforço grande, mas eles acabam descambando em vida supérflua e de consumo de bens diferenciais – joias, brincos, pulseiras, colares de ouro, de automóveis importados, casas suntuosas, jatinhos e iates, por exemplo.

Estes atletas expressam a superação da origem humilde pelo consumo, inclusive de pessoas – eles conseguem se aproximar de determinadas figuras da sociedade que são ícones de sucesso. Não por acaso, eles conseguem se aproximar de artistas, modelos e que expressão determinado padrão de beleza na sociedade. Quando são negros, ele normalmente estarão com mulheres brancas, o que é significativo no processo de autobranqueamento.

Há poucos atletas que conseguem superar a condição social superior com posicionamento mais comedido. Isso tudo depende da formação e do entendimento de como a sociedade brasileira funciona. Esse nível de consciência é importante, pois eles se tornam elementos da imensa engrenagem de dominação do capitalismo e serão peças desse mecanismo mesmo sendo ricos.

É necessário haver tomada de consciência e de informação. Gostaria de, por exemplo, ver Neymar ter consciência da importância social dele e de ele se posicionar diante de determinadas situações de modo mais consciente. Ele seria um importante aliado no processo de transformação da sociedade.

AP: Qual é a parcela de culpa dos clubes dentro desse cenário? O que pode ser feito para haver auxílio mais eficaz para jogadores jovens, em especial negros e/ou de regiões periféricas, lidarem melhor com as mudanças pelas quais eles serão submetidos?

FC: É necessário haver parcerias entre clubes e poder público. As que foram feitas nas últimas décadas eram voltadas à resolução de questões financeiras e deram vantagens aos clubes. Essas instituições têm estrutura oligárquica de poder.

O primeiro passo é estes clubes passarem por ampliação da participação popular para haver possibilidade de construção de projetos alternativos. Por outro lado, as entidades esportivas são espaços de práticas autoritárias, com muitos membros egressos da ditadura militar.

Para começarmos a pensar em estruturação do esporte com projetos mais eficientes, seria necessário reestruturar clubes e confederações, ao democratizá-los para haver mais estrutura. Qualquer projeto com o poder público deveria ter maior controle do dinheiro empregado, que deveria ser investido no lazer, sobretudo. Os clubes deveriam contribuir para a formação integral – cultural, social e crítica – nas comunidades, mas também na saúde corporal.

O investimento público [em projetos com clubes] deve ter como objetivo a desconstrução de elementos de dominação. Precisamos de transformação esportiva ao pensar-se em aproveitá-lo para o enfrentamento contra preconceitos da sociedade e como território de afirmação da diversidade sexual, negritude e conjunto de práticas. Esse seria o elemento central.

AP: Quais são os efeitos que esse contexto poderão causar na saúde mental de jovens jogadores de futebol, em especial aqueles que têm origem socioeconômica pobre?

FC: Em uma sociedade como a nossa, todos temos a saúde mental afetada. A possibilidade do consumo é quase infinita e positiva. Há instabilidade do ponto de vista emocional que, no limite, leva à angústia e à carência.

Trata-se de um paradoxo: figuras que têm determinado poder aquisitivo têm alimentada a insatisfação do ponto de vista do consumo de bens mais caros. Tendemos a compensar fragilidades, fraquezas e problemas emocionais por meio do consumo.

Trata-se de quadro geral da sociedade de consumo em que estamos submetidos. Só o posicionamento político consciente permite a mim, você ou a um grande atleta de seleção termos posicionamento mais consciente e equilibrado diante da sociedade.

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