Em apenas um mês, a capital pernambucana registrou três casos de transfeminicídio. A cabeleireira de 37 anos, Crismilly Pérola, também conhecida por pessoas próximas por “Piu Piu”, entrou para as estatísticas que preocupam ativistas da cidade. Pérola foi encontrada sem vida às margens do Rio Capibaribe, na Comunidade da Beira Rio, na Zona Oeste do Recife. Negra e travesti, ela foi vítima de um disparo por arma de fogo que transfixou uma de suas mãos e atingiu o seu pescoço a levando à óbito. O sepultamento ocorre na tarde desta terça-feira, no Cemitério da Várzea.
De acordo com parentes, Pérola, natural da Comunidade das Malvinas, saiu da sua residência, por volta das 21h do último domingo (4), avisando aos familiares que iria à uma festa entre amigos. Na madrugada de segunda-feira, às 3h da manhã, disparo de arma de fogo foi ouvido e populares reconheceram o corpo da vítima e avisaram a um tio que a identificou. O homicídio foi encaminhado para o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) e segue em investigação.
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Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, Isabelle Soares, prima de Pérola, afirma que ela e sua família não conseguem entender os motivos pelos quais levaram ao falecimento da parente. “Ela era um amor de pessoa, não só querida por nós, mas por toda a comunidade que a conhecia. Estamos todos inconformados que foi dessa forma. Não conseguimos entender os motivos. Ela não era envolvida com nada criminoso para ter uma morte brutal como esta. Isso revolta demais a todos nós”, declara.
Isabelle ressalta a preocupação com outros membros LGBTQIA+ da família após a morte da prima. “Nós somos uma família que não tínhamos Crismilly apenas da comunidade. Temos primos e, inclusive, o irmão com quem ela morava no mesmo terreno da nossa avó, até tempos atrás também se identifica enquanto homossexual. Pensamos, após o que aconteceu com ela, que isso pode se estender para os outros, o que nos traz medo”, pontua.
Ainda segundo familiares, a vítima morava no mesmo terreno de sua família e conseguia renda para casa alternando entre atendimentos de estética, como manutenção de unhas e cabelos, como também juntando garrafas pets e tampas de latinhas em troca de dinheiro. Durante a noite, quando não tinha clientes, ajudava no atendimento de um bar próximo à sua residência.
Questionada sobre o que a família espera sobre os desdobramentos do caso, a prima afirma que todos pedem por justiça o quanto antes. “Enxergamos esse crime como um ato de covardia. Será que ninguém pode ter a liberdade de ser diferente do outro? Nós pedimos por justiça e visibilidade do caso. Torcemos para que a mídia não esqueça e faremos de tudo para que Crismilly seja lembrada como ela merece ser, por mais que todo o processo seja doloroso”, finaliza Isabelle.
Sucessão de casos no Recife
O caso se soma aos sucessivos ataques feitos por crime de ódio e discriminação à pessoas trans e travestis na capital pernambucana. No último dia 18 de junho, a transexual negra Kalyndra Selva foi encontrada morta com marcas de estrangulamento dentro de sua própria residência, no bairro do Ipsep, na Zona Sul do Recife. O ex-companheiro é o principal suspeito. Já no último dia 24, em um dos pontos mais movimentados da cidade, a travesti Roberta da Silva teve 40% de seu corpo queimado no Cais de Santa Rita, na região central. Ela, que segue internada no Hospital da Restauração, teve seus dois braços amputados por complicações das queimaduras na pele. Um adolescente foi identificado como autor do crime.
Para a articuladora política da AMOTRANS-PE (Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco), Janaína Castro, os casos não são isolados e sempre ocorreram na região. “Infeizmente, temos um quadro que não é de hoje. Só que agora, vivendo em uma gestão nacional conservadora, as pessoas preconceituosas não se escondem mais e não tem pudores para externar seus ódios, visto que uma visibilidade tem sido dada a nossa população. Vemos esses casos como resposta para nos fazer recuar e voltar para a escuridão que a sociedade cis-normativa sempre nos colocou”, denuncia a ativista.
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Questionada sobre possíveis políticas públicas a serem implementadas em caráter de urgência, Janaína afirma que há uma falta de perspectiva de ação, tendo em vista as negligências no atendimento básico às necessidades da população. As políticas públicas não só para nossa população vem sendo negligenciadas e isso só se agrava com o passar do tempo. Uma lei que puna severamente essas agressões e uma estrutura que possa acolher as vítimas que sobrevivem a essas atrocidades seriam bem vindas. A respeito de Roberta, que encontra-se em um leito hospitalar, para onde vai depois de uma possível alta? Quem irá acolher? Nós, integrantes de movimentos sociais, com o que recebemos das poucas doações, não temos condições de assistir todas as vítimas”, finaliza.
Como estratégia emergencial de proteção às pessoas trans e travestis do Recife e Região Metropolitana, uma reunião foi convocada pela mandata Juntas, representada pela co-deputada Robeyoncé Lima, advogada negra e transexual, com outras frentes políticas de municípios como Olinda e Paulista e com associações em defesa dos direitos da população LGBTQIA+. O encontro foi marcado para a manhã desta terça-feira (6) e segue ao longo da tarde.
“Nós precisamos estar em diálogo com os movimentos sociais por estarmos em um momento delicado e importante para a região. Estaremos articulando estratégias para cobrarmos do Governo de Pernambuco ações propositivas para o enfrentamento aos crimes de ódio e transfobia que estão ocorrendo em todo o estado”, conta Robeyoncé Lima, em vídeo encaminhado à redação da Alma Preta Jornalismo.
Estatísticas
Em dossiê apresentado no último mês de abril pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2020, o mapeamento anual encontrou um número recorde de assassinatos contra travestis e mulheres trans. Ao todo, 175 casos em âmbito nacional foram catalogados contra 44 nos Estados Unidos. Já neste ano, nos quatro primeiros meses, enquanto nos EUA foram 19 pessoas trans assassinadas, no Brasil os números já batem a marca de 56 assassinatos – sendo 54 mulheres trans/Travestis e 2 homens trans/transmasculinos.
Ainda de acordo com o documento apresentado, o acirramento das vulnerabilidades se dá pelo impacto da pandemia nos fatores sociais que segue em curso e pelas pessoas trans que se encontram marginalizadas e continuam invisíveis para as políticas públicas, onde, segundo a associação, o estado tem falhado na proteção e na garantia do direito à vida.
“A dinâmica do assassinato contra pessoas trans não segue o mesmo padrão dos homicídios em geral pelo caráter que agrega o cruzamento entre o racismo, a violência de gênero e a transfobia estrutural direcionada as vítimas, assim como a forma e intensidade com que os assassinatos são cometidos”, aponta o dossiê.
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