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O rock brasileiro também é negro

Gênero quase nunca é associado a população negra e durante muito tempo foi visto como algo da classe média branca
Trio de músicos de Uberaba, Minas Gerais, compõe a banda Black Pantera

Foto: Sete77sete

6 de outubro de 2023

Por: Gil Luiz Mendes

É sabido que o rock, da forma como é conhecido hoje, foi criado nos Estados Unidos nos início dos anos 1950 oriundo da comunidade negra e tendo como expoentes desse período artistas como Little Richard e Chucky Berry. Porém, no Brasil quando se faz algum tipo de referência a música negra do país, logo se lembra do samba, do rap e até mesmo do soul, mas nunca é citado o rock.

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“É mais um sequestro sofrido pelo povo negro”, avalia Chaene da Gama, baixista do Black Pantera, banda de crossover trash que vem ganhando destaque no cenário pelo som pesado e o discurso antirracista de suas músicas e falas feitas pelos integrantes durantes os shows. O grupo formado em Uberaba, Minas Gerais, tem participado dos principais festivais do país como Lollapalooza e Rock in Rio, e se prepara para mais uma turnê pela Europa.

Diferente do que foi difundido por muito tempo pelos meios de comunicação de massa e o que ficou no subconsciente coletivo, existem sim negros fazendo rock no país desde que o estilo chegou por aqui. Além de um público negro consumidor dos mais diferentes sub-gêneros do ritmo, sempre houve pessoas pretas produzindo músicas, fazendo shows, mas não tendo a mesma visibilidade do que artistas brancos.

Da Jovem Guarda ao Manguebeat, passando pelo movimento punk paulistano e o BR Rock dos anos 1980, os negros sempre estiveram presentes em todos esses movimentos, mas nunca com o mesmo protagonismo dado aos brancos. E sem estes artista pretos, a história do rock no país não seria a mesma.

Os primeiros

A massificação da cultura norte-americana no período pós-guerra fez com que o rock chegasse ao Brasil quase ao mesmo tempo que o ritmo era difundido nos EUA. A primeira gravação do gênero no país foi uma versão de “Rock Around the Clock” de Bill Halley, que por aqui ganhou o nome de “Ronda das Horas” na voz da cantora Nora Ney, em 1955. Uma música do estilo feita e gravada por um brasileiro é datada de 1957 com “Rock and Roll em Copacabana”, composta por Miguel Gustavo e cantada por Cauby Peixoto.

Não demorou muito para que no início da década de 1960 o rock se tornasse o gênero mais popular do Brasil puxado pela Jovem Guarda, que tinha como principais expoentes Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos. Sem o mesmo destaque dado aos artistas brancos, havia grupos de pessoas negras que fizeram parte desse momento da música brasileira. Um exemplo é o Golden Boys, quarteto vocal formado pelos irmãos Roberto, Ronaldo e Renato Correia, junto com o amigo Waldir da Anunciação. Além de trabalhos próprios, há uma série de backing vocals feitos pelo grupo para diversos artistas da época.

O jornalista Maurício Gaia, editor do blog Combate Rock, cita que houve um artista na época que conseguiu transitar por diferentes estilos, mesmo sem pertencer a nenhum especificamente. “O Jorge Ben Jor esteve na Jovem Guarda, assim como esteve na Bossa Nova e também na Tropicália, mas não está associado diretamente a nenhum desses movimentos”, conta. Pode-se creditar a Ben Jor o surgimento do Samba-Rock, pois foi um dos primeiros a unir o gênero essencialmente brasileiro ao ritmo norte-americano associado à juventude da época.

Jorge Ben Jor. Foto: Reprodução/Redes sociais

“Tivemos muitos negros nessa fase inicial do rock no Brasil. Posso citar o Baby Santiago, que foi um dos primeiros caras pretos a cantar rock no Brasil ali pelos anos 1950 de um forma muito irreverente. Ele também é pai do William Zimbabwe, da Chic Show, responsável pela disseminação da Black Music em São Paulo”, relembra Clemente Tadeu, fundador e líder dos Inocentes, uma das principais bandas do punk rock nacional.

Preto e da periferia

A imagem criada para o rock feito no Brasil foi a de uma juventude branca de classe média que reivindicava alguma liberdade de costumes ou apenas queria curtir a vida sem grandes responsabilidades. Porém isso não correspondia à realidade, principalmente a partir de meados dos anos 1980, quando surgiram as primeiras bandas de punk rock no país.

Criado da Zona Norte paulista, Clemente teve seu contato com o rock ainda na adolescência através da TV e do rádio. Ele lembra que a pauta racial dentro do estilo musical não era uma questão para ele naquela época. “Quando Inocentes surgiu, assim como outras bandas, eram grupos miscigenados da periferia. Tinha pretos, filhos de nordestinos, descendentes de italianos, assim como toda quebrada daquela época”, recorda.

Em outra Zona Norte, mas bem longe de São Paulo, outros jovens negros de periferia eram influenciados pelo som feito pelos Inocentes. “Eu era um cara que curtia funk, não era muito ligado ao rock. Até que um dia vi, numa revista, uma matéria grande com o Clemente falando sobre o movimento punk em São Paulo. Pirei nas fotos e no que ele falava, era um cara preto e da periferia como eu. Foi a partir dali que eu decidi ter uma banda”, diz Cannibal, baixista e vocalista da Devotos, banda do Alto José do Pinho, periferia do Recife, uma das precursoras do movimento Manguebeat em Pernambuco.

O Inocentes foi uma das poucas bandas punks a assinar contrato com uma grande gravadora ainda nos anos 1980 e era única com o vocalista negro dentre tantas bandas que fizeram o rock ser o ritmo mais tocado na mídia durante toda a década. “Se a gente tentar lembrar quem eram os negros nessa época que o rock foi hegemônico na grande mídia do país, só vai ter o Clemente, no Inocentes, e o Renato Rocha, na Legião Urbana”, aponta Maurício Gaia, citando o baixista que gravou os três discos primeiros discos da banda de Brasília e depois foi tirado do grupo.

Clemente Tadeu, fundador e líder da banda de punk rock Inocentes. Foto: Caru Leão

Caixinhas do mercado

Os brancos se apropriam de gêneros musicais criados pro negros desde os tempos em que Elvis Presley acelerava os blues que ouvia na infância e foi denominado pela mídia como o “rei do rock”. A lógica de mercado para vender discos e artistas é um dos principais motivos apontados para o apagamento das pessoas negras que fazem rock no Brasil. “Os brancos sempre querem nos colocar numa caixinha. Eles não querem abrir espaço em um lugar que você pode ser melhor do que eles”, pontua Clemente.

Na cena underground é mais comum ver pessoas negras em shows de rock, seja no público ou em cima do palco, mas no chamado mainstreaming não é comum ver pessoas pretas entre os músicos de rock. Isso faz com que a percepção do senso comum seja a de que negros não fazem parte desse universo.

“É muito comum entrar num táxi ou um carro de aplicativo no Brasil com a minha guitarra e o motorista ao me ver com os dreads me perguntar se eu toco reggae. Fora do país, nesta mesma situação, achavam que eu era um músico de blues. Nada contra esses ritmos, mas é muito difícil essas pessoas me verem como alguém que toca rock”, relata Charles Gama, guitarrista e vocalista do Black Pantera.

Nos últimos anos, com a ascensão da extrema-direita no país,o roqueiro brasileiro ficou associado à imagem de homens brancos de meia idade reacionários. Uma imagem massificada que também não corresponde à realidade por completo. “Tem muita gente preta que não conhece o som que nós fazemos, porque o estereótipo do roqueiro é o branco do olho claro e com cabelos longos e lisos. Isso se dá pelo sequestro e apagamento do negro dentro desse tipo de música”, destaca Cannibal, da Devotos.

Banda Devotos. Foto: Tiago Calazans

Rap and roll

Música feita por garotos pobres e pretos, vindos da periferia, com letras de forte cunho político-social que retrata o cotidiano de quem vive nas áreas mais precarizadas das grandes cidades. Isso pode definir muito bem o Rap no Brasil a partir do início da década de 1990 ou o punk rock vindo pouco tempo antes. Porém, durante muito tempo ficou colocado que o rap sempre foi a música que mais representava a juventude negra.

Clemente é testemunha do surgimento dos dois movimentos em São Paulo e enxerga várias semelhanças e intersecções nas duas manifestações culturais. “Tanto o punk rock quanto o rap vieram do mesmo lugar em São Paulo, que foi das periferias. Eles também começaram a se organizar no mesmo espaço que foi a estação São Bento do Metrô. Conheci pessoas que eram da soul music nos anos 1970, depois viraram punks e daí partiram para o rap”, comenta o autor da música “Pânico em SP”, que posteriormente ouviria uma canção de nome e temática semelhante: “Pânico na Zona Sul”, dos Racionais MCs.

“O hip-hop toma corpo no Brasil justamente quando uma massa de jovens negros não se vê representada pelo que havia na mídia, que era justamente esse rock feito por brancos da classe média”, analisa Maurício Gaia.

Um dos motivos do rap ser mais associado à juventude negra é que a temática racial sempre foi um dos principais argumentos das letras, algo que não estava presente no rock apresentado para a grande massa. “A gente sempre gostou de rock e era analfabeto, em certa forma, na questão racial. A gente só foi se racializar mais depois que criamos o Black Pantera”, complementa Chaene da Gama, citando que bandas como Planet Hemp e O Rappa foram importantes para inserir o universo do rap dentro do rock no Brasil.

O futuro do rock é preto

Com advento da internet e a maior troca de informações entre os artistas e o público, é possível ter acesso a toda produção de rock feito por pessoas negras. De baladas românticas ao metal extremo, não faltam exemplos de bandas com discursos cada vez mais racializados.

Confira algumas bandas negras de rock:

Black Pantera

Inocentes

Devotos

Punho de Mahin

Idharma

Boogaarins

Pure Hell

Arkan’n

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