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Único negro autodeclarado entre conselheiros federais da OAB, André Costa sonha com mais representatividade

21 de dezembro de 2020

Em entrevista exclusiva, advogado eleitoralista e autor da proposta de cotas raciais de 30% para advogados(as) negros(as) na OAB por 30 anos, fala sobre sua trajetória profissional e os sonhos que o movem na defesa por mais direitos e equidade racial em instituições públicas e privadas.

Texto: Lenne Ferreira | Imagens: Divulgação/OAB

“Ser advogado, ou seja, ser aquele que luta pelos direitos das pessoas que precisam reparar uma injustiça sempre preencheu meus sonhos”. O advogado André Costa sonha muito para si e para os outros também. Reparação é a  palavra-chave que parece nortear a trajetória desse filho de nordestinos do Ceará e o primeiro a conquistar curso superior da sua família. Único negro declarado dos 81 conselheiros federais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), André quer mais representatividade e acaba de entrar para a história da Advocacia brasileira por lutar por reparação para negros e negras dentro de uma instituição majoriatariamente branca.

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Com 25 anos de carreira, o advogado é autor da proposta que reserva 30% de cota racial nas eleições da OAB, recentemente aprovada, e que começa a ser aplicada no pleito de 2021. A nova regra vale por 10 eleições, no caso, três décadas, e foi comemorada pela sociedade civil e movimentos negros, especialmente compostos por juristas negros e negras, que movimentaram uma campanha nacional em defesa da medida. 

Co-fundador e o primeiro presidente da Comissão de Combate à Discriminação Racial e de Defesa das Minorias da seccional Ceará, André ainda comemorava a aprovação da cota racial quando recebeu a notícia, na quinta-feira (17), que foi designado, por Ato da Presidente da Câmara dos Deputados para compor a Comissão de Juristas da instituição. A nova missão, que ele já assumiu, consiste em avaliar e propor estratégias normativas para o aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. O reconhecimento do seu trabalho é o resultado de uma trajetória de seriedade e compromisso com as causas pelas quais se sente no dever de lutar desde quando decidiu cursar Direito, um curso historicamente protagonizado por pessoas brancas. 

Advogado especializado em Direito Eleitoral e Direitos Políticos e presidente do Instituto Cearense de Direito Eleitoral (ICEDE), André também foi autor da proposta, aprovada no último 17 de agosto, de instituição do “Prêmio Luiz Gama da OAB Nacional” para homenagear não só o grande abolicionista como também juristas que se destacam na defesa e na promoção da justiça social.

Em entrevista exclusiva à agência Alma Preta, ele fala sobre referências como Sílvio Almeida e como o livro “Racismo estrutural” mudou sua percepção, da influência do ativista e articulador social, o amigo Preto Zezé (presidente nacional da Central Única das Favelas), além de reconhecer a importante contribuição dos movimentos negros para as conquistas pela promoção dos direitos civis da comunidade afrodescendente do Brasil.

André acredita  que a “educação jurídica, de forma interdisciplinar e de modo transdisciplinar, tem muito a contribuir para a construção de uma formação jurídica antirracista” e sonha com o dia em que verá os alunos do curso de Direito lendo obras de nomes como Frantz Fanon, Luiz Gama, Angela Davis, Abdias Nascimento, Achille Mbembe, Sílvio Almeida e Carolina Maria de Jesus. “Seria uma revolução na interpretação e na aplicação das normas jurídicas”, descreve. Confira e entrevista completa:

Agência Alma Preta: O senhor é natural do Ceará?

André Costa: Minha família é do Ceará. Nasci no Rio de Janeiro capital, onde meus pais foram morar no final da década dos anos 60 para trabalhar e vender produtos do artesanato cearense. Quando completei 04 anos de idade vim morar no Ceará com uma minha tia e bisavó paternas. Meus pais somente voltaram a residir no Ceará em 1982. Considero-me cearense e nordestino porque, excluindo os 04 anos no Rio, quando criança, e 02 anos em Florianópolis/SC, já na vida adulta, sempre morei no Ceará nesses 49 anos de existência. Hoje vivo entre Fortaleza, a capital, e Juazeiro do Norte, na região sul do estado. 

O interesse pelo Direito começou cedo? Quando o senhor descobriu a vocação e resolveu exercer uma profissão que tem sido historicamente ocupada por pessoas brancas?

Realmente, a história dos cursos de graduação em Direito precisa ser recontada. Sabemos que o Direito a Engenharia e a Medicina fazem parte das chamadas profissões imperiais. Essas sempre foram locais naturalizados como lugares de pessoas não negras. Os cursos jurídicos, criados em agosto de 1827, um em São Paulo e outro em Olinda, tiveram como objetivo proporcionar a formação de juristas para ocupar os cargos no Estado Nacional e os negros não tinham acesso porque eram os escravizados.

Na adolescência pensava em cursar Psicologia. Entretanto, no início do Ensino Médio tive acesso ao livro “Brasil: Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns e outros ativistas de direitos humanos. A leitura desse livro mudou minha percepção de mundo e resolvi que o Direito seria minha área de atuação profissional, mas também de atuação social. Desde então eu decidi que queria advogar. Meu pai, falecido em 2013, foi o meu grande incentivador. E ser advogado, ou seja, ser aquele que luta pelos direitos das pessoas que precisam reparar uma injustiça, sempre preencheu meus sonhos, mesmo nos momentos mais difíceis da minha trajetória universitária. Nunca esqueço que sou a primeira pessoa da minha família a concluir um curso superior, ainda em 1995. Já se passaram 25 anos…

Onde o senhor estudou, em que ano se formou e quando entrou para o quadro da OAB?

A maior parte da minha trajetória estudantil foi em escolas públicas. Lembro com muito carinho das escolas públicas estaduais Renato Braga e Joaquim Antonio Albano. Cursei a graduação em Direito na Universidade de Fortaleza-UNIFOR. Ingressei em 1990 e me formei em 1995. Para ser exato, colei grau em 14 de julho de 1995 e, após aprovação no Exame da Ordem, recebi minha inscrição como advogado em 31 de outubro do mesmo ano. Muitas lembranças boas do período de graduação. Participei ativamente do movimento estudantil naquela época. Fui secretário-geral (1991/1992) e presidente (1992/1993) do Centro Acadêmico de Direito e coordenador nacional dos estudantes de direito (1993/1994).

Qual o processo institucional no percurso até ocupar um cargo no Conselho Federal da OAB?

É a primeira vez que assumo um cargo em um órgão da OAB. Fui eleito nas eleições de novembro de 2018 e tomei posse em fevereiro de 2019. Conforme o Estatuto da Advocacia e da OAB os órgãos da Ordem são o Conselho Federal, os Conselhos Seccionais (estaduais), as Subseções (regionais ou municipais) e as Caixas de Assistência da Advocacia. Minhas únicas experiências anteriores no âmbito da Entidade tinham ocorrido entre 2007/2009: fui cofundador e o primeiro presidente da Comissão de Combate à Discriminação Racial e de Defesa das Minorias da OAB Ceará e membro da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade da OAB Federal.

O processo institucional para ocupação dos cargos acontece via escolha da advocacia. A eleição dos membros de todos os órgãos da OAB será realizada na segunda quinzena do mês de novembro, do último ano do mandato, mediante cédula única e votação direta dos advogados regularmente inscritos. Consideram-se eleitos os candidatos integrantes da chapa que obtiver a maioria dos votos válidos. A chapa para o Conselho Seccional deve ser composta dos candidatos ao conselho e à sua diretoria e, ainda, à delegação ao Conselho Federal e à Diretoria da Caixa de Assistência dos Advogados para eleição conjunta. A chapa para a Subseção deve ser composta com os candidatos à diretoria, e de seu conselho quando houver.

O senhor já sofreu algum tipo de racismo, de forma explícita, dentro da instituição?

Nunca. De modo direto, não. Como sempre digo, o problema nos órgãos da OAB não são vinculados às manifestações explícitas de racismo, mas na perspectiva institucional e estrutural. Durante a minha vida, muitas vezes. Eu sei e senti na pele discriminações diretas e indiretas, muitas vezes veladas: apelidos, piadas, referências negativas à cor da minha pele etc. Faço questão de recordar o que escrevi na apresentação da separata “Escritos sobre Racismo, Igualdade e Direitos”, de minha autoria: “A  partir  de  2004,  resultado  de  leituras,  reflexões  e  interação com valorosas pessoas que, cotidianamente, lutam pela promoção da igualdade racial no país – experiência que me levou a “descobrir-me negro”  –  comecei  a  focar,  sem  abandonar  a  pauta  geral  dos  direitos humanos  –  imprescindíveis,  universais  e  indivisíveis  –  em  temas  e assuntos  relacionados  ao  racismo,  ao  preconceito  e  à  discriminação raciais sofridos por nós negros e negras, vítimas de uma das maiores atrocidades já cometidas na história da humanidade: 358 anos escravidão no território brasileiro.” Aprendi muito e até hoje aprendo com o amigo-irmão Preto Zezé, presidente da CUFA, o qual me ensinou: “Muitas vezes, André, leva-se muito tempo para se descobrir que se é negro e como é ser negro ou negra no Brasil”.

A sua condição de homem negro numa instituição de maioria branca te impulsionou a fazer o debate racial dentro desse espaço?

Não tenho a mínima dúvida sobre isso. Desde sempre, especialmente depois que me “descobri negro” e aprendi como são constituídas as relações raciais no Brasil, aproveito os espaços públicos e privados para combater os preconceitos e as discriminações raciais. E jamais perderia a oportunidade de levantar esse tema estando como titular do Conselho Federal da OAB, instituição não racista e que atuou pela aprovação das cotas raciais no ensino superior e no serviço públicos no país no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). O que queremos agora é uma OAB antirracista, ou seja, com políticas internas para garantir o acesso da advocacia negra aos cargos de direção e decisórios. 

Como se dará o acompanhamento do cumprimento da cota racial nos processos eleitorais da OAB?

O Conselho Federal da OAB vai regulamentar o processo eleitoral através de suas regras internas e fará constar o que foi aprovado: cotas raciais de 30% para advogados(as) pretos(as) e pardos(as) e paridade de gênero, a partir das eleições de 2021. Vou participar desse processo de regulamentação juntamente com a advocacia negra. Vamos fiscalizar a implementação em todos os órgãos da OAB.

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Cearense por parte de pai e de mãe, André Costa acredita que uma formação antirracista começa nas universidades . Foto: Divulgação/OAB

Qual a importância de garantir o acesso de mais pessoas pretas na OAB?

A OAB é a maior entidade de classe do mundo constituída por mais de 1 milhão e 200 mil inscritos(as). A Constituição Federal de 1988 colocou a atuação da advocacia em patamar constitucional ao estabelecer no seu art. 133 que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”, integrando as funções essenciais à Justiça.

A Ordem indica advogados/advogadas para atuarem como juízes/juízas de Tribunais Estaduais (desembargadores estaduais), de Tribunais Federais (desembargadores federais) e de Tribunais Superiores (ministros do Tribunal Superior do Trabalho – TST, Superior Tribunal Militar – STM e Superior Tribunal de Justiça – STJ) e conselheiros do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, estas duas últimas, “instituições públicas que visam aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário e do ministério público brasileiros, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual”. A OAB tem a prerrogativa de ingressar com ações constitucionais para questionar e invalidar deliberações dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de qualquer instância. A força e o potencial da OAB são enormes e parcela da população, infelizmente, não tem o menor conhecimento.

Implementar políticas afirmativas internas a fim de garantir a participação de advogados negros e de advogadas negras nos cargos, nos órgãos e na direção da OAB não se resume às importantes questões de diversidade e de representatividade racial. Tratar-se, principalmente, de assegurar a participação de negros e de negras nas instâncias de decisão da maior entidade classista nacional e internacional. A decisão da OAB irá repercutir nas demais entidades e instituições do Brasil e do mundo.

Como o senhor percebe o tratamento que é dado ao tema racismo pelos advogados em geral?

O mundo da advocacia faz parte do mundo do direito que integra o mundo da vida. Ora, se no nosso dia a dia o racismo, o preconceito e a discriminação raciais se revelam na forma de comportamentos individuais e fatos institucionais e estruturais, no mundo da advocacia não seria diferente. Vou repetir o que tenho dito em diversas oportunidades: A educação jurídica, de forma interdisciplinar e de modo transdisciplinar, tem muito a contribuir para a construção de uma formação jurídica antirracista. Pretendo propor ao CFOAB que defenda junto ao MEC a criação e a implantação da disciplina “Direito e Relações Raciais” nos cursos de graduação em Direito para que os futuros profissionais das carreiras jurídicas possam conhecer a realidade do racismo brasileiro pelo viés jurídico, econômico, social e político e estudar as normas nacionais e internacionais que tratam sobre o tema. Fico a imaginar os alunos lendo as obras de Frantz Fanon, Luiz Gama, Angela Davis, Abdias Nascimento, Achille Mbembe, Sílvio Almeida, Carolina Maria de Jesus, Suely Carneiro, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Asad Haider, Cornel West, Lélia Gonzalez, Guerreiro Ramos, Kabengele Munanga, Adilson Moreira, Lígia Ferreira Milton Santos…Seria uma revolução na interpretação e na aplicação das normas jurídicas.

Os movimentos como Juristas Negros fizeram uma grande mobilização nacional em defesa das cotas raciais na OAB. O senhor acredita que a pressão da sociedade civil influenciou na aprovação da reserva de vagas para pessoas pretas?

Diversos movimentos se mobilizaram para aprovação das cotas raciais, dentre eles, o Movimento das Juristas Negras e dos Juristas Negros, a Comissão Nacional e as Comissões Estaduais de Promoção da Igualdade da OAB. Costumo lembra que toda vitória é sempre resultado de um conjunto de forças que participam de modo direto ou indireto. O meu protagonismo se revela pelo fato de eu ser um Conselheiro Federal da OAB, o único auto declarado negro e autor da proposta aprovada em seu inteiro teor, repita-se: 30% por 30 anos. Portanto, a contribuição individual e coletiva de todos os movimentos sociais que lutam contra o racismo no Brasil e que lutaram pela aprovação da reserva de vagas para advocacia negra na Ordem foi essencial. Essa conquista histórica, a primeira em 90 anos de existência da OAB, é uma vitória coletiva! 

Além do senhor, outras pessoas negras compõem o Conselho Federal da OAB?

O fato de eu ser um único Conselheiro Federal autodeclarado negro, conforme destacado pelos meios de comunicação, não significa que não tenham mais dois ou três colegas de CFOAB que sejam advogados/as negros/as (pretos/as ou pardos/as). Entretanto, se eles não se assumem como negros/as não cabe a mim apontar o dedo, afinal esse processo é um profundo reposicionamento pessoal e político. Por isso, os ganhos da aprovação dessa política especial e temporária vão do plano material ao plano simbólico.

Mais de 132 anos da abolição da escravatura da população negra e a sociedade brasileira ainda tem uma dívida histórica com a população negra, que teve o acesso negado a todos os espaços de poder. O senhor acredita que mudar a cor das instituições é um caminho para diminuir as disparidades sociais? Porque?

O racismo brasileiro não é apenas resultado direto da escravização de pessoas negras por 358 anos. É resultado da arquitetura montada para excluir metade da população da distribuição da renda e da riqueza. Transformaram diferenças em desigualdades raciais. E estas são perpetuadas nas desigualdades sociais, econômicas e jurídicas. As estatísticas oficiais demonstram a perversa realidade brasileira. O mito da democracia racial brasileira há muito foi desmascarado: as distâncias abissais entre as condições de vida das pessoas brancas e das pessoas negras são inegáveis. Existem pobres brancos? Sim. É óbvio. Todavia, por que 70% dos pobres são negros? Aqui estamos no 132º ano de pós abolição inacabada. Assim, a eliminação da exclusão socioeconômica dos afrodescendentes brasileiros não se resume a combater os comportamentos individuais ou de supremacistas brancos ou dos racistas de plantão. É imprescindível também eliminarmos o racismo institucional e o racismo estrutural. Devemos exigir que as instituições, entidades e os poderes públicos implementem ações, políticas e programas para que os objetivos fundamentais da República previstos na Constituição Federal sejam concretizados. E tudo isso passa pela democratização daqueles espaços de poder.

O senhor acredita que as recentes manifestações contra as mortes de jovens negros no Brasil têm tensionados os diversos campos da sociedade a refletirem mais sobre o racismo estrutural?

O constrangimento ético é cada vez maior. E a reação do Movimento Negro também. Aliás, o que há de reação ao racismo e de conquistas a favor da população negra em nosso país tem a contribuição direta ou indireta dos movimentos sociais. Não tenho dúvidas que os meios de comunicação comprometidos com a emancipação esférica das pessoas negras, como o Alma Preta Jornalismo, têm ajudado bastante na construção de uma consciência negra. E as redes sociais facilitaram a troca de informações e diminuíram as distâncias. Já não é possível esconder os fatos e os dados com tanta facilidade. Todos querem ser antirracistas. Porém, mais que uma reflexão ou um desejo superficial de ser o que não se é, precisamos de alterações profundas nas relações e na lógica econômicas pautadas, do início ao fim, no combate às desigualdades raciais. Não é suficiente enviar flores às vítimas ou às suas famílias. O que precisamos é que não haja vítimas. O que necessitamos é de políticas públicas que privilegiam e garantam os direitos sociais de todos os brasileiros. Todos. Negros, indígenas e brancos. E para isso precisamos de políticas universais mescladas com políticas focalizadas, as chamadas ações afirmativas.

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