Hoje conhecido como sinônimo de histórias em quadrinhos – ou HQs – o termo “gibi” teve múltiplos significados ao longo da história. Já foi usado no passado para se referir a “menino negro”, “moleque” ou “negrinho”, muitas vezes de forma pejorativa, sobretudo no Rio de Janeiro.
Também era o nome do primeiro personagem negro com destaque nas histórias em quadrinhos brasileiras. Criado por J. Carlos, em 1907, Giby era um garoto afro-brasileiro no papel de criado presente na história do menino branco Juquinha, publicada na revista infantil O Tico-Tico.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
A mudança no significado de “gibi” começou em 1939 com o lançamento da revista bissemanal Gibi, publicada pela editora de Roberto Marinho, dona do jornal carioca O Globo. A publicação trazia como “mascote” um garoto negro, com traços estereotipados, que não era parte de nenhuma das histórias veiculadas na revista.
As histórias da revista Gibi atingiram em cheio um público jovem e ávido por leitura com personagens e histórias como Charlie Chan, Brucutu e Ferdinando. A publicação passou a ser trissemanal em pouco tempo, até ganhar uma versão mensal com histórias completas.
Com os anos, muitas pessoas também passaram a usar “gibi” para se referir a jornaleiro, sobretudo a partir da mudança de grandes editoras do Rio de Janeiro para São Paulo. Em meados da década de 70, a troca de significado no termo levou a substituição do menino negro utilizado como símbolo da revista Gibi por um chapéu de jornaleiro.
Hoje, “gibi” é a palavra mais popular para se referir às histórias em quadrinhos no Brasil, com pouca ou quase nenhuma ligação com o significado original atribuído nos séculos passados.
A despeito da ligação do termo com a figura negra no Brasil, poucos foram os personagens negros que integraram as páginas das histórias em quadrinhos do país. Dentre as razões para isso, destaca-se a baixa presença de quadrinistas negros nas publicações. Além da baixa representação, os estereótipos pejorativos dominaram boa parte das identidades negras nas HQs brasileiras.
“No Brasil, o que nos parece bastante grave para um país que não reconhece o preconceito racial, os heróis são exceções, nem sempre honrosas (vide Pelezinho, de Maurício de Souza). A verdade é que a nossa galeria de personagens negros é bastante pequena: Benjamin (Luís Loureiro), Lamparina (J. Carlos), Azeitona (Luíz Sá), Pererê (Ziraldo), Preto-que-Ri (Henfil) – e mais um ou outro exemplo”, escreve Moacyr Cirne no livro “Uma introdução política aos quadrinhos”.
Primeiras aparições
De acordo com Romildo Lopes, mestre em comunicação midiática e autor da pesquisa “Identidades Secretas: representações do negro nas histórias em quadrinhos norte americanas”, é possível identificar cinco modelos básicos que constroem as representações de negros e negras em nossa cultura.
“O escravo nobre, que vence pela força do seu “branqueamento”; o negro vítima, bom e oprimido; o negro infantilizado, serviçal e subalterno; o escravo demônio, bestificado pela própria condição; o negro pervertido, promíscuo e objeto sexual”, afirma.
Ainda presentes em mídias e veículos da imprensa, essas representações também existem na retratação afro-brasileira nas páginas das HQs nacionais. Esse contexto traz ainda a presença crônica da figura negra como coadjuvante em histórias quase sempre protagonizadas por brancos.
É o caso de Benedito, primeiro personagem negro a aparecer em uma história em quadrinhos no Brasil. Ainda que não guarde traços tão estereotipados como os personagens que vieram depois, ele era criado de Nhô-Quim, protagonista de história homônima.
Criada pelo italiano radicado no Brasil, Angelo Agostini, Nhô-Quim foi publicada em 1869 e é considerada a primeira história em quadrinhos produzida no Brasil. Retratava a aventura de um caipira rico exilado na Corte pela família, com ares trapalhões e ingênuos.
A obra tinha forte apelo crítico em relação aos problemas urbanos e costumes sociais e políticos da época. Ao longo das 14 edições de Nhô-Quim outros personagens negros e negras aparecem, ainda assim, em posições subalternas e sem relevância crucial para o enredo.
A forma e o espaço dos personagens negros
Além de figurar em segundo plano, negros e negras apareciam com estereótipos bem definidos e baseados em concepções estéticas racistas. Nobuyoshi Chinen, autor da pesquisa “O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros”, destaca que essa representação não era comum até a segunda metade do século XIX.
“Antes dos quadrinhos já existiam as charges e o humor gráfico. Uma coisa curiosa é que estudando o material publicado na segunda metade do século XIX, constatei que não havia um padrão nessa representação e cada artista o fazia dentro de seu estilo”, afirma.
O ponto de mudança para se estabelecer uma retratação negra nas artes gráficas vem a partir da influência da cultura segregada e racista dos EUA durante os séculos XIX e XX.
“Foi por influência das charges americanas, nas quais a imagem dos negros eram baseadas nos minstrels, os cantores e atores brancos com o rosto pintado de preto (blackface), que o modo de desenhar personagens negros se disseminou. Lábios extremamente grossos e olhos esbugalhados são as principais marcas desse tipo de representação”, reflete Nobuyoshi.
Influenciado por essa dinâmica, em 1907, Giby aparece como primeiro negro com mais destaque nos quadrinhos brasileiros. O personagem de J. Carlos integrava a história de Juquinha na revista O Tico-Tico.
Magreza, braços longos, pele preta, lábios grossos, orelhas destacadas e olhos saltados compunham a imagem de Giby enquanto personagem. Seu papel restringia-se a ser cúmplice de seu patrão Juquinha durante suas travessuras.
A mesma revista O Tico-Tico trazia em suas páginas mais dois personagens negros que, mais uma vez, ficaram restritos a papéis de coadjuvação e estereotipagem. O primeiro deles foi o menino Benjamin, que estreou na revista em 1915 em “As Aventuras de Chiquinho”.
A história criada por Luís Loureiro e desenhada por diversos outros artistas ao longo do tempo viveu por mais de 50 anos nas páginas da revista. Chiquinho e Benjamin tornaram-se uma das duplas mais populares da publicação em histórias que se passavam no quintal da casa de Chiquinho.
Benjamin, assim como Giby, também era criado de uma família branca, caracterizado como um ignorante ou alguém sem modos. Suas participações se restringiam a causar cenas de humor na história.
Em 1924, J. Carlos criou a história de Lamparina, uma menina negra, de lábios grossos e semelhante a um macaco. Suas roupas remetiam às vestes de tribos africanas, muito estereotipadas na época.
A história explorava sua infantilidade e baixa capacidade intelectual para causar humor em quem lia. Outros personagens negros coadjuvantes aparecem, também explorados pelo viés do humor e do riso.
O pesquisador Nobuyoshi Chinen considera que a obra é um dos casos mais marcantes nas HQs brasileiras: “em termos negativos, Lamparina é a mais grave porque é representada quase como um animal tanto no aspecto visual quanto na falta de capacidade intelectual”.
Sob o égide do humor, negros e negras, ainda que em posições de protagonismo, ficavam restritos à provocação de riso. Os recursos mais utilizados animalizaram suas imagem ou questionaram suas capacidades intelectuais, sem maior profundidade em relação às suas humanidades.
Outro personagem negro a ficar conhecido do público, também pela revista O Tico-Tico, foi Azeitona. O personagem criado por Luíz Sá era um dos protagonista de uma história ao lado de Reco-Reco e Bolão, ambos brancos.
Maria Fumaça também tornou-se uma personagem conhecida do público. Sua história era baseada no humor e publicada na revista Cirandinha, no início dos anos 50. Maria também se encaixava nos papéis reservados a negros e negras na época: era uma empregada doméstica, retratada como ingênua e ignorante.
Do Pererê a Luana
No final da década de 50, surge como cartum nas páginas da revista Cruzeiro, o Pererê de Ziraldo. Baseado na lenda do Saci Pererê, o personagem tornou-se uma das mais importantes figuras dos quadrinhos brasileiros.
Foi o primeiro personagem negro a ter sua própria revista, a partir de 1960, tornando-se sucesso de vendas. Ainda que seja uma figura bem-sucedida nos quadrinhos nacionais, também se constituiu como uma figura paradoxal, por remeter a uma ideia folclórica.
Nobuyoshi, em sua tese de doutorado “O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros”, reflete sobre o caso: “o negro mais famoso dos quadrinhos é alguém que não existe, que não serve de modelo ideal ao leitor negro”.
Na mesma década de 1960, surge Jeremias, personagem em A Turma da Mônica. Por anos a fio, ele foi o único personagem negro a figurar na criação de Maurício de Souza. Até os anos 70, sua coloração nas revistas era preta. Em seguida, sua coloração foi mudada para o marrom e persiste até a atualidade.
Outro personagem negro de Maurício de Souza foi Pelezinho, baseado em Pelé, tricampeão mundial de futebol pela Seleção Brasileira. Inicialmente criado para tiras de jornal, em 1976, o sucesso de Pelezinho rendeu uma revista própria, sem ligação com os personagens da Turma da Mônica.
Exatamente 30 anos depois, outro jogador do futebol brasileiro volta a figurar como personagem de Maurício. Baseado na ideia de Pelezinho, a Turma do Ronaldinho teve alcance notável sendo veiculada na França, Itália, Holanda, entre outros países europeus e em jornais como o britânico The Daily Mirror.
“De maneira geral, [no Brasil] havia poucos personagens negros. Mulheres, então, eram ainda menos presentes. Durante décadas eram representadas de forma estereotipada e em funções subalternas. Só mais recentemente passaram a ser protagonistas, como é o caso da garotinha Luana”, afirma o pesquisador Nobuyoshi Chinen.
Em uma história marcada por exemplos negativos ligados às mulheres negras nos quadrinhos como Lamparina e Maria Fumaça, a garota Luana se constitui como figura importante. A super-heroína de oito anos é voltada para o público infantil e defende o meio-ambiente com o auxílio de um berimbau mágico.
Sua história possui arte de Arthur Garcia e o roteiro conta com nomes como Oswaldo Faustino e Júlio Emílio Braz. As revistas de Luana ainda abordam temas como amor, amizade e contos relacionados ao continente e às culturas africanas.
A representatividade social brasileira também é levada a sério ao contar com personagens das diversas raças e etnias que compõem o Brasil.