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Craca e Dani Nega mostram versatilidade e boa forma em “O Desmanche”

20 de abril de 2018

Novo álbum da dupla traz vasta variedade de sons e rimas que fazem críticas sociais de modo contundente, orgânico e preciso

Texto / Amauri Eugênio Jr.
Foto / Cacá Bernardes

Desmanche de conceitos estabelecidos de modo arbitrário. Desmanche de preconceitos. Desmanche de paradigmas. Desmanchar para reconstruir algo orgânico e que faça sentido para quem é historicamente deixado à margem. Desmanche de ritmos, sons e rimas que parecem ser de mundos diferentes, mas que parecem ter nascido uns para os outros quando integrados. Essas são algumas das coisas que vêm à mente ao ouvir “O Desmanche”, novo trabalho da dupla Craca e Dani Nega, que foi lançado nesta sexta-feira (20) nas plataformas digitais.

Todas as nove faixas do álbum têm identidade própria, mas todas têm em comum a personalidade forte das rimas potentes e certeiras de Dani Nega, assim como o groove e o caráter criativo dos beats e melodias de autoria de Craca.

O trabalho já começa com a potente e forte “Boi Navegador”, mostrando que Craca e Dani Nega não vieram a passeio e têm muito a dizer e mostrar. O som tem início com refrão cantado pelo grupo Clarianas, o que remete a pontos de umbanda e de candomblé – o ritmo delas e as rimas de Dani, harmonizam com a batida ritmada e constante ao fundo. A letra remete ao cotidiano sofrido da população negra, tendo o “boi navegador” como metáfora para o transporte público e os navios negreiros usados para trazer nossos antepassados à força. Contudo, o recado está dado nos versos “a história não é creme, ela é preta, e se atente, a vingança será quente”. Vida longa aos pretos que nasceram agora. Punto e basta.

A faixa seguinte, “Na Faca, na Fúria, no Grito ou no Dente” remete à união da embolada com a música eletrônica e às rimas de Dani, desta vez um pouco mais “cantadas” em alguns momentos, mas com a força de sempre e com outro papo reto: as minas não devem dar ideia para “comédia”, não. Se algum “coxa” embaçar? O papo é simples: frite-os no óleo quente. Ah, mas se Waze mandar virar à direita? Basta pegar a esquerda e fazer a Kátia Cega. Os versos parafraseados são uma aula de empoderamento.

Na sequência, “Não Pise na Bola”, que tem participação para lá de especial de Roberta Estrela Dalva, tem um quê de dub, que é pano de fundo para o zum zum zum que permite geral ouvir que muita gente é zumbi. O flow invocado mostra que a noite é minha, nossa e que o mundo não para e só gira em nós.

Enquanto isso, “Peito Meu”, primeiro single do álbum, que tem Luedji Luna dando o ar da graça, tem batida que flerta com o minimalismo. Esse recurso mostrou-se um acerto, pois deixou o peito falar mais alto nos versos. Afinal, é necessário dar vazão à ostentação de sentimentos onde somos estrangeiros de nós mesmos. Em resumo: o peito, a metáfora ideal para as nossas emoções, permite que sejamos humanos, demasiadamente humanos, e termos força para aguentarmos as porradas da vida – ainda que fiquemos no osso em alguns momentos.

É possível dizer, sem erro, que “Peito Meu” serve como uma bela introdução para a pedrada sonora que vem na sequência, representada pela forte e emocional “Quando Voltarão?” É impossível não ficar reflexivo e emocionado com os versos e a batida minimalista, que servem como pano de fundo para o grito contra o genocídio negro, passando por Zumbi dos Palmares, Marielle Franco, Malcolm X, Amarildo, Cláudia Silva Ferreira, Luana Barbosa e muitos outros irmãos e irmãs nossos, cujas mortes mostram que o nosso sangue pinga, pinga, pinga. Quando eles e elas voltarão? Infelizmente, é impossível dizer. Mas eles estarão sempre presentes em “Quando Voltarão?”, na música e na vida. Black lives matter, mesmo que seja necessário fecharmos os nossos corpos na mandinga.

Se a subjetividade deu o tom em “Peito Meu” e a dicotomia entre emoção e revolta estiveram presentes em “Quando Voltarão?”, a ode às nossas raízes é a premissa de “Saravá Xangô”, que tem participação elegante e brilhante de Juçara Marçal e Sandra X nas batidas, batucadas e no canto. E, como Xangô é o grande homenageado, a justiça tem presença obrigatória. Em meio à evocação às nossas raízes, o beat que mescla groove com o ritmo de atabaque forma o pano de fundo ideal para a música.

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Imagem: Cacá Bernardes

“Craculejo”, a faixa seguinte, conta com beats fortes e imponentes. É possível dizer que é, em certa medida, a síntese de “O Desmanche”: beats, groove, rimas potentes, a batida do berimbau e a assinatura eletrônica de Craca passam o pente-fino na mente.

Em seguida, a faixa-título do álbum mostra, por meio de batida discreta, mas marcante, que é necessário estar atento e forte e que deveremos ressuscitar os nossos da calunga. Sim, a turbulência começou e não está de passagem. Ainda assim, com ordem, groove e melodia.

Por fim, “Casa de James”, que conta com o suingue de Graça Cunha e Nanny Soul, é o fim apoteótico e forte necessário para um álbum coeso e necessário como “O Desmanche”. Como se não bastasse ser uma homenagem aos tempos de James Brown, Jorge Ben e Carlos Dafé – além da aventura do eterno beatle Paul McCartney no soul por meio de “Check My Machine”. E, sim, a música serve como pano de fundo, até mesmo por meio da metalinguagem, para ser uma volta no tempo à sofrida, mas agradável e nostálgica, infância na quebrada. Se hoje é casa de Brown, é bom lembrar que sempre teve espaço para quem soubesse chegar e sempre foi correria para quem sempre quis arrumar.

Por mais que se fale de “O Desmanche”, palavras não são o bastante, pois cada um sentirá o álbum da sua própria maneira. Mais do que isso: esse é um trabalho para ser sentido, pensado e curtido. É a sinestesia em forma de música.

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