Dezenas de motoristas venezuelanos e de outros países da América Latina que procuraram refúgio no Brasil foram enganados e explorados por uma transportadora de carga chamada Transzape, que presta serviços para a multinacional alimentícia Nestlé.
Após meses de exploração, inclusive com a demissão dos colegas que tentaram reclamar as condições precárias de trabalho, o grupo de motoristas decidiu denunciar as irregularidades com a ajuda de advogados, entidades de apoio a imigrantes e organizações de caridade da igreja Católica.
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Segundo os motoristas, os estrangeiros eram contactados em Boa Vista (Roraima) com promessas de trabalho, alojamento, comida, regularização dos documentos e ajuda para trazer as suas famílias. Mas nada disso aconteceu. Eles contam que tiveram que trabalhar sem a CNH (Carteira Nacional de Habilitação), recebendo menos que o combinado, comendo pão com margarina e morando em um quarto pequeno com até 16 pessoas.
“A gente trabalhava de domingo a domingo. Entregava a mercadoria e já tinha que sair para outra viagem. Tinha que descarregar o caminhão também. Era muita exploração. Quando alguém reclamava, diziam que no Brasil era assim e que a gente estaria bem pior se estivesse na Venezuela”, contou um dos motoristas.
De quem é a transportadora responsável?
Com sede em Tubarão (Santa Catarina), a transportadora Transzape possui sócios cujos nomes não aparecem no site da empresa. De acordo com relatos coletados pela Alma Preta, são eles: Pedro e José Zapelini. Além da sede, a empresa tem outras cinco filiais. Duas em São Paulo, Cordeirópolis e Araçatuba, uma em Minas Gerais, uma na Bahia e outra em Santa Catarina mesmo.
Os trabalhadores venezuelanos ouvidos pela reportagem trabalharam principalmente em São Paulo, prestando serviços para a Nestlé. Um deles contou que foi parado duas vezes na estrada pela polícia rodoviária dirigindo o caminhão da empresa e sem habilitação. “Nas duas vezes, os policiais entraram em contato com a empresa e depois me liberaram para seguir viagem. A orientação era essa, entrar em contato com eles que se resolvia”, relatou.
Fome e demissões
Há cerca de nove meses um motorista venezuelano da transportadora foi atropelado em Sorocaba, no interior paulista, enquanto procurava algo para comer. Ele foi socorrido por amigos e levado para um hospital em Limeira, também no interior, onde ficou até se recuperar. “A transportadora não ajudou em nada. Não fez nada por ele. Depois de um tempo, mandou ele embora”, contou um colega.
A demissão de funcionários que não concordavam com as condições de trabalho era uma prática na empresa. Segundo os motoristas estrangeiros, em 7 de outubro de 2020 um dos trabalhadores participou de uma reunião no departamento de Recursos Humanos da Nestlé e contou sobre a exploração. No dia 10, três dias após a denúncia, ele foi demitido.
Venezuelanos que trabalhavam em situação análoga à escravidão na transportadora. Foto: Arquivo Pessoal
“Os outros estrangeiros foram perguntar na empresa porque tinham mandado embora o colega e eles nem responderam para gente”, relembra outro estrangeiro que trabalhou na transportadora. Quem era demitido recebia uma indenização menor do que o correto. “Eles descontaram as despesas com roupas e todos os materiais que a gente usou”, disse.
As comissões combinadas também não eram pagas, assim como as horas extras. “O pouco que a gente recebia por mês tinha que ser usado para complementar a diária que davam para a alimentação. Era excesso de trabalho, sem folgas e quase sempre estávamos com fome”, lembrou. A transportadora pagava R$ 20 por dia para todas as alimentações.
Um motorista que trabalhou 16 meses na Transzape relatou ter ficado 12 meses trabalhando sem a CNH. “Diziam que ia chegar, que era para ter calma, que ia chegar e assim a gente teve que trabalhar sem a documentação”, afirmou outro estrangeiro.
Além dos venezuelanos, um motorista cubano também foi enganado. Ele veio para o Brasil com a mulher e os filhos, mas largou o emprego por conta da exploração.
Caso será denunciado ao Ministério Público do Trabalho
Segundo relatos, a Transzape segurou a documentação dos trabalhadores e impediu que eles se organizassem e tivessem contato com canais de denúncia. O caso será apresentado pelo grupo de motoristas ao Ministério Público do Trabalho (MPT) para que investiguem as evidências de trabalho escravo e tráfico de pessoas.
Em novembro de 2017, a Transzape assinou um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) com o Ministério Público do Trabalho, em Campinas, por conta de denúncias feitas à Justiça do Trabalho sobre as condições da estrutura oferecida pela empresa aos seus funcionários. Os banheiros não tinham material de higiene, portas, lavatórios e a instalação elétrica era precária.
Os relatos dão conta ainda de que a empresa não fazia os exames médicos ocupacionais nos funcionários para saber se eles estavam ou não aptos para o trabalho, o que é obrigatório por lei. A denúncia contra a transportadora foi arquivada, em novembro de 2018, após todos os itens da TAC terem sido cumpridos.
A Alma Preta fez diversas solicitações de contato com a transportadora Transzape e com a família Zapelini por cerca de duas semanas, sem nenhuma resposta. Um funcionário da empresa que trabalha na sede em Santa Catarina e que é encarregado de fiscalizar o fluxo de trabalho dos motoristas disse, via WhatsApp, que iria passar a solicitação de esclarecimentos “a direção”, porém não deu retorno.
Os motoristas dizem que a denúncia de jornadas extenuantes, sem tempo de descanso ou folgas, podem ser comprovadas pelos relatórios de entradas e saídas nas instalações da Nestlé. A multinacional, por sua vez, informou pela assessoria de imprensa que irá analisar o caso.
Nota enviada pela Nestlé após a publicação da reportagem, às 19h:54 de 1 de abril de 2021:
“A Nestlé não tolera violações dos direitos trabalhistas, o que inclui o trabalho forçado e/ou análogo ao escravo. A companhia está comprometida em garantir que sua cadeia de fornecedores atenda à legislação referente ao tema bem como em zelar pela dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Assim, exige dos fornecedores o cumprimento dos Nossos Princípios de Gestão Empresarial, Norma de Fornecimento Responsável e Código de Conduta Empresarial. Documentos que estabelecem, entre outros, o cumprimento dos direitos humanos, especialmente em relação ao trabalho digno.
A companhia ressalta que não mantém contrato direto com os motoristas, sendo tal vínculo trabalhista sempre realizado por meio de transportadoras, que não possuem contrato de exclusividade para a Nestlé e podem atuar para outras empresas. A companhia também mantém um padrão de contratação em que, quando a transportadora fecha o serviço para a Nestlé, precisa apresentar um planejamento de viagem do caminhoneiro para aquela determinada carga, apresentando locais de parada, pousos, entre outros requisitos, com o objetivo de evitar a ocorrência de jornadas em desacordo com a legislação em vigor. Cabe destacar que a Nestlé atua com prazos de trânsito mais dilatados do que a própria prática do mercado a fim de proporcionar jornadas dignas e em estrito cumprimento da legislação.
Para garantir que os seus produtos sejam distribuídos nos mais de 5,5 mil municípios brasileiros, a Nestlé trabalha com aproximadamente 500 transportadoras que realizam mais de 1 milhão de viagens por ano. No caso citado, a Transportadora Transzape é uma das prestadoras de serviços e, assim como todas as transportadoras que trabalham para a companhia, possuem seus motoristas cadastrados em um sistema independente informatizado e integrado, incluindo registros de CPF e CNH. As informações são verificadas em tempo real em cada unidade da empresa, sendo que o carregamento e a posterior viagem só são autorizados se toda a documentação estiver regularizada.
Adicionalmente, a Nestlé realiza treinamentos periódicos para conscientização de direção segura aos motoristas que transportam nossos produtos, além de verificar o estado de conservação e manutenção de todos os veículos de forma a reduzir o nível de riscos e acidentes nas estradas.”