Em sua 23ª obra, “A Púpila é Preta”, um dos principais intelectuais do país traz contos sobre vivências negras em diversas perspectivas; confira a entrevista exclusiva
Texto: Juca Guimarães I Edição: Nataly Simões I Imagem: Divulgação
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O escritor Cuti lançou oficialmente neste dia 4 de fevereiro o livro “A Púpila é Preta”, pela editora Malê, com contos que apresentam personagens negros por um viés de humanização e da fricção das relações raciais. É o 23º livro autoral do autor, fora as coautorias e participações em coletâneas.
Ele é mestre e doutor em Literatura Brasileira e um dos fundadores do QuilombHoje, que edita a série literária “Cadernos Negros”, responsável pelo lançamento de centenas de autores e autoras negras desde 1978. Em entrevista concedida à agência Alma Preta, o autor falou sobre a nova obra e a literatura negra no país.
AP: Sobre o que se trata seu 23º livro?
Cuti: “A Pupila é Preta” é um livro contendo 22 contos versando sobre os mais variados assuntos,com ênfase nas personagens negras e as diversas situações de busca de sua humanização.
Como você avalia o atual momento da literatura negra, ou melhor, de autores negros no Brasil?
Meu novo livro não é teórico. É um livro de ficção. Portanto, não traz qualquer balanço sobre a produção intelectual de autoria negra no Brasil contemporâneo. As linhas vivenciais que o livro traz em suas histórias em nenhum momento pretende resumir a ampla produção de várias gerações. Da criança, em busca de seus objetivos imediatos, ao assaltante perseguido por um remorso, do jovem professor em busca do pai que nunca conheceu ao migrante em busca do cumprimento de uma missão, o meu livro trafega pelas preocupações que estão presentes em outros autores e autoras negras, privilegiando as relações familiares e seus conflitos com os demais segmentos da sociedade da qual faz parte. Há atualmente uma grande profusão de autoria negra, um verdadeiro encontro de gerações publicando e, assim, firmando como nunca a sua presença na literatura brasileira.
Como foram os últimos três anos para as questões da negritude e a busca de espaço paras as bandeiras do movimento negro?
Não disponho de um calendário da militância para traçar um recorte temporal, seja ele qual for. Entretanto, em “A Pupila é Preta” você vai encontrar, por exemplo, o discurso militante em consonância com instituições recreativas. Acho que isso é um dado de aproximação muito importante. A realidade política brasileira sempre impôs um distanciamento discursivo entre os movimentos sociais e a população.
A nossa literatura vem, no plano ficcional e poético, contribuindo para preencher o vazio que havia. Entretanto, a arte jamais será serva de ideologias. Ela tem em sua base manter vivo o senso crítico, trabalhando as contradições que sempre existem na sociedade e em qualquer iniciativa transformadora como é o movimento negro. Além disso, a importância da literatura está em, sutilmente, alertar de que não é possível transformação social sem transformação discursiva. As relações internas de língua, bem como as narrativas que a partir dela são construídas constituem a base do pensamento. A hegemonia linguística corresponde e alimenta a hegemonia em todas as demais atividades, justificando as opressões instauradas no seio de qualquer país. Daí a importância do trabalho de nossos escritores e escritoras.
Os brasileiros estão lendo cada vez menos e se informando muito mal. Qual o impacto disso para a formação do caráter crítico da população?
O povo brasileiro sempre foi deficitário quanto à leitura. Não houve um passado de intensa leitura. As políticas coloniais que vigoram no país sempre atuaram no sentido de desestimular a fruição do livro, principalmente de ficção e de poesia. O que estamos vendo é o vício virtual surgindo como mais um obstáculo à leitura. Mas, veja, a internet tem suas contradições. Uma delas é possibilitar maior divulgação das obras, tanto de livros quanto de textos e até de literatura oralizada. O livro “A Pupila é Preta” é um trabalho anunciado na rede.
Mesmo as pessoas que mais recusam a literatura – em geral por não terem sido despertadas para a sua imensa grandeza no sentido de possibilitar a nossa evolução enquanto ser humano – até essas pessoas terão oportunidade de algum acesso à obra. Desenvolvo um projeto chamado Padê Poema, que consiste em semanalmente publicar poesia pelos meios eletrônicos. Antes eu fazia por e- mail. Venho tendo respostas de várias pessoas que me indicam terem lido os textos. Já encontrei, por ocasião de uma palestra que fiz em um centro educacional, vários poemas impressos e expostos em mural. Houve também a grata experiência de ver um verso meu estampado em camisetas de vários alunos e alunas. Então, assim como existe uma overdose de vídeos alienantes e propagandas ideológicas baseadas em fake news, há também conteúdos críticos e um acesso, como nunca visto, a verdadeiras preciosidades textuais e informativas, incluindo aí textos literários.
É uma luta. Em algum momento o livro ganha adeptos a partir deste meio de comunicação. Um certo emburrecimento, já destacado por gente da comunicação, que estaria acontecendo no mundo talvez traduza a noção da internet enquanto vício. Muita gente fica horas na rede e não consegue ler um livro. Já existem sérias patologias nesse sentido. Então, quem quiser ter sanidade mental e física terá de dar atenção ao livro. Até mesmo para entender o nosso tempo e sua aceleração destrutiva da vida.
Em 2020, especificamente teve destaque mundial a campanha Black Lives Matter e aqui no Brasil o debate sobre o racismo estrutural. Quais foram os impactos reais desses dois movimentos?
O racismo se expôs como nunca enquanto um problema global. No campo específico da literatura chegou a sensibilizar as grandes editoras para a pulsante produção de autoria negra. Esta, por seu turno, teve uma maior percepção da sua importância. Quando se propagou que Vidas Negras Importam, escritoras e escritores negros perceberam que é o que fazem desde sempre, dando importância às experiências de vida da população negra com o discurso literário que não trata apenas da racionalidade discursiva, mas também da emotividade; não apenas do consciente, mas também do inconsciente individual e coletivo.
Em outros campos da arte isso também ocorreu, apesar da pandemia. Assistimos à dramaturgia filmada, vimos bailarinos realizando performances. Há uma maior percepção da população negra, mestiça e branca da recrudescência do racismo, o que a militância negra vem alertando que esse racismo cruel sempre existiu, apenas está sendo filmado e, com isso, noticiado. Muitas pessoas negras estão acordando e percebendo de onde e como o seu sono de alienação é produzido. “A Pupila é Preta”, assim como tantos livros publicados no ano passado, é um trabalho que, sem fazer pregação ideológica – pois literatura, no meu entender, não deve fazer isso –, tem a possibilidade de contribuir para o despertar de um número maior de pessoas, para que elas enxerguem a sua humanidade e a das outras pessoas. É para isso que, penso, deve servir a arte.