Obras estão em cartaz na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais. A programação vai até 1º de fevereiro
Texto: Amanda Lira e Gabriel Araújo | Imagem: Divulgação
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Uma reportagem do Projeto Enquadro
A 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou na última sexta-feira (24) e conta com uma quantidade inédita de cineastas negros. Ao todo, são mais de 30 diretoras e diretores negros com obras em cartaz durante o festival, que irá até 1º de fevereiro.
Realizado sempre no início do ano, o evento é um dos principais do setor e costuma apontar caminhos do cinema brasileiro. “Não é necessariamente uma mostra que destaca as tendências do cinema como um todo. É mais focada em descobertas e em pessoas que não têm uma carreira tão longa ou que estão dispostas a arriscar”, explica uma das curadoras da mostra, Tatiana Carvalho, que é uma das responsáveis pela seleção dos filmes da mostra.
Conversamos com a profissional para saber um pouco mais sobre as produções de profissionais negros em exibição e sobre os filmes que devem permanecer em destaque ao longo do ano. No repertório, há filmes para todos os gostos: curtas e longas-metragens, documentários e ficções.
Confira a breve seleção com comentários de Tatiana Carvalho:
1. Pattaki, de Everlane Morais
Neste documentário, de 2019, os peixes agonizam à beira-mar à medida que a água invade a cidade e forma espelhos que distorcem sua imagem. Na noite densa, quando a lua sobe a maré, esses seres, que vivem em uma vida diária monótona sem água, são hipnotizados pelos poderes de Iemanjá, a deusa do mar.
“Pattaki” é uma fábula da criação do mundo. A diretora o chama de documentário, mas é uma obra muito performática, que trabalha numa mise en scène auto-elaborada a partir de uma mitologia em torno da água. E aí a gente se vê numa encruzilhada, como a de Exú – epistemológica.
Além disso, esse filme é o resultado da formação de Everlane em Cuba e foi selecionado para a mostra competitiva do 2020 Sundance Film Festival, nos EUA. A diretora, inclusive, estará representando o curta no estado norte-americano de Utah, e por isso não comparece à Mostra de Cinema de Tiradentes.
Duração: 21 minutos
2. Sem asas, de Renata Martins
Zu é um garoto negro de doze anos. Ele vai à mercearia comprar farinha de trigo para a sua mãe e, na volta pra casa, descobre que pode voar. Na Mostra de Tiradentes, existem filmes de narrativas bastante tradicionais e que trazem um pouco de fábula. “Sem asas”, de 2019, é uma dessas obras e, justamente por usar o tradicional, é tão potente.
O filme apresenta ao público uma família no estilo comercial de margarina em que todos os membros são pretos, o que já não é visto tradicionalmente nas telas. Além dessas imagens, a obra também denuncia a forma como um adolescente negro, integrante dessa família, é visto e abordado nas ruas pelas forças policiais.
Duração: 20 minutos.
3. Seremos ouvidas, de Larissa Nepomuceno
Como existir em uma estrutura sexista e ouvinte? Gabriela, Celma e Klicia, três mulheres surdas com realidade diferentes, compartilham suas lutas e trajetórias no movimento feminista surdo.
Esse é um documentário, de 2019, realizado em Curitiba, no Paraná, que não tem nenhuma questão direta com a negritude. É, na verdade, um filme sobre mulheres surdas e que fala sobre relacionamentos abusivos. O filme provoca a questão: como viver numa sociedade machista sendo uma mulher surda?
Trata-se de um documentário de estrutura clássica, com aquilo que chamaríamos de cabeças falantes. Mas, no filme, todas as mulheres conversam em libras e têm as falas legendadas.
Duração: 13 minutos.
4. Papo franco, de Luis Lomenha
O documentário, também de 2019, conta a história de uma advogada e mãe de duas filhas, nascida no interior da Paraíba. Marinete veio jovem para o Rio, formou-se em Direito, casou-se e teve duas filhas. Desdobrava-se entre o trabalho árduo pelas causas que achava justas e a criação das meninas, com sucesso: uma socióloga e uma professora. A mais velha, Marielle, chegou à Câmara Municipal do Rio, sempre defendendo os excluídos e incomodando poderosos. Por isso foi executada no início de 2018. Católica fervorosa, Marinete lida com a dor da perda brutal não só com a fé, mas com o apoio da família, amigos e companheiros, e a certeza de que a luta da filha deu frutos.
É um documentário bem clássico, que aborda a história da mãe da Marielle Franco. É uma obra que observa sob outro viés o crime: sob o ponto de vista de uma família que foi atingida. Foi uma execução que abalou um país e uma família.
Duração: 16 minutos.
5. Looping, de Maick Hannder
É uma ficção, do ano passado, interessante pela dimensão de fabulação. Além disso, é um filme que usa uma técnica que dialoga com gifs e boomerangs, mas que faz algo mais sofisticado do que isso para dizer do afeto de dois jovens meninos gays. Maick [o diretor] tem uma câmera apaixonada pelo corpo de um jovem negro.
Duração: 12 minutos.
6. Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira
“Um Dia com Jerusa”, de 2019, conta o encontro da sensitiva Silvia, uma jovem pesquisadora de mercado que enfrenta as agruras do subemprego enquanto aguarda o resultado de um concurso público, e da graciosa Jerusa, uma senhora de 77 anos, testemunha ocular do cotidiano vivido no bairro do Bixiga, recheado de memórias ancestrais. No dia do aniversário de Jerusa, enquanto espera sua família para comemorar, o encontro entre suas memórias e a mediunidade de Silvia lhes proporciona transitar por tempos e realidades comuns às suas ancestralidades.
Originado do curta-metragem “Um dia de Jerusa”, de 2014, o filme é o único longa-metragem da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes dirigido exclusivamente por uma mulher negra e traz como protagonista a renomada atriz Léa Garcia.
Duração: 80 minutos.
7. Bonde, de Asaph Luccas
Três jovens negros da favela de Heliópolis saem em busca de refúgio na vida noturna LGBT+ do centro da cidade de São Paulo. O filme retrata a vida dos três jovens, bastante ancorado na lógica das redes sociais. É uma obra que mostra o modo de eles estarem juntos e de se divertirem, colocando certo tempero de uma estética pop da internet.
Duração:18 minutos.
8. Ilhas de calor, de Ulisses Arthur
Na escola, Fabrício anda com as meninas e com elas cria um grupo de rap onde entoam rimas provocadoras para os meninos. Fabrício está apaixonado por Anderson e guarda esse segredo só para si. O contato entre os dois transita entre o desejo e o atrito e em algum momento a relação vai se estilhaçar. Em 2019, o musical foi feito em uma escola no interior de Alagoas!
Duração: 20 minutos.
BÔNUS
Além de filmes recentes, dispostos em diversas mostras, a Mostra de Cinema de Tiradentes presta homenagem a artistas e cineastas que contribuíram para o desenvolvimento da sétima arte no país.
Em 2020, o reconhecimento foi direcionado a uma dupla de profissionais negros. Foram escolhidos para a condecoração pai e filha: Antonio e Camila Pitanga. Dentre os filmes exibidos em sua homenagem, destacamos dois. A justificativa da escolha é simples: ambas as obras representam as estreias dos artistas, mais conhecidos por suas atuações, na cadeira de direção.
9. Na boca do mundo, de Antonio Pitanga
Drama ficcional, de 1978, que relata uma tragédia ocorrida a partir de um triângulo amoroso entre Norma Bengell, Antonio Pitanga e Sibele Rúbia.
Duração: 100 minutos.
10. Pitanga, de Camila Pitanga e Beto Brant
Documentário, de 2016, que investiga o percurso estético, político e existencial do ator Antonio Pitanga, que, dirigido por grandes cineastas – como Glauber Rocha, Cacá Diegues e Walter Lima Jr. –, foi destaque no momento de maior inquietação artística do cinema brasileiro, o Cinema Novo. A partir de suas interpretações históricas, Pitanga construiu uma narrativa mitológica própria. A importância de seu testemunho para a arte brasileira se dá na construção da arquitetura desse homem em diálogo profundo com seu tempo.
Duração: 113 minutos.