As rappers Kmila CDD e MC Soffia dão a letra sobre os desafios enfrentados; a produtora cultural Nerie Bento fala sobre o protagonismo feminino
Texto: Aline de Campos | Edição: Nataly Simões | Imagem: Kmila CDD/Divulgação
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O movimento Hip Hop, originado nos Estados Unidos, completou 50 anos em 2020. Do surgimento até os dias atuais, artistas lutam para que essa cultura seja valorizada. Um espaço majoritariamente masculino, a cena do rap é composta por muita mulher preta e que ainda não recebe a mesma visibilidade.
“Quando eu comecei, já encontrei o caminho pavimentado por outras mulheres, como Dina Di, Negra Li, Rubia RPW, Cris SNJ. Eram poucas mulheres na frente tomando de assalto. Eu lembro que até me vestia com roupas masculinas, com calça larga. Outras meninas faziam isso também para tentar impor mais respeito no meio dos caras”, lembra Kmila CDD.
A rapper acrescenta que os olhares masculinos eram recorrentes, mas que não passou situações piores por estar sempre rodeada de outros homens da equipe do irmão, também rapper, MV Bill.
Kmila CDD é irmã e parceira de trabalho de MV Bill, está presente em diversas músicas e apresentações junto do rapper. Influenciada por ele, desde os 11 anos, tem contato com músicas e com a cultura do hip hop.
“Era uma batida que mexia com os meus sentimentos. Quando eu falava de rap para minhas amigas da escola e ninguém conhecia, eu ficava tentando explicar. Diferente de hoje, minha filha de quatro anos quando ouve uma batida já me pergunta se é rap”, conta.
Com anos de carreira, Kmila lançou seu primeiro EP em 2017. Intitulado de “Preta Cabulosa”, o trabalho conta com seis faixas. Uma delas, “A Faca”, retrata uma situação de abuso sexual em que a mulher luta para se defender.
“Acho de extrema importância ver hoje várias mulheres dando seu grito de socorro e denunciando. A mulher não está segura dentro de um transporte público, não está segura na rua. É o tempo inteiro tentando se proteger. Torço para que um dia a gente possa andar tranquila com a roupa que quer, possa falar o que quiser, ficar com quem quiser sem que haja abusos, sem esse medo que ronda todas nós”, reforça.
“Todo acontecimento não noticiado é como se nunca tivesse existido”
“Hoje, se você abrir as principais playlists de streaming de música vai aparecer a indicação de 38 rappers homens, destes dois a quatro são mulheres. Este é o resultado do apagamento da história, da voz, da obra intelectual e da contribuição da mulher no rap nacional”, enfatiza Nerie Bento, assessora de imprensa e produtora cultural.
Ela também é pesquisadora e diretora da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop (FNMH2). Presente em 15 estados brasileiros, a frente tem o objetivo de fortalecer ações em que mulheres do Hip Hop sejam as protagonistas.
Ainda na universidade, cursando jornalismo, Nerie notou a dificuldade de encontrar material para seu trabalho de conclusão de curso sobre o apagamento de mulheres nas mídias de Hip Hop. Incomodada, a universitária passou a desenvolver um trabalho de pesquisa almejando evidenciar aquelas que vieram antes e abriram caminhos.
“Eu queria contar a história do rap feminino, do ponto de vista das mulheres apenas, pois diversas vezes a história do rap foi contada, mas do ponto de vista dos homens”, comenta.
Motivada por esse objetivo, a assessora e produtora cultural dirigiu e roteirizou o documentário “O Protagonismo das Minas: A Importância das Mulheres no Rap de SP”. Ela conta que o trabalho não é sobre o machismo, mas sim se propõe a expor as contribuições femininas no Hip Hop, mostrar histórias não contadas. “Todo acontecimento não noticiado é como se ele nunca tivesse existido”, reflete.
Foto à direita: Nerie Bento/Reprodução/Instagram
Movimento cultural e instrumento político
“Eu acredito muito que o rap é uma forma de inspirar outras pessoas. O rap é música de força, de resistência. A maioria das pessoas que estão cantando rap se colocam mesmo na letra, contamos nossa história por meio da música”, afirma MC Soffia.
A rapper, que iniciou a carreira ainda na infância, conta que suas músicas são voltadas para discussões como empoderamento, machismo, racismo e que muitas pessoas se inspiram através delas. Filha de pais politicamente ativos no movimento negro, Soffia pontua a importancia de ter referências.
“As mulheres pretas a minha volta me incentivaram muito, são quem hoje trabalham comigo. As bonecas Makena da minha avó permitiram que eu tivesse uma identificação. Cada uma dessas mulheres, com a sua profissão, permitiram que eu visse que eu poderia ter a minha profissão também e que ninguém ia me impedir”, conta.
Entre as motivações da jovem estão clipes produzidos pela cantora Beyoncé. “São clipes com o povo preto, mostrando a dança, a cultura africana, e é isso que eu almejo poder mostrar”, destaca.
Mc Soffia para o clipe de “Empoderada”. Foto: Divulgação
Reconhecimento
Em 2018, aos 14 anos, MC Soffia foi a primeira brasileira indicada ao BET Awards, prêmio internacional para artistas negros. Segundo ela, foi uma oportunidade de mostrar seu trabalho e que uma menina preta de periferia pode alcançar muitos lugares.
Nerie Bento, por sua vez, revela que no ano passado a Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop (FNMH2) brigou por equidade de gênero no Prêmio Sabotage, um dos principais em São Paulo. “Reconhecer, financiar, premiar e consumir o trabalho destas mulheres é o único caminho possível para que sejam reconhecidas”, conclui.