Natalie Matos, Gabriela Matos e Denise dos Santos subvertem as regras do audiovisual para imprimir a vivência de mulheres negras e periféricas na produção de filmes
Texto / Amanda Lira e Gabriel Araújo | Imagem / Renca Produções
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Uma reportagem do Projeto Enquadro:
o cinema negro de BH em retratos jornalísticos
Um homem branco, meia idade, com sapato de marca e chapéu Panamá. Talvez seja essa a imagem que venha à cabeça dos espectadores ao imaginar quem assume o topo da hierarquia cinematográfica: a cadeira de direção. Das periferias de Belo Horizonte, um trio emerge justamente para contestar esse estereótipo: são três jovens negras de vinte e poucos anos que saíram das quebradas decididas a produzir imagens que as representem.
Ao contrário de um cinema rígido, que chega com roteiro, pessoal e equipamentos definidos, Denise dos Santos, Gabriela Matos e Natalie Matos (não, elas não são irmãs) trazem outra proposta: a de envolver toda a comunidade no produto em construção. No esforço de reunir uma pá de gente por trás das câmeras, elas se nomearam: são a Renca Interações e Produções Culturais.
No Instagram da Renca, as meninas colocam a cara à mostra. A decisão é muito bem pensada, como conta Natalie: “A gente sempre produziu, mas, ao mesmo tempo, as pessoas perguntavam ‘Cadê vocês? Onde vocês estavam esse tempo todo?’. Daí a gente começa a falar: ‘Sabe isso que você viu? Foi a gente que fez’.” Da direita para a esquerda: Denise, Gabi e Natalie. Foto: Instagram @rencaproducoes.
“O cinema comercial não me representa”, constata Natalie Matos, co-fundadora e integrante da produtora. A afirmação da cineasta encontra eco na ausência de produções negras e femininas no cinema. No ano passado, “Café com Canela”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa (assista ao trailer aqui), foi o único longa de ficção lançado comercialmente a contar com o nome de uma mulher negra na direção. “A ideia da Renca veio de um questionamento que nós três tivemos de se ver dentro de nossas comunidades e de isso não estar lá na tela”, ressalta Natalie.
Para transformar essa ausência em ação, as Renca produzem um cinema a partir de seus olhares e de suas vivências enquanto mulheres, negras e periféricas de trajetórias diversas e complementares. Enquanto Gabriela Matos vem do Morro do Papagaio, favela da Zona Sul de Belo Horizonte rodeada por bairros de luxo, Denise reside no Mantiqueira, região de Venda Nova, a 18km do centro da cidade. Natalie, por sua vez, nasceu no bairro Maria Goretti, região leste da cidade. Depois de uma breve passagem pela cidade histórica de Ouro Preto, retornou às origens.
Gabriela e Natalie são formadas em Cinema e Audiovisual pela Universidade UNA, uma instituição privada de ensino superior localizada em um bairro conhecido por seus museus, cafés e caros restaurantes. Não fossem as bolsas do Programa Universidade para Todos (ProUni) e o parcelamento da graduação pelo Programa de Financiamento Estudantil (Fies), o valor do curso seria inacessível para elas. Isso porque cursar Cinema na UNA significa desembolsar R$1.800 por mês.
Mas os caminhos das Renca se cruzaram antes mesmo da universidade. As três se conheceram há alguns anos na Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia, iniciativa público-privada que proporcionava uma formação ampliada a jovens de escolas públicas. O programa, patrocinado pelo Instituto Oi Futuro, oferecia gratuitamente especializações em Design Gráfico, Web Design, Computação Gráfica, Vídeo e Fotografia. Apesar dos impactos positivos para o público de idades entre 16 e 22 anos, a Oi Kabum! teve suas atividades encerradas em 2016 com a suspensão do patrocínio.
“Dentro da graduação, tentaram formatar a gente”, admite Natalie. “Só que a gente passa pelo processo da Oi Kabum! que nos fala: não. Você pode ser tudo isso sem um formato. É um processo muito grande de desconstrução e descolonização de a gente começar a se enxergar enquanto Renca, enquanto quebrada e enquanto cinema”.
Todos os caminhos levam ao audiovisual
Apesar de fechar as portas, a Oi Kabum! teve um papel fundamental na vida das meninas. Gabi, que engravidou aos 17 anos, antes de entrar para a Escola imaginou que seu futuro estivesse ameaçado. “As pessoas falam: ‘Acabou sua vida! Você nunca mais vai fazer nada’”, ela lembra. “Mas a Oi Kabum! me resgatou. Foi esse espaço que me falou: você pode fazer o que você quiser”.
A Oi Kabum! também foi um divisor de águas para Natalie Matos e Denise dos Santos. A primeira – daquelas com quem você pode conversar por horas – conheceu a Escola em um período conturbado. Ela e seus dois irmãos, todos adolescentes, precisaram entrar ainda cedo no mercado de trabalho para ajudar no sustento da família. Para Natalie, coube a rotina de estudar durante o dia e trabalhar numa concessionária à noite. “Eu tive que crescer muito cedo”, reconhece hoje, aos 24 anos.
Para a segunda, Denise dos Santos, a Oi Kabum! foi tudo na vida. “Até hoje é”, ela afirma, em uma de suas curtas intervenções durante a entrevista. Aos 21 anos, a caçula do grupo fez um curso profissionalizante em Administração com um objetivo em mente: juntar dinheiro e comprar um equipamento de fotografia. Desde então, a partir da rede de contatos que construiu, Denise conquistou espaço em importantes coberturas, como nos eventos do Festival de Arte Negra e de um dos maiores festivais de música sertaneja do país, o Festeja. Suas produções inclusive já se tornaram gigantografia nos muros do metrô da capital. Nas fotos, os rostos de três quilombolas negras dão vida às paredes da estação.
“Não é normal você esbarrar com um rosto negro de dois metros de altura no meio da rua”, conta Denise, explicando a obra. Foto: Ceres Canedo / Divulgação TAU.
É no audiovisual que as três trajetórias se cruzam, impulsionadas pela insatisfação quanto à falta de representatividade. “A gente já não é colocada no cinema de jeito nenhum”, diz Gabi Matos. “Quando nos colocam, é na frente das câmeras como um estereótipo. É quase um contragolpe o que a gente tá dando agora. A gente tá começando a se levantar”.
Caminhando juntas para levar uma renca
“Para que as pessoas vejam as coisas como eu vejo”: esse é o maior propósito pelo qual Gabriela Matos diz fazer cinema. E ressalta: “Eu preciso que as pessoas sintam as coisas como eu sinto”. Seu trabalho de conclusão de curso, Favela em Diáspora, é um exemplo disso. O curta documentário é um registro da remoção forçada das famílias do Morro do Papagaio, sua quebrada de origem. Em vez de destacar as casas removidas, ela atravessa as paredes desses lares para enfocar as histórias que foram destruídas pela remoção.
Embora tenha a direção de Gabi, o curta envolveu a Renca e outras mulheres da comunidade onde foi filmado. Esse processo também foi imprescindível para o documentário “NDÊ! Trajetórias Afro-brasileiras em Belo Horizonte”. Previsto para exposição até 2020 no Museu Abílio Barreto, no bairro Cidade Jardim, o documentário foi construído a partir de uma ampla interlocução com a comunidade negra de BH para discutir a contribuição dessas pessoas na formação da cidade. “Eu preciso colocar essa pessoa de alguma forma dentro desse processo para que também seja o olhar dela ali”, diz Denise do Santos.
Denise dos Santos em ação. Foto: Renca Produções
“Nosso objetivo é colocar o cinema como um processo questionador participativo”, acrescenta Natalie. “A gente não produz pra você sentar ali na salinha e assistir ao filme. A gente tem debate e discussões. A gente tem dentro da nossa produção outras discussões que agregam no nosso processo de construção. Então outras pessoas têm essa interação com a gente”.
Processo. Esse termo foi repetido 50 vezes pelas mulheres da Renca durante a conversa que tivemos. A reiteração diz muito sobre o cinema que elas realizam. Ao filmar, a produtora recusa pedestais e retira, à força, a aura de inacessível da sétima arte.
Para quem cresceu junto a projetos sociais, as mulheres da Renca se sentem na obrigação de levar o maior número de pessoas junto com elas. Quando precisam de alguém para fazer a contabilidade da produtora, preferem chamar uma mulher preta. Querem alugar equipamentos para uma gravação? Por que não contatar uma equipe negra que também luta para se firmar no audiovisual? Se possível, elas chamam até o vizinho para fazer uma pontinha nos trabalhos:
“A gente sabe que lá onde a gente mora, de onde a gente vem, tem gente que faz também. Então eu vou dar preferência pro meu vizinho, para um moleque lá do morro. Da mesma forma que as pessoas não nos vêem enquanto mulheres negras produtoras no audiovisual, tem uma galera que não é visibilizada também”, justifica Denise.
“É uma renca que vem junto com a gente. A gente não sabe andar sozinha, não”, resume Natalie. Denise concorda: “A gente não sabe e a gente não pode, porque a gente não chegou aqui sozinhas”.
Gabi Matos, sorrindo, e Denise dos Santos, ao fundo. Foto: Renca Produções
A concepção de coletividade, aliás, está impressa no próprio nome da produtora. “Quando a gente pensou ‘produções e interações culturais’ foi uma coisa de passos futuros também”, explica Natalie. “A gente não só produz, a gente interage. A partir do momento em que a gente, enquanto Renca, chega em algum espaço, a gente tá interagindo com esse espaço”.
Seja a partir do cinema realizado pelas mulheres, seja por meio das inúmeras outras iniciativas que a produtora realiza para se sustentar financeiramente. Produções culturais, ensaios fotográficos e coberturas audiovisuais que vão ao encontro do olhar feminino, preto e periférico da produtora.
“Eu acho que essa é a ideia também: pegar um pouco de onde a gente chegou, do nosso privilégio de ter chegado a certos espaços e de ter certa visibilidade para multiplicar isso. Fazer isso reverberar de outras formas, para além do cinema”. Esse é o objetivo de Gabi, tanto para sua comunidade quanto para seu próprio filho, Isaque. “Que ele tenha orgulho do espaço dele. Que ele tenha orgulho de ser negro e que isso não o atrapalhe a ser arquiteto, jogador de futebol ou ninja. Que ele seja o que ele quiser ser”. E que as mulheres negras também.
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O Projeto Enquadro é uma iniciativa experimental realizada por Amanda Lira e Gabriel Araújo como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais