Atendimento médico mediado por tecnologias durante pandemia do Covid-19 foi aprovado por Bolsonaro em abril; medida exclui população mais vulnerável por não abranger amplamente o Sistema Único de Saúde
Texto: Nataly Simões | Edição: Simone Freire | Imagem: Pilar Olivares/Reuters
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O exercício da telemedicina, medicina mediada por tecnologias, para auxiliar no combate à pandemia do Covid-19, o novo coronavírus, já é uma realidade no sistema de saúde privado brasileiro. A ferramenta, por outro lado, exclui a população mais vulnerável por não abranger o Sistema Único de Saúde (SUS).
O recurso possibilita o atendimento médico à distância por meio de áudio, vídeo chamada ou mensagem de texto a fim de monitorar o quadro de saúde do paciente, transferir laudos, diagnósticos e exames de maneira geral.
“Ao considerarmos que 80% dos usuários do SUS são negros, restringir a telemedicina ao sistema de saúde privado tende a deixar essa população de fora, a privando dos benefícios da tecnologia”, destaca o médico generalista Yuri Rocha, vice-presidente do Instituto Luiza Mahin (ILM), associação de médicos e estudantes negros.
No caso de São Paulo, estado com o maior número de casos confirmados (34.053) e de mortes (2.851) em decorrência do vírus no país até essa quarta-feira (6), a Secretraria Estadual de Saúde informou ao Alma Preta que somente o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP está usando a tecnologia durante a crise. Não há previsão para a tecnologia ser implementada em outros hospitais estaduais que atendem pacientes pelo SUS.
A telemedicina não substitui o atendimento presencial do médico, mas no caso do Covid-19, pode ser uma aliada no monitoramento do paciente infectado pelo vírus, conforme explica a médica de família e comunidade Ana Carolina de Paula, integrante do coletivo de médicos Negrex, da Zona Leste de São Paulo.
“Com a telemedicina, é possível monitorar a evolução da doença no paciente infectado e se a família apresenta algum sintoma. Dessa forma, evita-se que o paciente procure o hospital somente numa fase mais tardia da doença, assim como evita-se que ele procure assistência no local errado”, afirma.
Telemedicina e o SUS
O presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) sancionou, no dia 16 de abril, a lei nº 13.989 que autoriza a ampliação da prática da telemedicina enquanto durar a pandemia. Segundo a lei, a prestação do serviço deve seguir os mesmos padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial.
Na avaliação da médica Andrea Menezes Gonçalves, coordenadora de comunicação do Instituto Luiza Mahin (ILM) e membra do Coletivo Negrex, falta um plano de expansão da tecnologia para o SUS.
“É necessário saber quais as comunidades, principalmente as mais distantes, podem ser beneficiadas, uma vez que a telemedicina tem potencial para se tornar uma grande ferramenta de facilitação do contato no SUS. Em muitos casos, os pacientes de áreas de difícil acesso levam muito tempo aguardando por um encaminhamento ou transporte, quando a orientação médica é simples e pode ser feita à distância”, pondera.
A médica ressalta que ao se tratar da população negra e periférica deve-se levar em consideração a exclusão digital, o que não exclui dos governos a responsabilidade de garantir o acesso das pessoas ao atendimento médico.
“Essa parcela da população não necessariamente possui acesso às tecnologias que todos acham comum, mesmo assim devemos cobrar o governo para que essas pessoas não fiquem para trás. Se elas não têm acesso à internet e há como serem atendidas por um médico especialista via telemedicina, ela deve ter direito ao acesso de uma unidade de saúde que tenha essa tecnologia”, sustenta.
“Há exemplos de paíse do interior da África, onde os agentes comunitários são equipados com smartphones e vão até as casas das pessoas para que elas possam ser atendidas. Há muitas formas de telemedicina, o que precisamos no Brasil é de autoridades que tenham vontade de fazer com que todos tenham acesso a esse benefício”, conclui.
Vetos na lei
Dois artigos do texto original sobre o exercício da telemedicina aprovado pelo Congresso Nacional foram vetados pelo presidente Jair Bolsonaro. Um deles previa que, após a crise do Covid-19, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentaria a tecnologia. O segundo se tratava da validade das receitas médicas apresentadas em suporte digital, com assinatura eletrônica ou digitalizada do profissional que realizou a prescrição.
Para Bolsonaro, a medida ofende o interesse público e gera risco sanitário à população, por equiparar a validade e autenticidade de um documento digitalizado, e de fácil adulteração, ao documento eletrônico com assinatura digital com certificados da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).
Segundo a médica Andrea Menezes Gonçalves, a receita com assinatura digital certificada pelo ICP-Brasil é mais segura do que as receitas comuns. “O presidente da República avaliou, orientado por sindicatos, que a assinatura digital sobrecarregaria o SUS com receitas falsas. O posicionamento da maioria dos médicos é de que isso não é verdade, já que hoje em dia qualquer pessoa pode falsificar um carimbo e uma receita. É muito mais difícil fraudar uma assinatura digital, que o farmacêutico pode entrar na internet e verificar sua autenticidade, diferentemente da receita com carimbo”, analisa.