“A arte, desde o seu início, tem um olhar agudo sobre o real. De maneira específica, a arte sempre se propôs a olhar as questões sociais e usar o poder político-poético para desvendar ou até mesmo desvelar as mazelas humanas. Em relação à luta antirracista, a arte sempre esteve associada aos movimentos de emancipação negra”, é o que diz a multiartista Aza Nijeri, doutora em Literaturas Africanas e pós-doutora em Filosofia Africana.
De acordo com a intelectual, os movimentos artísticos voltados à militância antirracista começaram no século 20, nos EUA, com a Black Renaissance, no Harlem. Na luta por Direitos Civis, mais uma vez as artes se uniram em prol de dar voz às exigêcias do povo negro. A militância negra no continente africano também faz parte dessa união de movimentos artísticos que visam descolonizar a cultura local.
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“No Brasil temos o Teatro Experimental do Negro, figura central no movimento abolicionista, que discutia o fim do regime de escravidão. A arte negra em específico sempre esteve como uma ferramenta e uma agência pela humanidade negra e acompanhou o desenvolvimento das discussões”, salienta Aza, que também é escritora e roteirista.
Aliada às questões sociais e políticas, a arte “musculariza” a inteligência de pessoas negras. Aza explica que a lucidez artística é um dos pontos que auxiliam a população negra a se sobrepor ao racismo. “A arte auxilia no processo antirracista e deve ser utilizada em formato pedagógico”, reforça.
O poder didático da arte
Para a artista visual Lya Nazura, que tem seu trabalho focado no pensamento decolonial dentro de uma perspectiva afrofuturista, existe um poder didático proveniente da arte, a fim direcionar olhares para outros imaginários preestabelecidos. “Na arte temos a possibilidade de pensar novos cenários e possibilidades, de uma maneira muito livre e horizontal, o que abre espaço para questionamentos e apontamentos sobre a luta antirracista”, considera.
Para Lya, a arte também é uma tecnologia usada para que “a roda das desigualdades continue girando”, e a imagem exerce poder na vida de pessoas negras, principalmente no cenário atual, em que a realidade online e offline se tornou visual.
“Penso que a arte pode agir também nesse contrafluxo, no ato de fazer ou no de apreciar, mas é urgente a necessidade de trazer essas narrativas para um campo visível. As pessoas negras sempre se fortaleceram a partir da arte vivenciada pelos seus corpos”, comenta.
Empoderamento negro
Sobre o apoio e educação de pessoas negras desde a fase da infância, a doutora Aza Njeri salienta a importância de consumir literatura voltada às vivências de pessoas pretas. Como exemplo, sugere o livro “A luz de Aisha”, que conta com apoio popular para ser levado à frente. Na obra, o conhecimento ancestral é a salvação da protagonista da história, que visa “acender o sol do outro”.
“É possível educar e empoderar pessoas negras através da arte”, avalia. A multiartista considera ainda que as pessoas pretas que se propõem a utilizar de seu trabalho como uma ferramenta de olhar agudo sobre o real contribuem para o empoderamento da população negra em geral, mesmo que isso não esteja explícito.
É o caso do cantor e compositor Fábio Ventura, que utiliza seu trabalho artístico para falar de amor entre pessoas negras como forma de empoderamento. O artista acredita que o amor é um sentimento ancestral que une a todos. Quando o amor entre pessoas negras é protagonista de uma letra, isso está imediatamente chamando a atenção para algo importante e natural, segundo ele.
“É fundamental que na música, nos filmes, nas séries, nas campanhas publicitárias, este amor esteja presente. Que ele seja contado ou cantado da forma mais natural e saudável possível. É uma luta diária para nós. Nos versos de ‘A cor da flor’ falo desta luz no olhar”, diz o artista.
Segundo o músico, a partir da arte é possível modificar o pensamento de toda uma comunidade, trazendo à tona questões que passam despercebidas por quem não sofre opressões diárias.
“Quantas pessoas foram empoderadas através do trabalho de inúmeros artistas pretos no filme “Black Panther” ? Quantas mulheres se empoderam com um trabalho novo da Elza Soares ou com a realização de um musical sobre a vida dela? A arte não somente fortalece a educação, mas sim é um dos pilares da construção dela. Arte é história! E se a gente vê nossa história sendo contada de uma maneira respeitosa e única, a gente passa a entender melhor todo um possível caminho de evolução”, finaliza.
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