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Muito além do carnaval: infecções sexualmente transmissíveis e racismo

2 de março de 2019

Embora seja necessário atenção neste período, a questão das DSTs é muito mais complexa, principalmente para a população negra e periférica do país

Texto / Simone Freire
Imagem / Reprodução

O debate sobre as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) levanta muitas discussões e cuidados nos tempos festivos, mas especialistas e militantes afirmam que, embora seja necessário atenção neste período, a questão é muito mais complexa do que alguns dias de carnaval, principalmente para a população negra e periférica do país.

De 1980 a junho de 2018, o Brasil registrou 982.129 casos de Aids no Brasil, uma média de 40 mil novos casos por ano, segundo o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde. Em 2017, foram diagnosticados 42.420 novos casos de HIV e 37.791 de Aids. E desde o ano de 2012 observa-se uma diminuição na taxa de detecção da doença.

De forma geral, o Brasil é bem avaliado quando se trata do acesso ao tratamento, pois, por exemplo, é um dos únicos no mundo que garante o acompanhamento gratuito, que tem uma fábrica estatizada de preservativos – a Natex, criada em 2008 na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – e medicamentos de alta tecnologia produzidos e patenteados nacionalmente.

No entanto, a epidemia de HIV (vírus causador da Aids que ataca o sistema imunológico) não se dissemina pela população de maneira homogênea. São os aspectos sociais os principais fatores que influenciam na sua disseminação.

No Brasil, a incidência de risco está na população de mulheres transsexuais, homens que fazem sexo com homens (HSH) – que não são necessariamente homosexiais, mas mantêm relações homosexuais, por exemplo, por dinheiro – e de homosexuais (LGBT+).

mandala prevencao combinada

E é justamente sobre esta população que o Estado tem se mostrado negligente, aponta Marcelo Morais, ex-gestor do programa Transcidadania da Prefeitura de São Paulo. “A gente não pode só falar de prevenção de HIV ou distribuição de camisinha, a gente tem que falar em prevenção combinada com diversos outros insumos e instrumentos combinados para a gente conseguir barrar a infecção”, explica.

É questão de cor também

Segundo o boletim nacional, nos últimos quatro anos houve queda de 16,5% na taxa de mortalidade pela doença passando de 5,7 mortes por 100 mil habitantes em 2014 para 4,8 óbitos em 2017.

No entanto, quando distribuídos proporcionalmente os óbitos notificados no ano de 2017 por raça/cor, observa-se que 60,3% são negros (46,6% pardos e 14,1% pretos), 39,2% brancos, 0,2% amarelos e 0,2% indígenas. A proporção de óbitos entre mulheres negras também foi superior à observada em homens negros: 63,3% e 58,8%, respectivamente. Realizando uma comparação entre os anos de 2007 e 2017, verifica-se uma queda de 23,8% na proporção de óbitos de pessoas brancas e um crescimento de 25,3% na proporção de óbitos de pessoas negras.

Micaela Cyrino, uma das fundadoras da Rede de Jovens e Adolescentes Vivendo com HIV/AIDS no Brasil e integrante do Coletivo Amem: Comunidade, Cultura, Resistência; explica que o fato de a população negra ser a mais atingida e a que mais morre não é uma novidade.

Segundo ela, a população negra é, de forma geral, negligenciada na maior parte das vezes no acesso à saúde. No caso de doenças sexualmente transmissíveis, quando as pessoas negras descobrem o seu diagnóstico de HIV, por exemplo, a infecção já está em um estágio mais avançado.

sergio vale secom

Fábrica de preservativos da Natex, criada em 2008 na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foto: Sérgio Vale / Secom.

“Também estamos falando sobre o acesso ao sistema de saúde. O medicamento é gratuito, mas quem tem esta informação? Como o sistema é nas periferias? Como são os equipamentos para fazer os exames? Não é simplesmente ter a política, mas ter como usar”, questiona.

Juventude

Na contramão dos dados gerais, a taxa de detecção de Aids entre homens jovens de 15 a 29 anos de idade tem aumentado nos últimos dez anos. Segundo Micaela é preciso prestar atenção sobre qual é a população que mais costuma ou tem campanhas para que façam testes, que acabam sendo computados nas pesquisas.

“Não existe um discurso de que todo mundo está vulnerável ao vírus. Eu acho que existe um mito sobre sexo e juventude. A juventude não é o foco da Aids. Tem a ver com várias informações e com quem está sendo mais testado também”, diz. “Eu acho que esta resposta é um fortalecimento do que o Estado prega também”, complementa, referindo-se aos estereótipos muitas vezes designados à população LGBT+.

A artista plástica é enfática ao afirmar que é preciso um exercício cirúrgico para mudar a cara da AIDS no Brasil. “Não é uma epidemia de gay. É uma epidemia social. Se a gente tem tratamento e testes e as pessoas continuam morrendo de AIDS a gente precisa falar do que de fato elas estão morrendo. A depressão mata, a solidão mata, o maltrato do Estado mata, o racismo mata. As pessoas continuam morrendo em decorrência da AIDS mas é por causa destas coisas. De fato, o vírus não mata mais. A gente precisa cirurgicamente tirar a cara do Cazuza da Aids. A gente precisa falar que mães, mulheres e senhoras vivem com HIV e a gente precisa dar conta disso porque as pessoas estão morrendo”, enfatiza.

Bolsonaro: “o problema é deles”

Durante os governos Lula e Dilma Rousseff, por exemplo, Marcelo Morais aponta que era possível pensar em uma política integrada de prevenção do HIV. Foi nesta época também que o país aderiu à Meta 90-90-90 da UNAIDS, programa das Nações Unidas que tem o objetivo de criar soluções e ajudar nações no combate à Aids.

Ambiciosa, a proposta prevê que até 2020, 90% de todas as pessoas vivendo com HIV saberão que têm o vírus, que 90% de todas as pessoas com infecção pelo HIV diagnosticada receberão terapia antirretroviral ininterruptamente e 90% de todas as pessoas recebendo terapia antirretroviral terão supressão viral. 

Mas o cenário atual não é muito promissor. Recém eleito, o atual presidente Jair Bolsonaro (PSL) deu sinais, ainda em sua campanha, de que não pretende dar a atenção necessária a questão da prevenção do HIV e tratamento da Aids no país.

Em uma entrevista ao programa CQC, da Band, ele afirmou que o Estado não deveria custear o tratamento para quem precisa. “Uma pessoa que vive na vida mundana depois vai querer cobrar do poder público um tratamento que é caro […] Se não se cuidou, o problema é deles”, disse.

Morais é crítico a esta postura. “Quando a gente extingue uma área que está tratando de uma população que tem um número deste tamanho de infecção a gente está pensando em genocídio, em política de extermínio de massa, em uma opção política em assassinar uma parcela da população, e é uma parcela gigantesca”, salienta.

Atualmente, o Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), do HIV e Hepatites Virais, vinculado ao Ministério da Saúde, também tem sofrido intervenções com a atual gestão.

Responsável por pensar tanto a prevenção do HIV quanto encaminhamentos de casos e metodologia de cuidados a pessoas infectadas, o comando da pasta ficou instável depois do impeachment da presidenta Dilma. Desde 2016, por exemplo, três pessoas diferentes assumiram seu comando. A última delas, a médica infectologista Denise Arakaki Sanchez, tomou posse nesta terça-feira (26) como substituta eventual.

Resistência

O acesso à saúde da população vivendo e convivendo com o HIV/AIDS está previsto na Constituição após ser pautada na Assembleia Constituinte de 1988. Além disso, existem diversos dispositivos legais a que estas pessoas podem recorrer.

Em 1989, profissionais da saúde e membros da sociedade civil criaram a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da AIDS. Em 2004 foi sancionada a Lei n°12.984, que estabelece como crime a discriminação contra pessoas vivendo com HIV ou AIDS. Soma-se a isso o direito ao auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, além do sigilo no trabalho e sigilo médico.

Todas estas conquistas tiveram protagonismo da luta do movimento da sociedade civil organizada e LGBT. “É muito importante a gente pautar como uma responsabilidade governamental e que não é feita. […] Dentro disso, a sociedade civil se organiza para ter algumas performances mais rápidas. Existe uma Rede Nacional da Saúde da População Negra HIV/Aids, existem fóruns, ongs e um circuito que traz este assunto para o debate para além das dsts, mas para uma saúde integral mesmo, especialmente para a população negra”, diz a artista plástica Micaela Cyrino.

cartaz lgbt

Entre estas iniciativas destaca-se o Festival Bixanagô – Empoderamento e Estática Negra. Neste ano, as ações acontecem de 21 a 23 de março, em São Paulo (SP), no Dia Internacional contra a Discriminação Racial.

Além de programações artísticas, a iniciativa promoverá uma série de debates e oficinas, que vão levantar a discussão de temas como a criminalização do corpo negro LGBT e os direitos da população LGBT. No dia 23 a mesa “Dandara dos Santos” abordará sobre a questão da incidência de infecções sexualmente transmissíveis na população negra e periférica. A proposta é falar sobre longevidade e combater o imaginário da maior parte da população que entende que teve a vida perdida ao se infectar.

“O festival, por ser um espaço que vai agregar inúmeras expressões de sexualidade e das periferias como um todo, se propõe a ser um festival de cunho político e militante em algumas áreas. Então a gente não podia ficar de fora deste debate tão caro para quem é LGBT+, para quem está inserido neste cenário de vulnerabilidades. A gente precisa dessa militância para que a política de AIDS permaneça, mas que a gente consiga também encontrar estratégias de sobrevivência desta população que convive e está vulnerável à infecção”, explica Marcelo Morais, que também é um dos idealizadores do Festival.

Carnaval

O carnaval é um dos períodos mais esperados no ano. É importante não se inibir, mas, na mesma proporção, é importante se preservar em alguns momentos. É bom ficar atent@ às medidas de prevenção elaboradas pelo poder público.

pep reprodução

Uma delas é a Profilaxia Pós-Exposição, a PEP, uma medida de prevenção de urgência que consiste no uso de medicamentos para reduzir o risco de adquirir essas infecções. Ela deve ser utilizada após qualquer situação em que exista risco de contágio como violência sexual, relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com rompimento da camisinha) ou acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou contato direto com material biológico).

Durante o Carnaval 2019 a Profilaxia Pós-Exposição estará disponível nos serviços 24 horas em Salvador(BA), Porto Seguro(BA), Recife(PE), Rio de Janeiro(RJ) e São Paulo(SP). No site do Ministério da Saúde você encontra a lista completa dos locais de atendimento.

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