A dignidade no trabalho doméstico é o que moveu a luta de Laudelina de Campos Mello (1904-1991) em um Brasil no qual por muitos anos as trabalhadoras domésticas foram tratadas como subumanas, fruto da mentalidade de um país onde a escravidão perdurou por mais de 300 anos.
Pioneira, Laudelina se tornou voz ativa na defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas no país. Iniciou sua militância ainda jovem, aos 16 anos, em uma Poços de Caldas, cidade do sul de Minas Gerais, segregada, onde a comunidade negra enfrentava dificuldades para acessar espaços públicos e culturais.
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A ativista fundou a primeira associação de trabalhadores domésticos no Brasil, em 1936, que se tornou o primeiro sindicato da categoria, em 1988. Laudelina também integrou a Frente Negra Brasileira, a maior organização negra do século XX, na qual foi uma das responsáveis pela criação do departamento doméstico da instituição.
Laudelina também organizava bailes e eventos culturais para a população negra e mulheres trabalhadoras, atuando como articuladora cultural e criando espaços de resistência e de fortalecimento comunitário em uma época marcada por grandes desigualdades sociais e raciais.
Dignidade e luta
O papel de líder política e cultural exercido por Laudelina ao longo de sua vida é o fio condutor da exposição “Laudelina: Dignidade e Luta”, aberta para visitação no Instituto Moreira Salles (IMS) de Poços de Caldas até 14 de setembro de 2025.
A exposição reúne fotografias, matérias de imprensa, documentos e objetos pessoais de Laudelina. Em diálogo, são exibidas obras de artistas visuais negros, que discutem o tema do trabalho doméstico, numa intersecção entre o legado de Laudelina e as lutas contemporâneas.
O trabalho doméstico sempre foi visto por Laudelina como uma extensão da escravidão, uma espécie de continuidade de um sistema que até hoje marginaliza e explora mulheres, em sua maioria negras.
Exposição “Dignidade e luta: Laudelina de Campos Mello”, no IMS Poços. Foto: Divulgação/IMS Exposição “Dignidade e luta: Laudelina de Campos Mello”, no IMS Poços. Foto: Divulgação/IMS Laudelina na posse da Diretoria da Associação das Empregadas Domésticas de Campinas, Campinas, São Paulo, 5 de julho de 1962. Foto: Acervo Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Campinas Representantes dos sindicatos de Campinas na Câmara dos Deputados, Brasília (DF) no dia 10 de agosto de 1965. Foto: Acervo Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Campinas Obra “Mil oitocentos e 2022. Supernanny Brasil”, do artista Alberto Pereira, no IMS Poços.
Após a abolição da escravização em 1888, os negros libertos se encontraram em situação de vulnerabilidade social, já que não receberam ao menos a posse de terras para construírem um futuro digno. Nesse contexto, as mulheres negras continuaram a exercer trabalhos específicos de cuidado.
“A mulher negra escravizada era a ama, era escravizada na Casa Grande, mas também existia a que estava fora da casa. Mas essa da Casa Grande é a que se criou no Brasil, na cultura e na sociedade brasileira estruturalmente. A ideia da exposição foi mostrar essa continuidade”, explica à Alma Preta Raquel Barreto, que divide a curadoria da exposição com Renata Sampaio e assistência de Phelipe Rezende.
Laudelina via a cozinha como um lugar de luta e resistência, onde as mulheres que trabalhavam fora de seus lares podiam socializar, se fortalecer e reivindicar direitos. A mostra do IMS enfatiza a importância de suas ações culturais, como piqueniques para as trabalhadoras domésticas, proporcionando momentos de lazer e união para mulheres que, até então, eram excluídas desses espaços.
Heroína nacional
Há quase seis milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no Brasil, sendo 92% mulheres e 65% mulheres negras, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As trabalhadoras domésticas continuam a enfrentar altos índices de informalidade, com 4,3 milhões de pessoas sem carteira assinada no setor, mas foi a luta de mulheres como Laudelina que pavimentou o caminho para o reconhecimento formal da categoria, com a promulgação da Emenda Constitucional 72, em abril de 2013, 22 anos após a morte da ativista.
A medida, que ficou conhecida como PEC das Domésticas, garantiu os primeiros direitos trabalhistas da categoria, como auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, idade ou tempo de contribuição.
Em 2015, a proposta foi regulamentada com a aprovação da Lei Complementar nº 150, de autoria da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), e os trabalhadores domésticos passaram a ter direito também a seguro-desemprego e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O legado de Laudelina ganhou um novo capítulo em 2023, quando a pioneira teve seu nome inscrito no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, localizado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. A publicação contempla personalidades brasileiras importantes para o país na defesa da democracia e da liberdade e que dedicaram sua vida ao país em algum momento da história.
Em depoimento à pesquisadora Elisabete Pinto, cuja dissertação de mestrado defendida em 1993 foi referência para a exposição do IMS, Laudelina comenta que as trabalhadoras domésticas demoraram a ser consideradas enquanto categoria profissional sob a alegação de que “não traziam economia para o país”.
“Nós trazemos a economia, eles saem para trabalhar, principalmente a classe média, eles têm que trabalhar fora e então passam a escravizar a empregada doméstica”.