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Intolerância religiosa afeta cultura alimentar dos terreiros

19 de novembro de 2020

Relação sagrada dos povos africanos com a comida é a base de cultos perseguidos no Brasil, como o candomblé

Texto: Caroline Nunes, especial para o Alma Preta e para O Joio e O Trigo

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As religiões de matriz africana, como o candomblé, ainda são marcadas pela falta de conhecimento acerca das suas práticas e pela intolerância religiosa, crime que só no Estado de São Paulo gerou 3.960 boletins de ocorrência no ano passado, segundo a Polícia Civil.

No caso do candomblé, esse tipo de violação afeta diretamente a cultura alimentar do terreiro, uma vez que a religião é baseada no culto às forças da natureza e na alimentação. É o que conta o pai de santo Anderson Gentil, babalorixá do Ilê Asé Omo Odé Karê, em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. “O candomblé é feito dentro da cozinha. Cada orixá tem a sua comida, a sua cantiga, o seu preparo especial. A comida para nós serve para tudo, seja para agradecer, para festejar ou pedir saúde e proteção”, explica.

Os cultos de matriz africana são clientes preferenciais da intolerância religiosa. Balanço divulgado pelo Disque 100 (plataforma do governo federal que recebe denúncias de violações aos direitos humanos) mostra que, em 2019, 61% das denúncias de discriminação tinham por alvo essas religiões.

Um dos crimes que configuram intolerância religiosa é a depredação dos locais onde se realizam cerimônias. Gentil pondera que destruir um terreiro, por exemplo, significa ferir a ancestralidade e o respeito aos alimentos, que são a base do culto. Em setembro de 2018, o espaço cerimonial do babalorixá foi invadido, depredado e roubado. O sacerdote lembra que após cumprir com uma de suas obrigações na casa de seu pai de santo – onde ele ficou recolhido por 21 dias passando por um processo de evolução de grau espiritual – retornou ao seu terreiro e encontrou o local completamente destruído.

“Quando eu cheguei, percebi que eu não tinha mais uma casa de candomblé. Não tinha mais porta. Quebraram o muro, destruíram a cerca, quebraram o portão, derrubaram a casa de Exu, roubaram coisas do quarto de Oxalá, depredaram o quarto de Oxóssi. Tudo o que tinha lá foi quebrado”, recorda. “Da cozinha aos quartos, não sobrou nada.”

Para Gentil, a invasão – da qual não se conhece a autoria – foi motivada simplesmente por se tratar de um espaço de candomblé. “Destruíram e roubaram a minha casa por puro prazer. Ali não era um lugar maligno, ali era casa de orixá e era a minha casa. Era uma casa em que as pessoas que não tinham o que comer podiam ir, pois ali seriam alimentadas. Era a casa em que crianças em situação de vulnerabilidade podiam ficar tranquilas. Eu não tinha nem como recomeçar com o que restou, nem sequer os atabaques restaram, até o telhado foi quebrado”, conta, emocionado.

“Quem come a comida de santo não passa fome”

O sacerdote afirma que o Ilê Asé Omo Odé Karê era um espaço que acolhia muitas pessoas que passavam por necessidades, às vezes famílias inteiras. Para ele, essa comunhão – feita principalmente na cozinha – significava o ensinamento dos valores da religião. “Quem come a comida de santo não passa fome, pois é um alimento abençoado que supre as necessidades do corpo e também da alma. Nós nos reuníamos para as funções da casa, todo o mundo ajudava um pouco para não faltar nada para os orixás e para quem morava no Ilê. Tinha sempre alguém cozinhando e passando adiante os conhecimentos dentro da cozinha. Interferir nesse processo de ensino é interferir diretamente na cultura negra”, diz.

Não existe um registro histórico do nascimento do candomblé no Brasil. A religião, oriunda dos povos africanos escravizados no período colonial, surge como uma adaptação da vida no cativeiro, conforme destaca a doutoranda em antropologia social Jaqueline Conceição, também diretora executiva do Coletivo De Jeje, voltado a pesquisas étnico-raciais e de gênero.

Segundo ela, os diversos grupos étnicos que compõem o candomblé – como os nagôs, bantus, funfuns – possuem costumes trazidos do período escravocrata. Jaqueline explica que para compreender a ligação da alimentação com o candomblé é necessário compreender qual a relação da cultura africana com o ato de comer: alimentar-se de forma simples valorizando os ingredientes. “A comida faz parte do processo central do modo de produção da experiência dentro do terreiro. Tudo o que se faz é feito comendo. Rezar e comer, partilhar a comida, tudo isso é sagrado.”

Jaqueline também é candomblecista e afirma que o alimento é feito, consagrado e consumido na casa de candomblé dentro de um processo coletivo. “Essa comida é sagrada porque ela não está separada da experiência do corpo, que é importantíssimo, pois o corpo é o local em que a divindade se manifesta. Esse mesmo corpo é mantido e alimentado por uma comida que é feita coletivamente. A relação das práticas ancestrais com a comida, dentro dos terreiros de candomblé, é uma relação de proximidade, sobretudo, de uma determinada noção de mundo, porque a forma como é preparado o alimento conta histórias e memórias sobre essa diáspora africana forçada”, explica. “Tudo dentro de um terreiro é marcadamente registro de memória e prática cultural, coletiva, filosófica e ancestral.”

Simplicidade criativa

Os alimentos utilizados em um terreiro de candomblé são itens simples e que estão presentes no cotidiano dos brasileiros, como os grãos: feijão, canjica e milho. “Talvez a falta de informação e conhecimento sobre os terreiros corrobore a ideia de que ali se comam coisas completamente diferentes do que se consome no resto da sociedade, mas a verdade é que a nossa base possui frutas, legumes, verduras, grãos, farinha de mandioca”, conta Jaqueline. “Um feijão fradinho, que você escolhe com cuidado, cozinha, tempera com cebola, dendê e às vezes camarão se torna um Omolocum, que é uma comida para Oxum”, ensina Gentil.

O chef de cozinha Júlio Valverde, dono do restaurante Soteropolitano, na cidade de São Paulo, comenta que a comida feita em terreiros de candomblé faz parte da cultura culinária do Brasil. Nascido em Salvador, ele incluiu há 25 anos em seu cardápio o caruru – prato em homenagem aos Ibejis do candomblé (São Cosme e Damião, no sincretismo católico). “É uma grande festa servir caruru. É pura alegria. Por mais que se trate de uma comida de preceito, o restaurante conseguiu adaptar isso para que todo o mundo possa compartilhar esse momento, essa comida”, relata.

O cozinheiro observa que a influência religiosa de matriz africana sobre a comida baiana gera preconceitos, e que pessoas evangélicas, por exemplo, evitam frequentar seu restaurante por conta disso. “Apesar da discriminação, o Soteropolitano serve como um espaço cultural. Sim, alguns pratos têm ligação direta com as comidas dos orixás, mas comida faz parte da cultura, então vou continuar servindo.”

O pai de santo Anderson Gentil salienta que as refeições feitas para os orixás podem ser consumidas por todos. “É como se fosse uma bênção. Nós alimentamos os orixás e eles nos alimentam. É exatamente comer com os deuses.”

Por conta disso, Gentil acrescenta que os frequentadores do candomblé ou de outras religiões afro aprendem a ser gratos e que tudo pode se tornar alimento para o corpo com as receitas e ingredientes utilizados para preparar as comidas dos orixás. Ele diz que esse tipo de prática criativa ainda pode evitar que pessoas em situação de vulnerabilidade passem fome.

“Com farinha de milho branca, um pouco de água e capricho você prepara um acaçá, e com esse alimento a pessoa já não vai passar fome. Tudo se torna alimento para o sagrado e com coisas simples nós podemos nos alimentar”, ensina.

Para a empresária Jainda Kelida Marques Silva – também psicóloga e terapeuta holística, e conhecida como Cigana Kelida nas redes sociais -, os alimentos para rituais são fonte de força e representam abundância e devoção. Kelida, iniciada na umbanda e também na Jurema (culto afro-ameríndio), diz que pessoas ligadas às religiões de matriz africana enxergam os alimentos de forma diferente, pois entendem a importância deles para a troca de energia.

“Quando me alimento, compreendo que aquilo me foi dado pela natureza e que eu devo agradecer por tudo o que está na mesa. Dentro do meu conhecimento, é assim diariamente: o contato que eu tenho com o alimento é o contato que eu tenho com a natureza, que alimenta o meu corpo como um templo”, diz a terapeuta.
Ela comenta também que, tanto na umbanda que ela pratica quanto na Jurema, não ocorrem sacrifícios de animais e que o preconceito com essa atividade provém de puro desconhecimento. “Respeito muito e compreendo as razões que levam ao sacrifício animal em alguns cultos. Esses atos são feitos sempre dentro de limites.”

O sacrifício animal

O líder religioso Anderson Gentil explica o que é e o que significa, dentro dos preceitos do culto que representa, o sacrifício animal – normalmente de frangos. “Não é esse bicho-de-sete-cabeças, e de forma alguma é feito de maneira cruel, pelo contrário. É necessário cuidar bem desse animal antes: alimentar, lavar, rezar, e aí sim sacrificar. Depois disso, separa-se o axé – que são as partes reservadas para o orixá – e cozinhamos essas partes para colocar aos pés dos santos.”

O sacerdote conta que o restante do frango é consumido pelos filhos e irmãos de santo que comungam ali, ou é doado para alguém que esteja precisando. “Esse animal tem que ser honrado. Nada é desperdiçado. Ao alimentar alguém, a ancestralidade é honrada”, diz.

Jaqueline Conceição considera que o ensino da cultura africana nas escolas poderia estabelecer uma melhor relação da sociedade com as questões que envolvem as religiões dessa matriz. Para a pesquisadora, o ideal não é falar sobre religião na sala de aula, “e sim explicar a história e a cultura africanas, o que consequentemente irá mostrar que o candomblé – bem como o protestantismo – teve impacto histórico na construção da identidade e que esse é um espaço de luta e resistência de uma memória negra, de uma prática negra e de um corpo negro, produzido e pensado dentro de um terreiro, e que sai para o mundo através da própria comida”.

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