As mulheres foram as principais vítimas de violência e violações de direitos humanos em instituições de internação psquiátrica e saúde mental de janeiro até o final de maio de 2022. De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), 151 denúncias do gênero foram registradas neste ano, sendo que em 30 casos houve violência contra a mulher.
Em 70 casos registrados pela pasta, as vítimas eram mulheres, 52 homens e em 29 ocorrências não foi declarado gênero. Das vítimas, 61 não declarou raça, 47 eram brancas, 31 pardas, 10 pretas e 2 amarelas. No caso das mulheres negras (soma de pretas e pardas), 20 delas foram vítimas, sendo uma delas de comunidades tradicionais quilombolas. Do total de vítimas, 45 delas possuem deficiência intelectual.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
O ministério ainda aponta que o estado de São Paulo lídera as denúncias (40) de violência em manicômios, hospitais psiquiátricos e casas de saúde mental. Minas Gerais está em segundo lugar, com 29 casos, e o Rio de Janeiro conta com 20 ocorrências até o momento.
As violações, de acordo com a pasta, estão relacionadas majoritariamente à integridade das vítimas, sendo que em 95 denúncias as violências ocorreram diariamente durante o período de internação. Dos casos, 66 foram denunciados por terceiros, 62 pela própria vítima, e as demais vieram a partir de denúncias anônimas.
Os suspeitos de maus tratos, segundo o MDH, são principalmente os cuidadores ou prestadores de serviços para a instituição de saúde mental.
As políticas públicas em saúde mental
A rede de atenção à saúde mental brasileira constitui o Sistema Único de Saúde (SUS) que regula e organiza, em todo o território nacional, as ações e serviços na área nas três esferas de governo: federal, municipal e estadual. Pela lei, são princípios do SUS o acesso universal, público e gratuito às ações e serviços de saúde; a integralidade das ações; a equidade da oferta de serviços, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; a descentralização político-administrativa; e o controle social das ações.
Compartilhando desses princípios, a Política Nacional de Saúde Mental busca consolidar um modelo de atenção aberto e de base comunitária, orientado pelo respeito à dignidade humana. Essa política se organiza a partir da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), criada pelo Ministério da Saúde em 2011 para sistematizar o mecanismo responsável por cuidar, articular e promover a atenção e o acesso a políticas públicas para a pessoa com transtorno mental.
A RAPS é o reflexo de uma reordenação que aconteceu na atenção à saúde mental no Brasil a partir da Lei 10.216/2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica. Essa legislação, consolidada por meio de uma ampla participação popular, transforma a lógica da segregação e do asilamento para a perspectiva de antimanicomial e de reforço da cidadania da pessoa com transtorno mental. Este modelo de cuidado investe em uma atenção multidisciplinar, focada na inclusão e na autonomia das pessoas com transtorno mental a partir de um rearranjo dos serviços e dos investimentos públicos na área.
A RAPS é constituída por diversos equipamentos do SUS como Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Básica, Estratégia de Reabilitação Psicossocial, Atenção Hospitalar e Atenção Psicossocial Estratégica. Um dos equipamentos mais importantes são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que focam os cuidados na particularidade de cada sujeito, integrando-o à sociedade.
Em 2019, com o governo Bolsonaro, tais políticas sofreram uma reformulação onde comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos ganharam mais força. A nota tecnica nº 11/2019 do Ministério da Saúde explica a nova Política de Saúde Mental, que favorece tratamentos como eletroconvulsoterapia (ECT), comumente chamada de eletrochoque, dizendo que “assim como psicocirurgias mais recentes, é objeto de um debate científico, bioético e judicial acirrado” e que “tem boa eficiência com depressão”. A cultura medicalizante passaram a ter mais incentivo do que os CAPS ou outras instituições do SUS que trabalham de forma mais humanizada.
No final de 2021, por exemplo, o presidente sancionou a Lei Complementar 187, que inclui as comunidades terapêuticas entre as entidades que contarão com imunidade tributária de contribuições à seguridade social. A matéria foi aclamada pela maioria da bancada conservadora da Câmara dos Deputados e fortalecida pelo vice-presidente da Casa Marcelo Ramos.
‘Paro de me tratar, mas nunca mais passo por isso’, relata vítima
A estudante de Direito, Aline Campos, de 21 anos, ficou por três meses em uma instituição de saúde mental após um episódio de mania, estado que faz parte do espectro do transtorno afetivo bipolar (TAB) tipo 1. Diagnósticada há apenas oito meses, a estudante conta que foi alvo de deboche por parte dos funcionários da instituição, localizada no interior do estado de São Paulo.
“Quando saiu o caso do morador de rua que teve uma relação sexual com uma mulher que também era bipolar, eu descobri por meio dos enfermeiros e cuidadores, pois na época estava internada. Eles começaram a tratar quem era bipolar com desdém, dizendo que não transariam com ‘mulher doida’, por mais gostosa que fosse”, relata a jovem negra.
A mãe de Aline, Eliete Campos Bezerra, diz que a filha voltou muito envergonhada do próprio diagnóstico e, ao relatar à mãe o ocorrido durante o período de internação, dona Eliete decidiu entrar com ação judicial contra o local.
“O psiquiatra dela sugeriu que a gente internasse a Aline até ela estabilizar, já que era tudo muito novo para nós e para ela. Se eu soubesse que iam ridicularizar a minha filha eu nunca ia mandá-la para aquele lugar. Ela estava em desequilíbrio, mas agora está negando o tratamento. Olha, é muito difícil”, desabafa Eliete.
A vítima, por sua vez, afirmou à reportagem que prefere parar com o tratamento da bipolaridade do que ser internada novamente. Ela afirma que só está tomando a medicação por consideração à mãe, mas mesmo assim, não aceita tomar todos os remédios por medo de que o médico que receitou esteja fazendo ela se sentir pior.
“Eu paro de me tratar mas nunca mais passo por isso. Eu não confio em ninguém de lá [casa de saúde mental], então se o meu psiquiatra mandar, eu tomo certinho o que me receitaram lá. Do contrário, eu vou parar com tudo”, diz a jovem.
“As pessoas não imaginam o que é estar em internato, o mínimo que a gente espera é que quem trabalha ali saiba lidar com a tempestade dentro de nós. Aí um ‘cara’ abusa de uma mulher em vulnerabilidade, e pronto, a vida de todo bipolar vira um inferno através de quem deveria estar cuidando de nós. É desumano”, completa a estudante.
Aline Campos está processando a instituição e, por meio de orientação do advogado da família, prefere não divulgar a localidade ou nome da casa de saúde mental.
O que dizem os especialistas
Homem, negro, médico formado pela pela Universidade de Brasília (UnB), psicanalista e psiquiatra formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Lucas Oliveira conta que a falta de recurso para uma política humanizada dissolve a boa saúde mental pública tratando, hoje, a internação como mecanismo principal de tratamento. O que, segundo ele, deveria ser a última medida a ser adotada.
“Existe inclusive a internação domiciliar, que não tira o indivíduo de dentro de casa, do convívio com as pessoas. Desde que a família se comprometa e tenha condições de manter os cuidados, é super recomendado”, diz. Esse e outros tipos de tratamentos humanizados dependem de uma boa condução médica e de política pública.
No entanto, de acordo com o especialista, a categoria médica também não está capacitada para trabalhar a saúde mental. Lucas explica que é necessário um tempo de escuta do paciente e de conversa sobre suas dores e emoções, mas isto quase nunca acontece. De acordo com ele, um médico costuma interromper o paciente com menos de 2 minutos de diálogo.
“Os médicos não sabem lidar com a questão, ainda mais quando se trata de uma pessoa negra. A categoria que mais está preparada para esse tipo de cuidado é a enfermagem, ainda assim são mal reconhecidos e mal remunerados”, avalia o médico.
Oliveira conta que, trabalhando em alas e emergências psiquiátricas do SUS, já presenciou diversas violações dos direitos humanos, tanto físicas como psicológicas.
“Bater, agredir verbal e fisicamente, isso é, sim, recorrente, mas vale destacar a coerção, o retirar a capacidade de expressão do outro. Quando um paciente chega na ala psiquiátrica, é comum os profissionais atestarem a ausência de juízo crítico, que é a falta de capacidade de discernimento e de falar por si. Assim, eles podem fazer o que quiserem, podem medicalizar a vontade, podem implantar tratamentos diversos que tiram a humanidade da pessoa, ainda mais se for uma pessoa negra”, diz.
Em se tratando de mulheres negras, o médico explicou que é muito fácil de perceber as diferenças no tratamento. “Elas costumam receber diagnósticos muito mais pesados e com muito mais facilidade”, adverte. Para Lucas, o fato de um imaginário social atribuir às mulheres negras um estereótipo agressivo, de força bruta e desumano, faz com que elas estejam vulneráveis às “perversidades do sistema agressor”.
“Vi mulheres tomando medicações fortes logo na primeira passagem pela psiquiatria. Mulheres que sofrem com o racismo desenvolvem sintomas típicos para isso. Por isso, é importante racializarmos a saúde mental, ter um olhar para como o racismo atravessa as pessoas”, explica.
Lucas e outros profissionais da saúde mental negros estão criando o Tratado de Psicologia Preta (TRAPP), em que as particularidades do povo negro deverá ser observado. Para o médico esse é uma forma da luta antirracista também adentrar o campo da psicologia, da psiquiatria, psicanálise e todos as modalidades profissionais que trabalham com a saúde mental.
Leia também: ‘Racismo agrava esgotamento mental de pessoas negras na pandemia’