Santiago de Cali ou simplesmente Cali é uma cidade do departamento do Valle de Cauca, na região do Pacífico colombiano, uma das cidades mais antigas das Américas e que leva o título de “Capital da Salsa” por sua tradição na música e na dança. Cali, segunda cidade latino-americana com maior população afrodescente, serve de palco todos os anos, no mês de agosto, para uma das maiores festividades negras, o Festival de Música do Pacífico Petronio Álvarez. Neste ano, entre os dias 16 e 21, aconteceu a 27ª edição do evento, que segundo dados da municipalidade, reuniu cerca de 500 mil pessoas.
Patrício Romano Petronio Álvarez Quintero (1914/1966), o “Cuco”, que empresta seu nome ao festival, foi um músico e poeta nascido em Buenaventura, também na região do pacifico colombiano. Conta sua filha Juana Francisca Álvarez, que desde muito jovem o patrono do Festival cativava as pessoas da região criando músicas de improviso para vender as empanadas que sua avó fazia para o sustento da família. Em 1935, então com 21 anos, quando trabalhava como maquinista, Petronio criou um grupo musical que levava o nome de seu local de nascimento, “Buenaventura“.
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O grupo cantava diversos estilos musicais típicos desta região colombiana como balbucios, merengues, huapangos, sones, abuzaos e jugas. Sua canção mais famosa, “Mi Buenaventura“ se tornou um hino da região e tem mais de 25 gravações diferentes, interpretadas por diversos grupos locais como o Herencia de Timbiqui. Toda sua produção que fala dos costumes e personagens do pacífico colombiano é patrimônio da cultura afro do país com destaque ainda para as canções “Bochinche en el cielo”, “El porteñito”, “El Muertovivo”, “Teresa” e “Adiós al Puerto”.
O Festival nasceu por iniciativa de Juana Francisca e o então secretário de Cultura de Cali, Germán Patiño Ossa, em 1996. Em sua origem, era apenas um concurso musical, mas já em 2008 ganhou corpo e se converteu no que é hoje, uma mostra musical, gastronômica, cultural e artística. Ana Copete, diretora do evento e neta de Petronio Álvarez, afirma que o objetivo este ano foi “contar todas as histórias políticas sociais, econômicas que o festival agregou a Cali durante esses 27 anos de existência”. Para ela, a história de Cali é atravessada pela chegada do Festival, que a tornou “mais integral e inclusiva”.
A vice-presidente colombiana Francia Márquez participou da abertura do evento. Ela, oriunda de Suárez, cidade da mesma região de Vale de Cauca, é profunda conhecedora das tradições e culturas afro locais.
“Apoiamos a arte e a cultura porque acreditamos que essa é uma maneira de construir a paz. Estamos desfrutando do mais belo que tem essa região representada em sua arte, sua música e sua cultura. Queremos que a música do Pacifico não se expresse somente durante o festival Petronio, mas que transcenda as fronteiras do nosso país”, destacou a vice-presidente, em seu discurso.
Neste ano, entre os 1.500 artistas convidados, estiveram Gangbé Brass Band, do Benin, que mistura o ritmo da África Ocidental jù/jù e a música de Vodu adicional da região com o jazz ocidental e os sons de big bands, dividindo o palco com The Hot 8 Brass Band, de Nova Orleans, Estados Unidos, ganhadores do prêmio de melhor álbum do ano no Grammy de 2022 e Rancho Aparte, do Chocó, na Colômbia. Essas agrupações formaram uma grande orquestra para encenar um encontro afro diaspórico até então inédito nessas proporções no Festival.
Brayan Hurtado, atual secretário de Cultura de Cali, falou sobre os planos de tornar o evento internacional. “Nossa meta é levar nossa cultura popular ao mudo inteiro. Cali é a capital do pacifico colombiano, uma cidade orgulhosamente negra, orgulhosamente afro. Este festival se fez grande pela gente que vem nos visitar desde que éramos um grupo pequeno dividido pelos bairros de Cali. Hoje temos uma cidade cenográfica em um enorme espaço que recebe mais de 500 mil pessoas ao ano”, resumiu.
Maria Yaneth Riascos, diretora artística do Festival, avaliou que um dos grandes legados do evento é seu caráter educacional e intergeracional. “Tivemos no palco principal um grupo de jovens formados em edições anteriores e projetos musicais que chamamos de Semilleros (canteiros) se apresentando”, contou.
No segundo dia sempre acontece o concurso. Este ano, foram 44 grupos de diferentes localidades da Colômbia na competição das categorias de marimba e cantos tradicionais, chirimía (instrumento de sopro semelhante a um oboé), flauta, clarinete , violino caucano e versão livre.
Gastronomia e bebidas ancestrais
Ainda em seu discurso de abertura, Francia Márquez disse que“ como filha desta região não poderia ignorar a necessidade de reconhecer nossos sabores de nossa cozinha de mistura andina e afro“ , reforçando o papel central que a culinária tem na demarcação cultural da Colômbia.
Luz Mendes Bazan, cozinheira tradicional há mais de 15 anos, relatou à reportagem que sentiu uma grande emoção e felicidade em ser parte do festival “porque esse espaço é onde posso mostrar quem realmente sou, convidar meu povo e aos estrangeiros que chegam a provar um encocado de piangua, que é um prato muito tradicional nosso porque ele é abundante, ele cresce, ele pode alimentar muitas pessoas, é um prato que a gente sempre fazia nas casas quando não tinha muita comida porque no Pacifico as vezes não tinha comida, nem sempre havia comida suficiente então com esse preparo aumentava a comida.“
Outra presença marcante na dinâmica local da gastronomia é o viche, bebida oficial do Festival. Trata-se de um destilado obtido da fermentação da cana, elaborado artesanalmente nas comunidades negras do Pacífico, que em 2021 se tornou patrimônio cultural e ancestral da Colômbia e, inclusive, possui uma lei específica de regulamentação em tramitação no Congresso, a Lei do Viche. No ditado local, “o viche nos acompanha desde o nascimento até a morte“, uma vez que é usado para amenizar as dores do parto nas práticas ancestrais de parteira e em parte dos rituais fúnebres da região.
Um sabor agridoce ao final
Apesar da mudança do governo, que assumiu o poder no ano passado com o presidente Gustavo Petro cujo slogan é “Colômbia potência de vida“, o país encabeça as estatísticas como o que mais mata lideranças sociais, defensores de direitos humanos e signatários de acordos de paz nas Américas. Segundo o relatório do Observatório de Direitos Humanos, Conflitividades e Paz do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (INDEPAZ), publicado em agosto deste ano, somente em 2023 foram assassinados 124 pessoas em todo país ligados aos acordos de paz, como ex combatentes das FARC e, lideranças culturais, ambientais e territoriais, ao exemplo de indígenas, sindicalistas, fazedores de cultura, campesinos, agentes comunitários, afrocolombianos, ambientalistas e jornalistas.
Enquanto ocorria o Festival, no sábado (19), houve um assassinato durante uma festa em um dos bairros da cidade. Após um apagão na rede elétrica por conta dos temporais, o jovem Lisandro Vallencilla Riascos, de 31 anos, foi executado. Ele era líder social e cultural de Nariño, departamento colombiano na fronteira com o Equador, além de músico e membro do tradicional grupo Canalón de Timbiquí, que inclusive se apresentou durante as festividades.
O caso foi tratado pela polícia local como um desdobramento de uma briga. Em diversas entrevistas a jornais colombianos, o comandante da Polícia Metropolitana de Cali, coronel William Quintero, afirmou que ocorreu um ataque por arma de fogo que, ao que parece, foi por “intolerância social”.
“Fechamos o Festival com um sabor agridoce. O assassinato de Lizandro nos convida a refletir sobre o que está acontecendo e porque razão esss coisas acontecem justo com pessoas que buscam a manutenção das tradições, que fazem resistência ao conflito armado através da cultura. O que está acontecendo com nosso país? Ao final os que são assassinados são os portadores de tradição”, desabafou Lusimar Asrpilla, especialista em Cooperação Internacional.
Lusimar recordou o assassinato de outro homem negro, Junior Jein, nome artístico de Harold Angulo Vencé, de 37 anos. Cantor e defensor dos direitos humanos, ele foi assassinado em Cali em julho de 2021. Os autores dos disparos foram presos, mas até hoje os mandantes do crime não foram identificados. Junior foi executado pouco tempo após lançar uma música que denunciava o assassinato de cinco adolescentes colombianos durante a pandemia.