A História do Brasil vem aos poucos mostrando que algumas das leis implementadas durante o século XIX não tiveram os efeitos que os livros ensinaram por muitos anos.
Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Divulgação
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Há pouco mais de uma semana, duas Leis que já foram muito celebradas nos livros de História do Brasil fizeram aniversário. Conhecidas como Lei dos Sexagenários e Lei do Ventre Livre, ambas foram assinadas em 28 de setembro, mas em anos diferentes e fizeram parte de uma legislação que culminou com a Lei Áurea, em 1988. Apesar de terem sido benéficas em alguma medida, cada vez mais há o resgate dos efeitos reais na vida das pessoas escravizadas.
As leis foram promulgadas no bojo de movimentos emancipadores e abolicionistas na segunda metade do século 19, no Brasil. Além disso, atendiam às pressões internacionais para o fim da escravidão, especialmente da Inglaterra, por isso foram chamadas de “leis para inglês ver”.
Outra característica é que foram graduais para preservar o princípio da propriedade escrava, por isso precisava da questão das indenizações nos textos das leis. “Além do que uma solução mais radical e imediata trazia o medo da desordem ou do caos social. O Estado brasileiro até então havia tido pouca ingerência na relação senhor-escravizado”, destaca Bárbara da Fonseca Palha, doutora em História Social da Amazônia pela UFPA.
A historiadora explica que a lei do Ventre Livre, como ficou popularmente conhecida a Lei Rio Branco, determinou a liberdade das crianças nascidas de mulheres escravizadas, a partir de 28 de setembro de 1871, sendo enquadrados numa categoria, de “ingênuos”, que os colocava no limite entre a escravidão e a liberdade, na medida em que até os oito anos de idade, viviam em companhia das mães “em poder e sob autoridade dos senhores de suas mães”, quando então poderiam ser entregues ao Estado, mediante indenização aos senhores, ou prestavam serviços a estes até os 21 anos de idade.
“Esta lei também versou sobre a legitimação do pecúlio e da compra de alforria pelos escravizados (não que isso não fosse possível antes, pois na relação senhor-escravizado eram feitos acordos tecidos no cotidiano destas relações que previam estes costumes); criou o Fundo de Emancipação, determinou a Matrícula Geral dos Escravos e libertou, entre outros grupos de cativos, os chamados escravos de nação que pertenciam ao Estado”, informa Bárbara, que também é membra do Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e Abolicionismo na Amazônia (GEPEAM).
Já a lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de 1885, determinou a libertação dos escravizados a partir de 60 anos, porém com a prestação de serviços aos senhores durante o período de três anos, a título de indenização. “Porém, pelas próprias condições do cativeiro, a expectativa de vida dos escravizados era baixa, com tendência a adoecimentos e incapacitações com o passar dos anos, sendo uma lei que teve pouco impacto na vida destes sujeitos”, afirma, a pesquisadora, complementando que a lei também determinou uma nova Matrícula Geral dos escravos, novas regulamentações para o Fundo de Emancipação e regulou a alforria dos cativos.
“Os escravizados não esperaram pela legislação para ir em busca de seus objetivos”
Na prática, as leis não tiveram os efeitos que historicamente foram contados nos livros de História. “Os escravizados não esperaram pela legislação para ir em busca de seus objetivos, dentre eles, a liberdade. As mães escravizadas não esperaram pela Lei do Ventre Livre para ver um filho livre do cativeiro. Acessavam a justiça, desde o século XVIII e ao longo do século XIX, na busca da liberdade dos filhos, mediante a promessa de pagamento ou alegando que a criança já havia recebido a liberdade no ato do batismo, por exemplo”, explica a historiadora.
Segundo Bárbara, um homem casado com uma mulher escravizada, ambos sexagenários, também não esperou a lei para garantir a liberdade para a esposa. “Ele também acessou a justiça com a promessa do pagamento pela liberdade de sua esposa, pois queria passar seus últimos anos de vida em sua companhia, para citar alguns exemplos encontrados nas fontes históricas”, complementa.
Ela frisa que a promulgação das leis levou o debate da questão servil ou escravista para o parlamento brasileiro, alinhado com o debate e a movimentação de países latino-americanos em torno da questão. “Vale lembrar que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Ao mesmo tempo, legitimou (no sentido de controlar) algumas ações/agências cotidianas dos escravizados, tais como o acúmulo de pecúlio, oriundo de um trabalho remunerado, próprio do trabalho ao ganho comum na escravidão urbana, quando o escravizado participava da circulação monetária, guardando dinheiro fruto do seu trabalho, por meio do qual o alcance da alforria por meio da compra, contando ainda com a boa vontade senhorial, era possível”, diz.
As leis emancipadoras culminam com a abolição da escravidão, ratificada pela Lei Áurea, de13 de maio de 1888. Em seus dois parágrafos, o documento não previa indenizações para os ex-escravizados, nem amparo social e político. Homens e mulheres negros tiveram que continuar buscando estratégias de sobrevivência, como fazem até hoje, inclusive para recuperar a essa parte da História do Brasil.
“A lei do Ventre Livre, apesar de sua dubiedade, programou o fim da escravidão no Brasil, que aconteceu antes do previsto, graças a pressão do movimento abolicionista, pelas próprias lutas dos escravizados, com fugas em massa. A abolição da escravidão decretadas no Amazonas e no Ceará, em 1884, que influenciaram, por exemplo, a abolição da escravidão na colônia agrícola de Benevides, na província do Pará, poucos quilômetros da capital, Belém, resultando em fugas dos cativos da cidade para Benevides, além de que muitos senhores, já vislumbrando o fim da escravidão, já vinham alforriando seus escravizados”, detalha a historiadora.