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Ikú: qual o significado da morte para o candomblé?

Alguns orixás do panteão africano – como Oyá, Omolu e Nanã – tem funções específicas ligadas à morte

Imagem: Reprodução/Redes Sociais

Foto: Imagem: Reprodução/Redes Sociais

2 de novembro de 2022

Nas religiões de matriz africana, a morte e o luto são encarados de forma diferente do que se lida na fé cristã. De acordo com os itãns de candomblé – ou lendas –, quando o mundo foi criado, coube a Oxalá a criação do homem, que deixou os mistérios e segredos da vida nas mãos dos orixás do panteão africano. 

Segundo a professora Nazaré Jacobucci, em seu artigo “O Significado da Morte e o Processo de Luto nas Religiões de Matrizes Africana: Candomblé”,  na época da criação, os homens que povoavam a Terra conseguiam tudo o que queriam com as oferendas aos orixás. Mas, aos poucos, os seres humanos começaram a se imaginar com os poderes que eram próprios dos deuses, deixando de lado o culto às divindades. 

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Cansado dos desmandos dos humanos, Oxalá decidiu viver com os orixás no espaço sagrado que fica entre o Àiyé – a Terra –, e o Órun, o céu. Além disso, a divindade passou a crer que os homens deveriam morrer: cada um num certo tempo, numa certa hora. 

Foi então que Oxalá criou Ikú – a morte. Nazaré explica ainda que Ikú ficou encarregada de fazer morrer todos os humanos, mas apenas com uma condição: só Olódumare – o deus supremo – poderia decidir a hora de morrer de cada homem. 

“A morte leva, mas não decide a hora de morrer. O mistério maior pertence exclusivamente a Olódumare”, ressalta o informe.  

O que a morte representa?

“Quando falamos sobre a morte é importante compreendermos como cada indivíduo, como a sociedade em que ele está inserido e como a religião que ele professa, a compreende. A crença religiosa professada pelo indivíduo é muito importante, pois é por meio dessa crença que ele fará a interpretação deste advento”, salienta Jacobucci.

O antropólogo Lévi-Strauss sugere que o primeiro ponto a ser considerado em relação à morte é a força que ela possui de abalar o cotidiano das pessoas e do mundo, e que a religião busca integrar a morte na ordenação de sentido da existência humana. 

Para ele, a religião seria, então, com suas práticas e crenças, responsável por legitimar a morte e permitir ao indivíduo continuar vivendo em sociedade, após a perda de seus entes queridos. Ainda segundo Lévi-Strauss, os “rituais mortuários são providências concretas para a manutenção da realidade em face da morte”. 

O autor destaca também a importância dos rituais para aqueles que se confrontam com a morte, como forma de “retomar ou recomeçar suas realidades sustentando o diálogo social”. 

Axexê: o ritual de passagem

Nazaré Jacobucci destaca que no candomblé as tradições são transmitidas oralmente. Não há nenhum texto que ganhe o status de uma escritura sagrada. 

“A oralidade é um instrumento a serviço da estrutura dinâmica da religião. A dinâmica do sistema recorre a um meio de comunicação que deve se realizar constantemente. Além da palavra, a transmissão do saber iniciático faz-se por meio dos gestos, da dança, do canto, dos atabaques, do ritmo e da emoção que o som exprime”, diz a autora.

Na interpretação do candomblé, o morrer é passar para outra dimensão e permanecer junto com os outros espíritos, orixás e guias. “Morrer é uma mudança de estado, de plano de existência; fazendo parte do ciclo, ao mesmo tempo religioso e vital, que possui início, meio e fim”.

Logo, segundo Nazaré Jacobucci, o axexê é o ritual fúnebre que se realiza quando uma pessoa iniciada no candomblé morre. É um ritual complexo, pois possibilita desfazer o que se tinha feito na feitura do santo. 

“Começa com a preparação do corpo para o enterro, depois é seguido de muitos cânticos e  por outros momentos específicos até completar um ano do falecimento da pessoa. Quando uma Iyalorixá ou Babalorixá (lideranças das casas de candomblé) morrem, o terreiro fica um ano sem atividades litúrgicas”, explica.

Orixás ligados à morte

Nazaré ressalta que alguns orixás do panteão africano possuem funções específicas que os liga à Ikú – ou morte. Um exemplo disso é Oyá (Iansã), divindade relacionada aos ventos e tempestades. “Oyá é quem tem o poder de conduzir os espíritos que faleceram ao Órun, mundo da não- matéria. Os itãns do candomblé revelam que o primeiro axexê foi realizado por Iansã”, pontua. 

O mito conta que vivia em Ketu um caçador chamado Odulecê, que era o líder de todos os caçadores, e que tomou por sua filha uma menina nascida em Irá, que por seus modos espertos e ligeiros era conhecida por Oyá. Ela logo se tornou a predileta do velho caçador, conquistando um lugar de destaque naquele povo. 

Um dia, Ikú levou Odulecê, fato que deixou Oyá muito triste. Então ela pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo: reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê e os enrolou num pano. Também preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear.

A lenda conta que Oyá dançou e cantou por sete dias. Depois disso, a orixá entrou na mata e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê. Olórun, que tudo via, emocionou-se com o gesto de Oyá e lhe deu o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Órun. 

Outro orixá ligado à morte é Omolu, o Senhor da Terra. A ele, segundo a tradição do candomblé, cabe receber o corpo para a transformação e encaminhar a alma da pessoa para Oyá. 

“Ele lidera e detém o poder dos espíritos e dos ancestrais, os quais o seguem. Ele é a própria terra, que recebe nossos corpos para que vire pó. Divide com Iansã a regência dos mortos, pois é o orixá encarregado de buscar o espírito desencarnado. O xaxará de Omulú, como se fosse uma vassoura, varre a morte. Não deve ser temido, porém respeitado”, destaca a professora. 

Outra divindade africana ligada à morte é Nanã, a mais velha dos orixás. Segundo a mitologia, Nanã é responsável pelo portal entre a vida e a morte, pois ela limpa a mente dos espíritos desencarnados para que eles possam se livrar do peso que sofreram em sua jornada, reencarnando sem os rastros da vida anterior. 

“Por isso, quando envelhecemos, ao decorrer dos anos começamos a perder nossa memória”, destaca o artigo. 

Costumes

No candomblé, segundo Nazaré Jacobucci, os praticantes não podem ser cremados, pois os corpos devem retornar à terra para completar o ciclo da vida. 

No pós-morte, o costume dos candomblecistas determina que é necessário juntar todos seus pertences pessoais utilizados em sacrifícios e obrigações da religião, e se faz uma consulta oracular ao jogo de búzios para se saber do destino dos objetos separados. No enterro as pessoas se vestem de branco. 

“Como seres humanos, sentimos saudades dos nossos entes queridos, mas eles permanecem conosco e são reverenciados por seus grandes feitos, por isso viver de forma digna é condição fundamental para seguir o seu destino, mesmo depois da morte”, finaliza a professora.

Leia também: ‘Dia Nacional da Saúde: o que nos ensina Omolu, o orixá da cura?’

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