Por: Victor Lacerda
Desabafos e reflexões sobre aquilo que a atravessou nos últimos tempos e o que a conforta. Uma pluralidade de sentimentos transformados em músicas para retratar o seu novo eu e que continua – pulsante -, se transformando. É assim que a cantora Liniker apresenta o seu mais novo trabalho, intitulado ‘Índigo Borboleta Anil’. Com lançamento nesta quinta-feira (9), o disco demonstra a coragem de uma artista de lançar um projeto, mesmo que em meio ao caos de uma crise sanitária, que a permitiu um mergulho na primeira pessoa do singular.
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A grandeza de brincar com os timbres da sua voz e a produção musical detalhista, marcas registradas em seus outros trabalhos, se fundem na curiosidade de conhecer a si mesma e mostrar ao mundo a simplicidade de apenas ser. Na obra, a cantora ainda faz um resgate de sua ancestralidade, a fim de, assim como um novo passo na carreira, também se transformar em uma nova pessoa. A Liniker, potente e crente de suas verdades, que muitos já conhecem, aparece em ‘Índigo Borboleta Anil’ como uma pessoa que está, e se permite estar, em constante metamorfose. Um dos trabalhos mais honestos consigo mesma.
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“Clau”, “Antes de Tudo”, “Psiu”, “Lua de Fé”, “Lalange”, “Baby95”, “Presente”, “Diz Quanto Custa”, “Vitoriosa” e a faixa bônus, “Mel”. Onze canções que permitem conhecer a fundo um pouco da Liniker e as suas camadas de sensibilidade ao que se foi e é vivido. Com co-produção da própria artista junto aos produtores Júlio Fejuca e Gustavo Ruiz, a vivacidade e completude do projeto e de suas trocas ainda se dá pela participação de Milton Nascimento, de Tássia Reis, de DJ Nyack, de Tulipa Ruiz, da Orquestra Jazz Sinfônica, de Letieres Leite e da Orkestra Rumpilezz.
Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, a artista fala sobre sua percepção política, a falta de incentivos ao setor cultural, da pressão em colocar no mundo seu novo projeto, das trocas orgânicas nas construções musicais, das homenagens que quis fazer e até de seu encontro com a Liniker da adolescência. Um papo plural, despretensioso, assim como o seu mais novo disco se apresenta. Confira!
AP: Como foi para você gestar um álbum em meio a pandemia? Como se deu esse processo?
Liniker: O primeiro momento do disco começou a ser feito em outubro de 2019, foi quando comecei a entender esse novo trabalho e a pensar sobre o disco. Só que, até então, pensava nesse disco com a possibilidade de que 2020 seria 2020, que eu ainda teria muitas coisas para fazer e que esse disco seria lançado só depois. E aí que veio lockdown, a pandemia e eu me senti perdida, me perguntando para onde eu iria. Eu desacostumei de uma rotina de estar em casa, de não estar viajando a trabalho. Então esse disco todo nasce no sentido de quando a pandemia é instaurada e eu começo a mergulhar para dentro de mim cada vez mais, até me encontrar com cada letra que nasce com esse processo.
AP: Em algum momento você se sentiu pressionada a estar produzindo em um cenário tão adverso como esse e em um ritmo que você não esperava?
Liniker: Tive muitos momentos nesse período. Alguns em que eu escrevia desesperadamente, em um fluxo muito grande, outros que eu simplesmente parei e não conseguia me ver criativa. Tiveram momentos na pandemia que eu não cantei e passei semanas, meses assim. Acho que tem uma coisa também da coragem dentro do processo. A coragem de se renovar, de testar outras coisas quando já se tem um conhecimento sobre seu trabalho por algum outro viés. Isso foi muito imprescindível neste trabalho. Eu sou muito grata por não ter desistido, por ter encontrado outras formas de me comunicar e lançar esse disco agora.
AP: Você sentiu dificuldades na construção desse projeto diante de um cenário da cultura no país que não se pensa em investir em diversos setores, como na música? Como você avalia esse panorama para a classe?
Liniker: O retrocesso que a gente está vivendo é tamanho e a falta de amparo também, principalmente à uma classe artística, que é uma das áreas mais afetadas no sentido da pandemia, que é quem está em contato com o público e não está trabalhando. É muito triste perceber que a gente não tem leis de incentivo e leis de segurança para o nosso trabalho para um tipo de caos como esse. Um cenário que a gente soma e contribui tanto, mas não tem respostas governamentais e políticas, nesse sentido mesmo de proteção para a gente. Então, acho corajoso mesmo lançar esse trabalho, por ser isso, eu não vou fazer show tão cedo, a não ser que estejamos em outra realidade, em segurança. Mas, agora, especificamente, é um momento muito denso, por mais que muitas pessoas já estejam vacinadas e a gente enfrente um negacionismo gigante, lanço esse disco pela possibilidade de não perder a esperança. Principalmente, lançar esse disco para não me desencorajar dentro dos meus processos, sabe? De entender que tudo isso que está aí fora no retrocesso é muito menor comparado a tudo que eu e outras pessoas pretas e corpos LGBTQIA+ e trans tem conseguido e resistido nesse tempo todo.
“Quem dita as minhas leis e meu movimento é quem me guia e eu, mais ninguém nesse sentido”, pontua Liniker
AP: Tratando do disco, desde o nome – ‘Índigo Borboleta Anil’ – ele desperta certa curiosidade. De onde vem a escolha do título do primeiro trabalho em carreira solo?
Liniker: Esse disco nasceu de um processo de intuição muito grande. Eu queria que quando as pessoas vissem e ouvissem ‘Índigo Borboleta Anil’, conseguissem entender a cor dessas águas todas que eu digo nesse disco, sabe? Contando com uma relação ancestral e de axé mesmo, borboleta é o bicho que simboliza meu orixá, simboliza Oyá. Então, acho que ter essa cor, ter essa imagem da borboleta, que é tanta coisa, que se transforma, que está no vento, solta e livre, é muito o lugar que eu estou precisando acessar hoje, que é a liberdade dentro de uma construção de uma carreira já de tantos anos. Acho que é poder me refazer dentro das coisas que eu já criei. É me permitir acessar outros lugares e não ser encaixotada ou enrijecida sob uma visão de mercado, em um lugar que sempre tenta colocar o meu corpo e a minha trajetória. Então, quem dita as minhas leis e meu movimento é quem me guia e eu, mais ninguém nesse sentido. Então, é um disco de abundância, de texturas, de muitas imagens, de um som muito pensado para ele. ‘Índigo Borboleta Anil’ é sobre prosperidade, sobretudo, prosperidade negra.
AP: Você falou sobre religião e afirma que o disco vem como um encontro seu à ancestralidade. Em quantas vertentes, se for possível destacarmos, podemos identificar essa relação?
Liniker: Acredito que uma outra vertente da ancestralidade é o processo do disco ainda ser um processo vivo. Não é porque eu lanço ele agora, dia 9, que acabou. Eu sinto que, assim como a ancestralidade, ele me mostra dia a dia a força e a potência dele. Acho que também poder viver um processo em tempo ativo e ser um processo onde eu construí tanta coisa que a partir dele eu posso fazer tantas outras coisas me deixa em uma sensação de renovação em tempo cíclico, sabe? Me dá uma sensação que eu dou o tempo para esse disco, eu dou o tempo para aproveitar esse processo e está sendo ótimo ter essa autonomia sobre meu trabalho e sobre mim mesma.
“Falar de mim, nesse momento, está sendo um lugar muito novo, muito importante e que me conecta com uma coisa que, por vezes, a gente esquece, que é o amor próprio”, afirma a artista
AP: Do novo álbum, a faixa “Antes de tudo” foi uma canção que você escreveu aos 16 anos e, ao mesmo tempo, você afirma que o seu novo projeto define a Liniker em tempo real. Como você trouxe a Liniker dos 16 para este projeto? Como é esse encontro com uma versão sua na juventude?
Liniker: Eu acho que ele é um disco que é um espelho do agora, mas, ao mesmo tempo, eu me sinto em reforma, sabe? Me sinto em processo. Acho que por isso que é legal pegar uma música que foi a primeira música que escrevi e poder reformar esse trabalho. Eu já era eu desde aquela idade, sabe? Eu tive experiências com uma banda Liniker e Os Caramelows, tive outras experiências no quesito do som, mas eu acho que nunca foi tão importante e tão fundamental para mim falar do eu, falar de mim, do meu processo, da minha vida, do meu ponto de vista e não está tão compartilhada ou vivendo coletivamente em processos artísticos. Falar de mim, nesse momento, está sendo um lugar muito novo, muito importante e que me conecta com uma coisa que, por vezes, a gente esquece, que é o amor próprio. Estou nesse plantio aí e tem sido muito gostoso fazer parte dessa colheita, ver as coisas crescendo.
AP: Na faixa “Lalange”, uma canção que aborda a maternidade, você homenageia o menino Miguel Otávio, aqui do Recife, e sua mãe, Mirtes Renata. Como o caso te atravessou e de onde partiu a vontade de transformar em música?
Liniker: Enquanto pessoa preta, estou cansada de todas as notícias de violência, de mortalidade, de desumanidade causada em nossos corpos. Não só a morte do Miguel, mas todos os casos que somos brutalmente atravessades, mas falando do caso dele, me causou uma estranheza muito grande e, ao mesmo tempo, me levou pra minha infância. Minha mãe foi doméstica por muitos anos, então eu sei o que é estar na casa da patroa. Nesse sentido eu fiquei pensando que, por muitas vezes, essa criança poderia ter sido eu. Muitas vezes minha mãe passou por coisas onde ela foi extremamente humilhada, desrespeitada. Acho que a música vem também por essa quantidade de lágrimas que nós estamos cansades de chorar pela dor, né? Então, eu queria que, de alguma forma – claro que eu não sei o que é sentir isso -, a canção chegasse na Mirtes para dizer para ela que ela não está sozinha. Assim dizer para minha mãe, para outras mães e dizer para gente também que a ancestralidade é uma coisa que, por mais que a dureza do tempo do agora doa e seja cruel, a gente não está só, não estamos aqui à toa. A faixa vem para falar de um ponto de vista do sonho, sendo adulta, hoje, falando de uma criança que virou ancestral e ainda poder cantar com um ancestral vivo, mais velho, que é o Milton Nascimento, que significa tanto para a música, que significa tanta para mim. Acredito que é poder fazer o movimento de diáspora no agora e poder falar sobre o que está com a gente agora e o que está aqui. Por mais que esteja no além, também está aqui.
AP: Aproveitando que você citou uma das participações, o ‘Índigo Borboleta Anil’ conta com, além do grande Milton Nascimento, colaborações da Orquestra Jazz Sinfônica e do Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz. Como se deram essas trocas? Foram bem pensadas ou de maneira mais fluida?
Liniker: O disco é muito orgânico. Acredito que, pelo tempo que a gente levou produzindo, ele permitiu que as coisas fossem acontecendo no tempo das coisas. Isso é muito lindo, porque eu acho que nunca tive tempo para viver um processo tão rico como esse. O “Remonta” eu produzi quando estourei e aí precisava lançar um disco. O “Goela Abaixo” produzi entre uma turnê e outra. Já esse, sem romantizar a pandemia, produzi nesse tempo que vivi o caos, mas que ao mesmo tempo estava muito em mim e ainda estou. Isso me permitiu acessar meu trabalho de outros jeitos e me deu uma qualidade de entender a minha arte de forma totalmente diferente. Sou muito grata a esse movimento e sou muito grata a todas as participações e colaborações que, organicamente, chegaram a esse trabalho.
AP: E qual é a expectativa da recepção do público por uma nova busca sua dentro da música e de mostrar, agora de forma solo, quem é você no agora?
Liniker: Todo mundo está me perguntando se estou ansiosa e eu acho que não estou assim. Acredito que o adjetivo seja confiante. É claro que existe uma expectativa, é claro que eu quero que as pessoas escutem e que o disco seja tocado em muitas vitrolas e plataformas, mas só o fato de eu ter tido coragem de não ter desistido, para mim, eu já ganhei muita coisa. Acredito que é um disco presente para o público, mas eu já me dei esse presente, que foi fazer esse disco do jeito exatamente que eu queria. Acho que é tão difícil quando o desejo para a gente, enquanto pessoa preta e, para mim, enquanto pessoa trans, é um lugar tão negligenciado, que poder fazer uma coisa do jeito que eu quero, da forma que eu vejo e do jeito que eu acho que existe já significa muito. Espero que as pessoas consigam captar essa energia de verdade que tem nele e consigam se esquentar pelo calor pelo o que eu produzi nesse trabalho.
AP: E as pessoas podem esperar alguma apresentação em live, em breve, para terem um gostinho do ‘Índigo Borboleta Anil’ cantado ao vivo?
Liniker: Esse disco é um trabalho que eu vou fazer muitas coisas com ele e estou na organização disso, porque trabalho na pandemia requer toda uma agenda e uma realocação que ainda estamos entendendo, mas com certeza meu público não vai ficar de fora das experiências de viver esse disco. Shows ao vivo ainda não cogito, por uma questão de segurança sobre o COVID-19, não só a minha, mas das outras pessoas, mas, com certeza, já já vão sair novidades incríveis.