Sessões privilegiam a exibição de filmes produzidos por pessoas das próprias comunidades; Uma reportagem do Projeto Enquadro: o cinema negro de BH em retratos jornalísticos
Texto / Amanda Lira e Gabriel Araújo | Imagem / Cine sem churumelas
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É noite de outono no bairro Leblon, em Venda Nova, região periférica de Belo Horizonte. Na praça, idosos e adultos de bermudas e chinelos estão sentados em cadeiras de plástico olhando para um ponto fixo. Crianças de todas as idades também estão concentradas. Cachorros passam sobre seus pés, mas são poucos os que os percebem. Estão todos atentos. É Noite de Cinema.
Alguns cones e correntes delimitam o espaço entre as cadeiras enfileiradas criando um corredor improvisado. No centro dele, em cima de uma mesa de plástico, um projetor direciona imagens a uma estrutura tão imponente quanto curiosa: a tela inflável de 8 x 5 metros atrai os olhares de todos. “No momento em que a tela sobe, todo mundo fica olhando. É muito legal o impacto que gera”, conta o idealizador do projeto, Oderval Junior. Em poucos minutos, pipocas e refrigerantes são distribuídos de graça para o público.
Sessão realizada na praça Rio Branco com exibição dos filmes “O som que vem das ruas” (2010) de Daniel Veloso e Eduardo Zunza, “Nada” (2017) de Gabriel Martins e “BH é o Texas” (2017) de Jorge Mairink, Marcelo Lin e Marcão Pesada. Crédito: Antônio Benvindo
“Ih, coitado!”, vibra uma das espectadoras. Na cena em questão, um camelô era interceptado por policiais durante um protesto contra a decisão de retirada de ambulantes das ruas da capital mineira em 2017. O take faz parte do documentário “BH é o Texas” (2017), dirigido por Jorge Mairink, Marcelo Lin e Marcão Pesada. Minutos se passam e aumenta-se o volume da trilha sonora que dá nome ao filme – “Texas”, do mineiro MC Papo. A reação do público à canção é instantânea: crianças e adultos se remexem em seus assentos acompanhando o ritmo da batida. Era 20h e, no meio da noite, a praça ainda estava cheia.
“Eu saí do serviço, passei em casa, peguei as meninas e vim”, conta a auxiliar administrativo Ingrid Osório. A mulher, de 27 anos, assistiu pela primeira vez a uma exibição do projeto Noite de Cinema. Na praça, ela estava acompanhada de sua mãe Janete e de suas filhas, Ísis e Helena, de 2 e 5 anos. “Toda oportunidade que eu tenho de levá-las a algum lugar onde elas possam ter acesso à cultura, eu movo céus e terra”, frisa Ingrid. Apreciadora de rap e da cultura hip hop, ela permaneceu na praça até o último segundo da programação. “Achei sensacional”.
Embora encantada pelos filmes, Ingrid admite que não costuma frequentar os cinemas “tradicionais”. Quando perguntamos sobre quantas vezes ela costuma ir às salas dos shoppings, ela hesita por alguns instantes. “Olha… Uma vez no mês”, estima, emendando uma correção. “Não, exagero, mas uma vez a cada dois meses eu tento”, afirma, comentando a preferência que dá a atividades gratuitas. “Sempre que eu fico sabendo, eu levo as meninas, quando posso”.
Apaixonado pela sétima arte, o professor de geografia da rede pública José Roberto, de 34 anos, também não se lembra da última vez em que esteve em uma sala de shopping. “Eu acho muito caro. Quando eu vou, é nos shoppings mais baratos mesmo”, comenta José. “Mas falou em evento de rua, eu tô indo”, complementa o professor, que, sozinho, assistiu a toda programação.
Ingrid Osório e sua família, à esquerda, e o professor José Roberto, à direita, acompanharam a sessão realizada no dia 24 de maio. Crédito: Amanda Lira
Do muro de casa para as quebradas de Beagá
Produtor cultural, Oderval Junior fundou o projeto Noite de Cinema em 2012. As exibições, ainda tímidas, começaram no muro de sua casa, no bairro Maria Helena, em Venda Nova. “Como moro numa rua sem saída, fiz ali mesmo. A gente não tinha nem projetor na época. Pegava emprestado”, relembra. A sessão de estreia contou com a exibição de filmes d’Os Trapalhões. “Uma das senhoras que estava lá parou para agradecer porque não ia ao cinema desde os anos 70 e eu levei o cinema para perto da casa dela”, relata Oderval, emocionado.
Apenas após quatro anos improvisando projeções em muros de casas e caçambas de caminhão que Oderval conseguiu juntar economias o suficiente para adquirir a grande atração do projeto atualmente: a tela inflável. “Eu vi uma tela dessas num castelo na Espanha quando trabalhava lá e pensei: por que não levar a ideia pra minha quebrada?”. No Brasil, o equipamento custou cerca de R$10 mil. O investimento, Oderval pondera, valeu a pena. “A gente incentiva que as pessoas ocupem o espaço público. Quando vemos o público chegando trazendo o próprio banco de casa… Não tem preço”.
Registros das primeiras edições do projeto Noite de cinema, em que as projeções eram realizadas em caminhões (à esq.) e em muros (à dir.). Créditos: Oderval Junior
Depois de sete anos de projeto, Oderval arrisca alguns números: de acordo com seus cálculos, o Noite de Cinema já fez cerca de 60 exibições, passando por mais de 30 bairros da capital mineira e por outras cinco cidades da região metropolitana. Todas as locações, segundo ele, foram em regiões periféricas. “Nossa intenção é que as pessoas tenham acesso à cultura produzida por elas. Essa é nossa missão de vida”.
Com base na proposta do Noite de Cinema, sempre foram selecionados para projeção filmes nacionais e, de preferência, produzidos nas quebradas de Minas. “Nosso foco são as periferias. Por isso, a gente tem que ir com a produção também da periferia – seja local ou de fora”, frisa Oderval. A recepção do público, aliás, é uma importante preocupação do projeto. “Hoje, por exemplo, a gente viu que tinha muitas crianças, mas as sessões eram mais focados no público adolescente, com filmes sobre o rap e o hip hop. Então incluímos antes um filme infantil. A gente tem muito esse cuidado”.
Para auxiliar nas escolhas dos filmes, o projeto conta com a curadoria de Marcelo Lin, um dos fundadores da produtora audiovisual mineira Estética Urbana. “Levar filmes para as ruas tem a ver com formar novos públicos para o cinema. É importante a gente mostrar, na periferia, que cinema também é coisa de pobre”, ressalta Lin. “Se eles não têm dinheiro pra ir ao shopping assistir aos filmes, temos de criar projetos ou políticas para que as pessoas consigam acessar de alguma forma”.
Embora já possua os equipamentos, atualmente, o projeto Noite de Cinema conta com o incentivo da Lei Municipal de Incentivo à Cultura para financiar ações como a distribuição de lanches e divulgação do projeto
É para preencher à mesma lacuna que a equipe da Associação Filmes de Quintal – entidade mineira que reúne pesquisadores, professores e estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – promove periodicamente uma série de exibições em espaços periféricos da capital mineira. As sessões são uma espécie de “braço” do forumdoc.bh (Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte), promovido no centro da cidade desde 1997.
Com a iniciativa de descentralização, o forumdoc.bh já passou por locais como a Casa do Hip Hop, na periferia do Taquaril, e o Centro Cultural Lá da Favelinha, no Aglomerado da Serra. “É um gesto de tentar levar esses filmes exatamente para formar novos públicos e fazer com que eles circulem”, comenta uma das organizadoras do projeto e mestre em Sociologia pela UFMG, Júnia Torres.
“Tem uma adesão bastante interessante, bem surpreendente. A gente faz uma curadoria compartilhada com os coletivos e com as pessoas que coordenam esses espaços”. Segundo Júnia, as escolhas costumam ser por filmes em que a juventude da periferia é protagonista. “As pessoas se veem na tela”, reconhece.
Dentre as exibições recentes realizadas pelo forumdoc.bh nas comunidades, Júnia destaca a sessão do filme “NoirBLUE” (2018), da diretora preta Ana Pi, na Casa do Hip Hop. No filme, a própria diretora se coloca em cena, registrando, em movimentos de dança, o seu (re)encontro com o continente africano ao qual sente pertencer. Segundo a sinopse, na obra, Ana “se reconecta às suas origens através do gesto coreográfico, engajando-se num experimento espaço-temporal que une o movimento tradicional ao contemporâneo”.
Cena do curta-metragem “NoirBLUE”, da diretora mineira Ana Pi (em cena)
“É um filme formalmente complexo, com uma narrativa que experimenta. Não é um filme trivial. E o filme foi bem recebido”, comenta Júnia Torres sobre a sessão no Taquaril. A justificativa para a boa aderência do público, segundo a socióloga, tem a ver com a aproximação das cenas retratadas com a realidade vivida pelo próprio público. “Tem a dança que conversa bastante com a dança de rua e com a capoeira que é feita aqui no Brasil. E a periferia aqui no Brasil é majoritariamente negra, como sabemos”, pontua.
Gravado em países como Níger, Costa do Marfim, Nigéria e Angola, o filme NoirBLUE suscitou, segundo relato de Júnia, reações viscerais do público. “Aquelas meninas novas que gostam de dançar e que são negras vêem a Ana no filme e têm sensação de reconhecimento: ‘Olha, eu também posso dançar na França, posso ser chamada pra dançar na África, em outros países’”, afirma Júnia. “Elas projetam novos modelos, sonhos, perspectivas. É uma sementinha que acaba sendo plantada”.
Público da sessão de “NoirBLUE”, realizada neste ano na Casa do Hip Hop, no bairro Taquaril. Crédito: Associação Filmes de Quintal
Com um lençol, uma caixa de som e um projetor emprestado, o projeto Cine Sem Churumelas também tem se proposto a aproximar o público periférico da sétima arte. Realizado na cidade de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, o projeto exibe filmes gratuitamente em praças, becos e muros de escolas.
Além das projeções, o projeto ainda conta com um diferencial: abarca produções realizadas pelos próprios espectadores. “A gente queria um tipo de cinema que fosse sem muita burocracia e que as pessoas deixassem de lado a reclamação. Aqui não tem dificuldade”, garante a idealizadora da iniciativa Dayane Gomes. “Qualquer vídeo caseiro serve, desde que a classificação indicativa seja livre. Não precisa nem preencher ficha. Se a pessoa trouxer um pendrive, o vídeo está passando”, assegura Dayane.
Para incentivar a população a, de fato, produzir seus próprios filmes, o Cine Sem Churumelas inovou: elaborou uma série de livretos intitulados “Filmes feitos à mão: guia prático para fazer seus próprios filmes”. Financiados pelo Fundo Municipal de Incentivo à Cultura, os materiais foram distribuídos gratuitamente em espaços de grande circulação de Contagem, como padarias e salões de beleza. “Nossa ideia no Cine Sem Churumelas sempre foi mostrar filmes de quem era da região, mas nem sempre tinha produção. A gente queria que outras pessoas despertassem, vissem a simplicidade de fazer essa produção e fizessem a delas”, conta Dayane.
À esquerda, Dayane Gomes segura um dos 400 exemplares dos guias distribuídos gratuitamente em Contagem; à direita, exibição realizada em 2016 na praça Petrolândia, em Contagem. Crédito: Cine sem churumelas
Artista visual por formação, Dayane Gomes, que também nasceu na região periférica de Contagem, ampliou seu contato com o cinema apenas na faculdade. “Muito do que a gente aprendeu do audiovisual, a gente não aprendeu na escola. Era tudo muito ligado à produção hollywoodiana”, conta Dayane, abarcando também a experiência dos seus parceiros no projeto, Débora Arau e Jonas Filho. “Foi difícil para mim essa ideia de trabalhar com algo que eu não tinha o mínimo de afinidade e de descobrir como isso seria possível dentro da minha realidade. Até hoje estou entendendo isso”, reconhece Dayane.
Em abril de 2018, durante uma pausa nas exibições em espaços públicos, o Cine Sem Churumelas promoveu o Grupo de Estudos em Cinema Negro nas dependências do Galpão Cine Horto, centro cultural localizado na região Leste de Belo Horizonte. Durante o evento gratuito, houve a exibição do curta “Cinzas”, da diretora baiana Larissa Fulana de Tal, seguido de uma roda de conversa sobre o texto “Kbela e Cinzas: o cinema negro no feminino do Dogma Feijoada aos dias de hoje”, de Janaína Oliveira.
A proposta do encontro, segundo a descrição do evento no Facebook, era “promover reflexões sobre cinema, política, raça, gênero e outras conexões”. “Eu acho que no início do Cine Sem Churumelas, a gente não tava muito ligado nessas questões. Sempre tocava muito na periferia e no acesso à cultura. Mas essa causa está ligada também ao que a gente se propõe a fazer. É lá [nas periferias] que a maioria da população negra se encontra ainda”, afirma Dayane. “Eu venho do mesmo lugar”.
Projeção de futuros
Redes e parcerias. Talvez seja esse o grande motor dos projetos que ousam levar para as ruas sessões de cinema. Na organização do Noite de Cinema, por exemplo, estão cerca de dez pessoas, entre parentes e amigos próximos de Oderval. A parceria com os cineastas, que cedem seus filmes para exibição, também é fundamental para o prosseguimento do projeto, que hoje tem como desafio a própria sustentabilidade. “A gente tem o sonho de viver do Noite de Cinema. Se a gente pudesse todos os dias ir para uma quebrada…”, inicia Oderval, deixando em aberto a conjectura.
O projeto Cine sem Churumelas também contou com o apoio de pessoas próximas desde a primeira edição, em 2014, na praça da Jabuticaba, em Contagem. “Era muito na tora, sempre com apoio da família e dos amigos. A gente conseguiu ponto de luz, projetor emprestado e tapete. As pessoas nos davam carona e emprestavam caixa de som”, relembra Dayane. “Aí o projetor emprestado queimou e tivemos que dar uma parada”.
Como o Noite de Cinema, o forumdoc.bh e o Cine Sem Churumelas, existem outros projetos em Belo Horizonte que têm levado para as ruas das periferias filmes realizados pelas próprias quebradas. Quase todos começam da mesma forma: “na tora”. São pessoas que, por meio de iniciativas gratuitas e independentes, se juntam para verem suas próprias projeções.
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O Projeto Enquadro é uma iniciativa experimental realizada por Amanda Lira e Gabriel Araújo como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais