Há quem diga que os livros de história da população negra pelo mundo foram os discos. Desde as canções religiosas tradicionais até a música pop moderna é possível encontrar narrativas explícitas em músicas que denunciam as alegrias e tristezas de negros e negras, seja no combate ao racismo, seja na vida cotidiana. Nessa lista, você encontrará cinco músicas sobre a vida afro-brasileira, para ouvir e pensar.
Muitos são os registros da música negra e do povo afrodescendente. No Brasil não foi diferente. Dentre a vasta e diversa história musical do país, negras e negros de todas as partes se juntaram para fazer músicas, muitas delas a partir das vivências únicas que os afro-brasileiros têm no país.
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Há música no quarto de despejo
A escritora Carolina Maria de Jesus, símbolo da literatura nacional, é um exemplo de vivências traduzidas em arte. Nascida em Sacramento (MG), mudou-se para São Paulo na década de 40. Viveu em uma das primeiras favelas da capital, no Canindé, zona norte da cidade. Narrou as desigualdades em uma cidade fadada ao crescimento desproporcional e segregador entre seus habitantes.
Descobriu a literatura nos cadernos, revistas e livros que encontrava no lixo durante o árduo trabalho como catadora de papel. Neles registrava a vida em sua comunidade e as opressões que afligiam a ela e seus semelhantes diariamente. Impressionava pela visão lúcida a respeito de sua própria vida e da sociedade da qual fazia parte.
Em 1960, seus manuscritos deram origem ao aclamado livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”. Sua obra rendeu no ano seguinte, em 1961, seu único disco musical: sambas com músicas de sua composição. O álbum também recebeu o nome de “Quarto de Despejo” e foi gravado pela RCA Victor. O trabalho traz doze faixas que preservam as narrativas de seu cotidiano enquanto mulher negra e periférica. Destaca-se aqui o lamento O Pobre e o Rico, que narra as particularidades de classe dessas figuras e expõe a contradição e a dominação do grupo privilegiado contra os marginalizados de nossa sociedade.
Sou negro, sim, e ninguém vai rir de mim
Em 1930, o Mirante do Paranapanema (SP) via o nascimento daquele que anos mais tarde tornaria-se um Tornado de categoria F5. Antônio Viana Gomes – ou apenas Tony Tornado – viveu além das fronteiras e dos limites. Filho de pai guianense e mãe brasileira, fugiu de casa na adolescência rumo ao desconhecido, materializado na cidade no Rio de Janeiro. Viveu na rua, vendeu amendoins… virou paraquedista! Nos anos 50 atravessou o Atlântico para virar combatente no Canal de Suez no Egito.
Anos mais tarde retornou às Américas, mas decidiu que deveria ir para a “terra das oportunidades”. Na década de 60, morou em Nova York, no Brooklin. Uma vez lá, percebeu que a terra das oportunidades na verdade era o templo do funk de James Brown. Conheceu também a luta dos afro-americanos por igualdade em uma sociedade racista.
Nesse ponto, o Tornado estava pronto. Retornou ao Brasil nos anos 70 com experiência e muito funk na bagagem. Tornou-se o primeiro negro a vencer o IV Festival Internacional da Canção com a música BR-3 (censurada pela ditadura civil-militar de Garrastazu Médici). Introduziu a Soul Music no Brasil ao lado de outros nomes da música negra nacional como Gerson King Combo e Cassiano através do movimento Black Rio.
Fez sucesso em diversos bailes, seja no centro ou nas periferias do Rio de Janeiro e consolidou o funk brasileiro no país. Suas músicas traziam alto grau de identificação com a cultura negra americana e buscavam ressaltar positivamente a identidade afrobrasileira, em uma sociedade também afetada pelas desigualdades raciais. Uma das músicas que ilustram Tony Tornado e sua obra é a composição “Sou Negro”, lançada em 1972.
A mulher do fim do mundo veio do planeta fome
Em 1943, Ary Barroso recebia em seu programa na Rádio Tupi uma pequena jovem negra de apenas 13 anos para uma apresentação. De jeitos e maneiras simples, diante de mil pessoas, a garota foi ironizada pelo então apresentador: “De que planeta você veio?”. Sem titubear, a pequena Elza Gomes da Conceição responde categoricamente: “do mesmo que o seu, do planeta fome”.
A adolescente daquele dia cresceu. Virou Elza Soares. Considerada a mulher do milênio pela Rádio BBC Londres em 1999 a partir do projeto The Millennium Concerts, realizado para comemorar o fim do milênio e o início dos anos 2000. Elza foi eleita a artista brasileira mais representativa do país até aquele momento.
Agora, aos 85 anos, a Rainha do Samba é a mulher do fim do mundo. Uma das maiores vozes do Brasil ela ainda mantém a disposição firme para cantar e cantar, discutir sobre racismo e machismo.
No ano passado, depois de mais de 30 álbuns lançados, lançou o disco “A Mulher do Fim do Mundo”, com músicas inéditas, que tratam de variados temas que englobam suas próprias vivências, o machismo, o racismo, a violência, a morte e o sexo. Outros trabalhos notáveis de Elza são os álbuns “A Bossa Negra” (1960), “O samba é de Elza Soares” (1961), Sangue, Suor e Raça” (1972), “Do Cóccix até o Pescoço” (2002) e “Vivo Feliz” (2003).
Em uma releitura brilhante de “A Carne” (música composta pela Farofa Carioca), Elza esbanja toda sua potencial vocal em uma abertura épica e encarna melhor do que ninguém o significado do que é ser negra no país da “democracia racial”.
Afrodinamicamente, mantendo nossa honra viva
Certa vez, KL-Jay disse que a mentalidade racista deveria morrer (link do vídeo). Uma frase forte, mas que certamente carrega toda a vivência do DJ como negro brasileiro e integrante dos Racionais MC’s. Desde o início do grupo, em 1988, os quatro pretos mais perigosos do país denunciam o racismo, a violência policial nas cidades e a vida periférica em suas músicas.
Para quem quer conhecer um pouco da história das periferias brasileiras, sobretudo nos anos 90, aliar estudos e levantamento histórico a um passeio pelos álbuns de rap da época é fundamental. Câmbio Negro, RZO, GOG, Rapin’ Hood, Thaíde e DJ Hum são alguns da vasta lista de pessoas e grupos que contribuíram para a narrativa da vida na periferia ao lado dos Racionais MC’s. O estilo noventista ainda reverbera e influencia centenas de jovens, que seguem narrando o cotidiano da população negra.
A violência policial e o racismo continuam firmes no Brasil. A taxa de negros mortos pela polícia é três vezes maior que a de brancos e ainda há muita resistência a mudanças por parte de um Estado conservador como o Brasil.
O momento pede “Voz Ativa” nas ruas e nos ouvidos. A música compõe o segundo EP dos Racionais, lançado em 1992, chamado “Escolha seu Caminho”. O som faz uma crítica geral ao racismo e convoca negros e negras a terem uma ação firme diante das opressões raciais impostas aos afrobrasileiros. A música ainda conta com o samples de duas grandes obras do funk americano: “Givin’ Up Food for Funk“, do The J.B.’s e “Transmograpfication“, nascida da união entre Fred Wesley e o The J.B.’s.
Sou forte, sou preto, sou filho dos guetos
A música afro-brasileira sempre foi rica em estilos e variedades. Sambas, funks, raps e jazz sempre presentes. Agora imagine um grupo capaz de sintetizar tudo isso em um lugar só. Essa é a big band Aláfia. O coletivo ainda tem trajetória recente, mas isso não impede que o repertório seja dos mais completos.
O grupo consegue trazer o que há de melhor na “ancestralidade musical” do Brasil, adicionando elementos variados às suas composições. Até hoje são dois álbuns lançados. O primeiro, de 2013, traz o mesmo nome da banda e é um ótimo cartão de visitas. As variadas influencias da black music afloram naturalmente, impossibilitando em muitos momentos atrelar um único rótulo ao som produzido pelo Aláfia.
O segundo trabalho ganhou o nome de “Corpura” e mantém as referências em gêneros negros em seu som. O tom político e posicionado contra o racismo e as opressões que afligem as populações periféricas seguem firmes no álbum, destaque para as músicas Salve Geral, Corpura, Proteja Seu Quilombo, Preto Cismado e Nada é Importante.
Na pedrada sonora Preto Cismado o grupo conta com participação da rapper Tássia Reis, para fazer uma crítica ácida sobre a negação do racismo no país e sua relação com outras opressões, como o machismo.