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Beth Carvalho e a lenda da ‘’Cigarra e o Samba’’: a função religiosa da roda

7 de maio de 2019

Acertadamente, afirmou Beth Carvalho, certa feita, que o samba é bem mais que um gênero musical. Disse a madrinha do samba, não fingindo as suas dores, que “o samba cura”

Texto / Padre GeGê | Imagem / Reprodução

Se é verdade que “o homem é o homem e suas circunstâncias” é na mesma medida verdade, considerando a diáspora africana forçada, que o negro é o negro e as suas circularidades. Isto é, suas rodas (rodas de samba, sambas de roda, saias rodadas, rodas de capoeira, cirandas, xirês, etc). Roda é, pois, coisa humano-divina, criação humanizadora e, por isso, sagrada. O negro faz a roda e a roda faz o negro. A roda é a potência da raça. Com propriedade pensante de um bamba, extremada sensibilidade de um poeta e arquivelha sabedoria de quem investiga as profundezas, disse, de forma paradigmática, o compositor e cantor Luis Carlos da Vila: “A maior invenção do homem é a roda. A segunda é a roda de samba”.

No término do curso de psicologia na PUC-RJ produzi, como requisito da titulação, o trabalho de conclusão de curso (TCC) intitulado “Roda de samba e mandala: uma interpretação possível à luz da psicologia analítica”. Na oportunidade, lançando mão do instrumental teórico da ciência psicológica profunda construída pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung, defendi a roda de samba como fator psíquico na ordem da equilibração ou homeostase da pessoa e/ou coletividade. A roda de samba, desse modo, interpretada sob as lentes junguianas, constitui uma potente mandala viva; logo, uma produção psíquica extraordinária criada pela população negra em diáspora no horizonte da resistência, da resiliência, do encantamento, da promoção da saúde integral, da afirmação da vida e da realização da alma.

Abdias Nascimento escreve que de primeiríssima importância estão as peripécias culturais e religiosas da população negra desterritorializada. Para Abdias, nesse sentido, é de fundamental importância tudo que o negro foi capaz de preservar e inventar para não sucumbir às múltiplas formas de genocídio impetrados, sistematicamente, pelo sistema dominante. O genocídio não é apenas físico, mas também simbólico, cultural e religioso. Mas, a população negra, através de memórias ancoradas no corpo, conforme escreve a historiadora Antonieta Antonacci, foi capaz de invenções transgressoras para a manutenção da vida, do sonho e do encanto. A roda de samba é, pois, uma dessas sublimes e potentes invencionices da gente negra.

Nascida nos porões de uma sociedade escravocrata, racista, excludente e genocida, a roda de samba comparece como discurso contra-hegemônico. Por isso, refletir sobre roda de samba no Brasil implica considerar o “lugar de fala”, nos termos de Djamila Ribeiro; implica captar possibilidades insurgentes de enunciados a partir de corpos de bambas que sabem dizer no pé. Os pés dos subalternizados falam riscando o salão de magia e, assim, num jogo seríssimo assentado no “brincar”, quase sempre no “miudinho”, transgridem espaços delimitados pelo poder de dominação.

A roda produz um “brincar” que, considerado sob as lentes da psicanálise de Winnicott, constitui uma necessidade fundamental para o desenvolvimento e para realização da psique, tanto da criança quanto do adulto. Segundo Winnicott, há um “brincar” indispensável à vida. Diz o referido teórico da psicanálise que “talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação”. Tal perspectiva vai ao encontro das palavras de Luiz Carlos da Vila quando diz, psicanaliticamente, cantando: “Onde houver uma crença, uma gota de fé, um uma roda, uma aldeia… Um cantar a vontade, outras coisas que a liberdade semeia, a chama não vai acabar, Candeia”. A roda de samba é circumambulação poética. O teólogo Leonardo Boff chama de “Transcendência” essa competência humana de transfigurar, poeticamente, o real. Diz Boff que pela transcendência, que não é monopólio das religiões, o ser humano “se recusa a aceitar a realidade na qual está mergulhado porque se sente maior do que tudo que o cerca”. Desse modo, a roda de samba, enquanto lugar de transcendência, é espaço revolucionário porque se faz locus da utopia vibrante.

Roberto M. Moura escreve em seu sugestivo livro “No princípio era a roda” que “resultante da dialética entre o cotidiano e a utopia, a roda de samba instaura no Sambista a ilusão de eternidade. É como se o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora, fazendo da roda um encantado ‘repouso do guerreiro’”. Na roda se está “em casa”. Diante dos inúmeros perigos e ameaças da noite e da vida, uma roda aparece como um círculo protetor e transformador dos afetos e emoções destroçadas pelo poder escravocrata brasileiro. O negro inventou, então, o samba para não sambar. Diz ainda Moura que é conceito assumido de que “não são os sambistas que formam a roda, mas a roda que formam os sambistas”. Para o sociólogo Roberto DaMata, a roda de samba é, pois, “a grande mandala da música popular brasileira”.

Então, se a roda de samba é, de fato, mandala, é psicologicamente fator de potencialização da vida, porque relacionada está à chama vital que jorra do inconsciente coletivo/ancestral. Nesse horizonte de análise, todo sambista é um religioso. A propósito, para Jung a psique tem uma função religiosa, pois busca sustentar permanentes conexões e diálogos (religare/relegere) com a interioridade profunda da alma, que é naturalmente religiosa (“naturaliter religiosa”).

A mandala comparece, nessa perspectiva, como símbolo da totalidade. Jung percebeu que muitos doentes mentais faziam desenhos de mandala, revelando, assim, um esforço sublime na busca da organização psíquica. A mandala refere-se, nesse horizonte, à busca de equilíbrio ante as ameaças de desintegração. Dito isso, é possível imaginar o poder da roda de samba para a população negra entregue à própria sorte. Para Jung, a mandala, de forma potente, refere-se também a “uma tentativa de autocura da natureza”. O que a sociedade excludente e racista destroçava, a roda de samba re-ligava na vibração dos corpos místicos em diáspora.

Escrevem Simas e Rufino em “Ciência encantada das macumbas” que “Os santos que por aqui baixam praticam o cruzo, são macumbeiros, arrastam multidões em suas companhias, vadeiam nos sambas de roda, nas capoeiras, riem nos versos improvisados, bebem cerveja, correm atrás de doce, festejam a virada do ano com batuque no mar (…). Fazemos rodas, praticamos esquinas, erguemos choupanas e cazuás, inventamos mundos”. Não sem razão canta Dona Ivone Lara que “todo poeta que faz mais um samba, ele funda uma cidade”; essa cidade é, conforme Arlindo Cruz, “cercada de seres de luz”.

O samba esconde/revela potentes divindades ancestrais que destronam quaisquer pensamentos absolutistas e excludentes. Bem cantou Luis Carlos da Vila: “o samba é religião…”. As divindades de múltiplos nomes e feições estão na roda de samba, junguianamente falando, como energias psíquicas poderosas e fascinantes. Acertadamente, afirmou Beth Carvalho, certa feita, que o samba é bem mais que um gênero musical. Disse a madrinha do samba, não fingindo as suas dores, que “o samba cura”.

A propósito, em místicas de bambas a dor/sofrimento não é negada, mas afirmada, poetizada e ritualizada. Cantando Nelson Cavaquinho, a madrinha do samba enunciou: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”. Ademais, em místicas de bambas, “a tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim”. Porém, adverte Candeia, “se é pra chorar que chore cantando; tristeza feia o poeta não gosta… E um bom partideiro só chora versando…”. Creio que a madrinha do samba incorporou em sua trajetória, em especial nas horas mais difíceis de sua vida, essas místicas surpreendentes. O samba dá sentido à vida, enche de vigor, potencializa e também acalma. O samba tem mana, númem, luz indestrutível, axé ou muntu. Na roda de samba pode haver mais místicas que em muitas catedrais, que, a bem da verdade, também tem lá suas rodas antiquíssimas.

Se o samba pode ser dito como religião, pode, na mesma perspectiva analítica, ser compreendido como celeiro de místicos. Isto é, casa onde homens e mulheres que, de batucada em batucada, fazem a experiência do SAGRADO. Não sem razão, a roda de samba pode ser lugar de re-ligação idealizado pela psique ancestral para se morrer. Confessa o sambista: “quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”. E outro: “se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio, bem no compasso…”. Essa busca psíquica de um bom lugar para morrer (“boa morte”) é reverberação de místicas e religiosidades que compreendem o viver e o morrer como ciclo/roda que integra, como um bom samba, o princípio-fim-princípio de tudo que há. Morrer, nesse horizonte místico afrodiaspórico, é também entrar na RODA – no círculo/ciclo mágico e indestrutível da ancestralidade. Creio que o gurufim (velório em forma de festa em homenagem ao finado) constitua um dos legados mais significativos das crenças e saberes afro-brasileiros que, ainda hoje, subverte os cânones ocidentais de brancura que divorciou, entre outras realidades, a vida da morte e vice-versa.

Há pouco tempo meu irmão mais Velho, primogênito de Marietta, Lázaro (Lazão), sambista-portelense, fez sua passagem. Tanto no sepultamento quanto na missa de 7º dia, o samba foi o círculo mágico mantenedor e transformador de nossas emoções. Seu enterro foi atravessado por místicas de bamba em gurufim. Disse o cônego Geraldo Marques depois do sepultamento: “nesses mais de trinta anos de padre nunca saí tão feliz de um sepultamento”. O gurufim é, a meu ver, uma das mais potentes peripécias da gente negra em face da dramaticidade da morte. Ele é um evento místico transgressor. No gurufim a tristeza dialoga com a alegria é desse cruzo/encruza ou transa/transe invisível nasce a vida mais potencializada. Em místicas de bamba a morte só mata quando se esquece. Morto é aquele que a comunidade não lembra. Por isso, o gurufim faz memória.

Ensinou Luis Carlos da vida que “enquanto o samba viver o sonho não vai acabar e ninguém irá esquecer, Candeia”. Beth Carvalho cantando Nelson Cavaquinho oferece lindíssima afirmação dessa insurgente competência das místicas de bamba firmadas em gurufins. Canta a madrinha do samba: “Em Mangueira quando morre um poeta todos choram. Vivo tranquilo em Mangueira porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer. Mas o pranto em Mangueira é tão diferente, é um pranto sem lenço que alegra a gente. Hei de ter um alguém pra chorar por mim através de um pandeiro e de um tamborim”.

Em místicas de bamba em forma de gurufim o exercício da memória coletiva passa por comidas, bebidas, cantos, batuques, danças e toda sorte de artimanhas e improvisos. Quebra-se, pela ritualidade, a fronteira entre o mundo de cá e o mundo de lá. O morto se faz presente e, por isso, também pode “comer” e “beber”, isto é, tomar parte do maravilhoso mundo do samba, razão pela qual sempre estará “em casa” – sempre na roda!

Desconhecendo saberes de místicas que ultrapassam a compreensão dos cânones de uma moralidade cristã fechada, ignorante, e intolerante, alguns desavisados nas redes sociais criticaram o sambista Zeca Pagodinho pelo fato de beber cerveja no velório de sua madrinha. Desconhecem ou desprezam, pois, as pluralidades de místicas que fazem e refazem os “Brasis de Lecis, Jamelões”. Comer, beber, cantar e dançar em místicas afrocentradas passam por outras lógicas e racionalidades. Nem sempre, por exemplo, uma cerveja é só uma cerveja; nem sempre um batuque é só um batuque. Ensinou cantando Clementina de Jesus que “a vida não é só isso que se vê; é um pouco mais…”. E o que diriam mentes tão colonizadas diante da ladainha de Martinho da Vila com galinha preta e azeite-de-dendê? Conforme fala Maria Bethânia no documentário “Fevereiros”: “A música é a casa materna de Deus. Foi isso que nem católicos, nem protestantes entenderam: que em África os deuses dançam”.

Considero, pois, que a “descolonização das mentes”, que inclusive falam os bispos no Documento de Aparecida, deve desbordar, no plano teológico-litúrgico em diálogo, em processos de descolonização das místicas. Místicas negras tem muitos a ensinar… Místicas negras importam! O povo negro não vive apenas biologicamente, mas também misticamente. É visceralmente revoltante saber que milhões e milhões nossos sucumbiram ao terror infernal dos tumbeiros na travessia, mas é, também, infinitamente dignificante saber por historiadores, como Marcus Rediker na obra “O navio negreiro”, que a população negra foi capaz de fazer percussão da madeira do próprio tumbeiro. Escreve Rediker que “sendo o navio todo de madeira, constituía-se num grande instrumento de percussão e narração de histórias”. Acredito que nada pode segurar ou aniquilar um povo que é capaz de transformar tumbeiros em tambor, isto é, morte em vida encantada.

A história negra não se dá sem a magia insubmissa e transgressora de místicas ancoradas na dança e no canto. Rediker faz alusão ao relato de um almirante segundo o qual “se tomava conhecimento da chegada de um navio negreiro pela dança e cantos dos negros a bordo”. E escreve ainda o historiador que “a comunidade de sofrimento mortal a bordo do navio negreiro dava origem a culturas afro-americanas e pan-africanas, desafiadoras e resilientes, que primavam pela afirmação da vida”.

Creio que a trajetória de Beth Carvalho, em especial os últimos momentos de seu existir na carne, traga para o Brasil e para o mundo um dos valores místicos mais potentes da população negra: a alegria, mesmo em face da dor e da proximidade da morte. Conforme sustenta Muniz Sodré na obra “O pensar nagô”, a alacridade ou alegria é alavanca. E assim se comportou a heroína Beth Carvalho. Como ensinou Candeia, a madrinha do samba cantou de qualquer maneira (de pé, na cadeira de rodas e até, transgressoramente, na cama). E, “de repente, não mais que de repente”, o leito de hospital se fez roda, círculo mágico, vaso alquímico das grandes transformações (“vaso bem fechado” dos alquimistas – “vans bene clausum”); lugar bom pra se viver, lugar propício pra sentir a delícia de se estar viva e bem acompanhada, e lugar misterioso o suficiente para deixar fruir a sonoridade intraduzível e intransferível do morrer.

Desse modo, vivendo/morrendo/vivendo, assim, tão melodicamente, Beth Carvalho, a meu juízo, constelou em sua vida-bohemia, em sua trajetória de bamba, a lenda da “Cigarra e o samba” cantada pelo poeta da “oitava cor do arco-íris”, Luis Carlos da Vila. Afirma o poeta: “Em algum lugar do planeta a cigarra canta; todo dia… E desafia o cantar em tempo de pouca alegria”. E, como que prenunciando o rito de passagem da cigarra-madrinha-do-samba, diz ainda, de forma místico-poética, Luis Carlos: “se é para morrer, morrerá com melodia”.

E nem Beethoven poderia imaginar tão excelsa e inconfundível melodia urdida nas vibrações sacrossantas de uma bamba que, a exemplo de uma iaô, incorporou; não um orixá, mas o “divino malandro” – o “danado do samba”. A lua de São Jorge contou à estrela Dalva, que contou a um poeta negro e o poeta me contou que num fundo de quintal a cigarra deitada já cantava pra enfeitiçar o seu amado. Mas foi no dia 30, findando o inesquecível abril de 2019, que a cortina fechou e a luz do palco se apagou… Foi então que a cigarra e o samba se enlaçaram (“união mística”). As fronteiras e as distâncias foram abolidas. Já não mais se pôde distinguir um do outro. A cigarra e o samba fundiram-se… Já não eram duas, mas uma só alma – eternamente atada: “O Amado com a amada; a amada no Amado transformada”.

A voz que fez tremer a terra e acordou Marte, agora sussurra caciquiando nos ouvidos do próprio Deus… E para nós que ainda estamos nas rodas da vida que, como diz marinho: “gira”, Luiz Carlos da Vila poetizando sobre “a cigarra e o samba” ainda deixa um conselho: “desata esse nó na garganta e imita a cigarra, meu compadre… Se é para viver, viva a felicidade!”.

Por fim, há dizeres nas casas de bambas (do lado de cá) que a madrinha do samba e dos bambas ao chegar “no lado de lá” foi recebida por uma anja negra linda como uma estrela que estava de pé no lado esquerdo da porta do paraíso. Ao avistar Beth chegando com seu cavaquinho (doado por Nelson Cavaquinho) a anja disse a São Pedro: “avise a Tia Ciata, Clementina, Jovelina e Dona Ivone Lara que chegou a ‘coisinha tão bonitinha do Pai’”. E Deus sentado aos pés da tamarineira celeste não tardou em ouvir, sorridente, na voz da cigarra-madrinha, os pagodes e partidos paridos nas rodas sem fim de nossa gente.

E Deus, luz oculta de todas as rodas, (também “De pé no chão”) viu que tudo era muito bom!

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