Por: Fernanda Rosário
A cidade de São Paulo completa 469 anos nesta quarta-feira (25) com o tema “São Paulo, o Mundo Se Encontra Aqui”, em que há uma programação recheada de eventos e manifestações culturais até o dia 29 de janeiro. Com uma população de, aproximadamente, 37% de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, segundo o Censo Demográfico de 2010, a capital paulista tem em sua história uma memória negra que nem sempre é visibilizada e reconhecida.
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“A história oficial da cidade marginaliza constantemente a contribuição das pessoas negras na construção de São Paulo, e, quando dizemos construção, estamos falando de dimensões materiais, enquanto mão de obra escravizada ou livre e também da construção de pensamento, cultura, tecnologias, modos de viver e manter a vida”, explica o coletivo de pesquisadores Cartografia Negra ao Alma Preta Jornalismo.
No passado, de acordo com publicação do Instituto Bixiga – Pesquisa, Formação e Cultura Popular, a Vila Colonial e a São Paulo Imperial tiveram um quilombo urbano e muitos personagens da cultura negra compondo o cotidiano das ruas e largos.
Quituteiras e quitandeiras com seus tabuleiros de alimentos, amas de leite que criavam crianças abandonadas, lavadeiras, carregadores de água, rodas de capoeira e cordões carnavalescos são algumas das pessoas e situações que circulavam no cotidiano da capital.
Também estiveram na cidade figuras históricas para a história negra do país, como o arquiteto Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira), homem negro escravizado que conquistou sua alforria no século XVIII e foi responsável por obras fundamentais da São Paulo colonial. Há trabalhos dele que podem ser conferidos até hoje, como nas fachadas da Igreja da Ordem 3ª do Carmo e da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco. Ele foi responsável pelo primeiro chafariz público da cidade.
“No passado de São Paulo, também teve um Pelourinho (onde acontecia a venda de escravizados) e uma forca nos territórios da Sé e Liberdade, onde eram realizados os castigos corporais previstos no ‘Código Criminal do Império’ de 1830 e na famigerada ‘Lei da Morte’ de 1835, transformando a região central da cidade num território de muitas lutas e resistência da cultura negra em São Paulo”, pontua o artigo do Instituto Bixiga escrito por Danielle Franco da Rocha, Edimilsom Peres Castilho e Eribelto Peres Castilho.
Inclusive, a estrutura da forca, anteriormente erguida nas margens do Rio Tamanduateí, foi transferida no século 18 para o sul da Sé. Nos anos de 1850, o Largo da Forca foi renomeado para Praça da Liberdade e depois alterado para Praça Liberdade-Japão, considerando a imigração japonesa que o bairro teve, o que pode levar a um esquecimento de outras memórias que o espaço guarda.
“O Bairro da Liberdade é um desses bairros que marca bem a presença negra e a tentativa de apagamento dessa história.Hoje é bairro predominantemente oriental, porém carrega uma grande história negra e, ao caminhar de forma atenta e conhecer a Capela dos Aflitos ou a Igreja da Cruz das Almas dos Enforcados, percebemos essa história”, explica o coletivo Cartografia Negra.
Em 2019, a organização SampaPé chegou a instalar uma sinalização na Praça da Liberdade sobre o Largo da Forca com um objetivo de resgate histórico. Nesse contexto, eles lembram do militar negro Francisco José das Chagas, apelidado Chaguinhas. Ele foi um mártir executado na praça em 1821, tornando-se um “santo” local. Até hoje, a Igreja Nossa Senhora dos Aflitos, próxima à praça e pertencente ao antigo cemitério público da Vila Colonial que existia ali, é espaço de fé e devoção à Chaguinhas.
População negra no desenvolvimento da capital paulista
Amailton Magno Azevedo, professor do Departamento de História da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), explica que há uma historiografia brancocêntrica que consolidou uma corrente de análise centrada na história do trabalho em São Paulo. Nessa tendência, há uma consagração da presença de imigrantes europeus que formaram a classe trabalhadora durante o período de urbanização e industrialização desde meados do final do século XIX e as primeiras três décadas do século XX.
Contudo, segundo o professor, os historiadores e historiadores antirracistas argumentam que nem tudo era branco em SP. Em seu livro “Sambas e quintais e arranha-céus: as micro-Áfricas em São Paulo” (2016), ele situa a presença negra envolvida com o mundo do trabalho informal, de artistas, músicos, bem como instituições culturais, como os cordões e escolas carnavalescas.
“Desde o último terço do século XIX é perceptível os cantos de trabalho de mulheres negras nas ruas de SP, de advogados como Luiz Gama [que libertou centenas de escravizados] trabalhando a favor da causa negra. Na virada do XIX pro XX, São Paulo é tomada por uma onda de famílias negras vindas do interior paulista que irão contribuir para avolumar a presença negra no centro antigo, em locais como Bixiga, Liberdade, Glicério, Barra Funda, Praça da Sé e arredores”, destaca Amailton.
O historiador também conta que, cessada a onda de chegada de imigrantes europeus, nos anos de 1930, outra onda se constitui, mas agora de brasileiros negros, mestiços e brancos pobres vindos da região nordestina, sobretudo Bahia e Pernambuco, e do Brasil Central, particularmente de Minas Gerais.
“Essa onda de brasileiros desconcentra a hegemonia cultural dos brancos descendentes, sobretudo de italianos, e afirma novas manifestações culturais afro-indígenas. Pode-se exemplificar com a dança do forró, onde a herança indígena se destaca no movimento de batida dos pés. Além do forró, religiosidades de matriz africana também vão se consolidar, a exemplo da umbanda, desde meados dos anos de 1920”, ressalta.
Assim, o professor Amailton Magno acrescenta que, desde a onda de negros do interior paulista à aquela de negros, mestiços e brancos pobres do Nordeste e Brasil Central, configurou-se outra história cultural da cidade. “E nela, não há como negar e ignorar a presença dos pretos e pretas”.
Inclusive, em 2022, vestígios do Quilombo da Saracura, que deu origem à região do Bixiga, foram encontrados durante as escavações da obra da Linha 6-Laranja do metrô. Há um movimento e reivindicação para que a nova estação de metrô receba o nome em homenagem ao passado negro da região e também abrigue um memorial com os achados arqueológicos para preservar este legado. Para o movimento, Saracura Vai-Vai deve ser o nome da estação que é oficialmente chamada de 14-Bis.
“O bairro do Bixiga, que antigamente abrigava o Quilombo do Saracura, passou a abrigar a escola de Samba Vai-Vai e ainda tem uma grande presença negra, por mais que tentem fazer dele um bairro italiano”, acrescenta o coletivo Cartografia Negra.
Leia mais: Por que a nova estação de metrô em SP deve chamar Saracura/Vai-Vai e não 14-bis?
Fluxo internos da população negra na cidade
O professor do Departamento de História da PUC-SP Amailton Magno Azevedo destaca que a onda nordestina e mineira vai habitar outros bairros e zonas além dos já citados por ele, pois a partir dos anos 40 há fluxos internos de famílias negras na cidade devido à especulação imobiliária que as expulsa do centro.
“As famílias que viviam na Barra Funda se deslocam para a Zona Norte, com destaque para a Casa Verde e arredores. A que vivia no Bixiga, se desloca para a Saúde, Jabaquara e arredores. A partir dos anos 60, o processo de hiperurbanização espalha e dispersa a população negra para aquilo que chamamos de periferia. Nesse processo destaca-se a presença negra nas margens super distantes do centro como Capão Redondo, Grajaú, Itaquera, Guaianases, Perus etc.”, explica.
Dados do Censo de 2010 e reunidos em publicação de 2015 da Prefeitura de São Paulo mostram que a população negra atualmente concentra-se nas periferias da cidade. Em locais como Parelheiros, a população negra chega a 57,1%, enquanto em zonas centrais como Pinheiros é de apenas 7,3%.
Segundo o historiador, nas periferias distantes a cultura negra também se afirmou em torno do samba, das escolas carnavalescas, da religiosidade, dos salões de dança, do rap, do reggae, do rock, do samba rock, da MPB, da bossa nova e da black music estadunidense.
“Johnny Alf, por exemplo, é considerado um dos precursores da bossa nova e viveu na região da Mooca. Geraldo Filme, considerado um dos fundadores do samba paulista, circulou no Bixiga, frequentando os bailes negros e a escola Vai-Vai. Atuou também na organização do carnaval, trabalhando inclusive no Anhembi”, comenta.
O historiador relembra que o epicentro da história do movimento negro brasileiro no pós-abolição ocorreu em São Paulo. Em julho de 1978, por exemplo, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, mulheres e homens negros fizeram um ato para confirmar a criação do MNU (Movimento Negro Unifiicado).
“São incontáveis as lideranças e os ativistas negros que ao longo do século XX e XXI se envolveram com política. Pode-se com isso dizer que os negros daqui não só rezaram, cantaram e dançaram, mas também fizeram política. Desde a imprensa negra como o Alvorada, A Voz da Raça e o Menelick nas três primeiras décadas do século XX ao Alma Preta no século XIX, há expressões dessa luta negra por afirmação cultural e étnica”, finaliza.
Confira abaixo vídeo produzido pela Alma Preta Jornalismo sobre a exposição ‘Presente! Presenças Negras no Theatro Municipal’ que busca resgatar a história da negritude e de todos os artistas que passaram pelos palcos do teatro. A exposição segue até o dia 29 de março.
No contexto da comemoração de aniversário de São Paulo, houve a abertura da exposição “Intersecções – Negros(as), Indígenas e Periféricos(as) na Cidade de São Paulo”, que acontece no Solar da Marquesa de Santos e Casa da Imagem. A exposição ilumina os fazeres das populações negra, indígena e periférica e reforça suas importâncias na cena cultural paulistana ao apresentar um conjunto de movimentos culturais, artistas, processos e encontros. A mostra reúne mais de 300 obras de mais de 100 artistas paulistanos. A visitação à exposição será possível até o dia 28 de julho.
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