“Ô, abre alas pros teus heróis de barracões”.
No carnaval de 2019, a Estação Primeira de Mangueira apresentou na avenida o samba enredo “História pra ninar gente grande”. De autoria de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mamá, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, a composição colocou em questão sentidos legitimados como evidentes pela história oficial do Brasil, produzindo uma narrativa que contrapõem os notórios nomes enunciados como protagonistas de uma história oficializada, exaltando assim personagens com pouco ou nenhum lugar na história do país, tratando como heróis um séquito de pessoas que tiveram seus protagonismos silenciados pelas estruturas racistas que regem o Brasil.
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“Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta” é um dos versos do samba que tem como proposta questionar os acontecimentos históricos que nos foram ensinados e permanecem arraigados no nosso imaginário coletivo e que, de certa forma, nos definem enquanto nação. “Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões”, segue evocando os brasileiros que precisam ser celebrados por suas imensas contribuições para a formação de uma identidade nacional, questionando o porquê da história oficial escolher quem deve e quem não deve ser lembrado. Um olhar para quem deveria estar nos livros e porque, os que estão, foram escolhidos para estar.
E é com essa premissa que a mostra “Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro” se estabelece como uma possibilidade de reparação histórica, mesmo que ela aconteça de forma tardia, entre a celebração e o lamento. Traçando um paralelo entre o célebre desfile da Mangueira e a exposição, Dos Brasis cria uma tentativa de dar conta de um atraso secular, apontando como a arte produzida por pessoas negras foi sumariamente relegada dos registros oficiais da História da Arte brasileira e afirma a importância da criação de registros como forma de fabular de memórias.
Reunindo 240 artistas negros de todos estados do país, a mostra tem curadoria de Igor Simões, em parceria com Lorraine Mendes e Marcelo Campos. Em cartaz no Sesc Belenzinho até 28 de janeiro de 2024, Dos Brasis é fruto de uma pesquisa de quase 5 anos, iniciada por Igor Simões e Hélio Menezes em 2018, a partir de um convite Sesc para um projeto de formação, que culminou em questionamentos e tensionamentos sobre as ausências que precisavam ser pensadas dentro dos acervos institucionais. A partir disso, a dupla iniciou uma série de viagens por todas as regiões do Brasil, das capitais às cidades do interior, passando por diversas comunidades quilombolas. A pesquisa se centra na investigação de uma pluralidade e diversidade que permeia a produção negra brasileira, confrontando a ideia estereotipada de que uma arte negra afro diaspórica parta de um único lugar, seja ele conceitual ou pictórico.
Outro dado importante que a mostra nos oferece é traçar diálogos poéticos entre artistas desde o século XVIII até o contemporâneo, desmistificando também a ideia de que a produção negra está atrelada apenas a um movimento recente de maior inserção de artistas e curadores negros no campo da arte, tentando, inclusive, ressignificar a percepção que se criou recentemente, de uma arte negra baseada na pintura e no retrato, atuando como um lugar de ampliação de repertório do público, apresentando uma série de obras que trazem desafios materiais e expositivos, e que provavelmente não circulariam tão facilmente em um ambiente mercadológico. Importante também ressaltar que na mostra estão pareados nomes de artistas já estabelecidos com nomes que emergem, juntamente com artistas que estão tendo sua primeira oportunidade de serem exibidos em uma grande mostra, apontando também uma lacuna de um campo que se baseia apenas em um eixo de pesquisa sudestino.
Talvez por isso, a expografia não se centre em uma cronologia, fugindo de um olhar panorâmico sobre tais produções. Pelo contrário, embora Dos Brasis se apoie no número expressivos reunidos pela primeira vez em um evento de arte desse porte, a exposição busca não reiterar as lógicas coloniais implicadas nas catalogações e mapeamentos que alimentaram, até então, uma lógica excludente no sistema da arte. Aqui, interessa mais pensar esses números como abrangência, e não como amostragem.
Para tal discussão, a mostra se divide em 7 núcleos a fim de traçar paralelos entre as abordagens artísticas, criando uma mediação educativa e formativa com seu público. “Branco Tema”, “Negro Vida”, “Amefricanas”, “Organização Já”, “Baobá”, “Romper” e “Legítima Defesa” são os núcleos que norteiam o conceito curatorial de Dos Brasis, e que têm como ponto de partida o pensamento de sociólogos, historiadores e ativistas pelos direitos humanos que contribuíram – e ainda contribuem – para a discussão racial no país, dentre eles: Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez e Luiz Gama.
Visando ampliar seu legado para além do semestre que a mostra fica em cartaz no Sesc Belenzinho, nos próximos 10 anos Dos Brasis fará uma itinerância pelas unidades do Sesc de todo Brasil, reverberando ainda mais os conceitos intrínsecos à mostra, como de ampliação e formação de público, deslocamento de eixos, entre outras estruturas de poder que a mostra questiona.
Assim, Dos Brasis se firma como uma exposição que busca criar espaços de liberdade para a compreensão de uma arte negra brasileira que tem buscado cada vez mais fugir de se encaixar em terminologias brancas ocidentais que norteiam a história da arte, produzindo uma nova qualidade de pensamento crítico sobre como é necessário repensar as várias instâncias categorizantes que oprimem àquilo que não se insere em seus termos e padrões. Dessa forma, podemos compreender cada vez melhor que a busca por essa liberdade é sobre poder pertencer e existir no mundo a partir de suas próprias regras, fabulações e desejos, escancarando outros modos, não-lineares e fora do tempo, de contar, dizer e recompor a nossa história.