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O rock e a resistência

Na década de 60, a despeito da crescente apropriação cultural do gênero, a banda Black Merda reafirmava a urgência de resistir diante da tensão racial

1 de outubro de 2015

Texto: Vinicius Martins

A década de 1960 trouxe consigo uma explosão de criatividade para as cenas musicais em diversas partes do globo. Nos EUA e na Inglaterra, a psicodelia dava o rumo para os jovens em meio a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, conflitos raciais americanos, a televisão e os grandes avanços tecnológicos. A criatividade, o posicionamento político firme, a experimentação artística e lisérgica davam o tom na música.  

Para a população negra dos Estados Unidos, a tensão racial chegava ao limite. A negação de cidadania plena aos afroamericanos era reafirmada pelas legislações estaduais do país. A segregação e a atuação da Ku Klux Klan sustentavam atentados, assassinatos e a violência policial. Líderes como Angela Davis, Malcolm X (assassinado em 21 de fevereiro de 1965), Martin Luther King (assassinado em 4 de abril de 1968) e o partido dos Panteras Negras surgiam como resposta e catalisadores da reação negra contra o segregacionismo e o racismo norte-americano.

Nesse contexto, Anthony Hawkins (guitarra/vocal), Veesee L Veasey (baixo/vocal), Charles Hawkins (guitarra/vocal), Tyrone Hite (baterista) formaram em 1968 na cidade de Detroit o Black Merda (pronuncia Black Mur-dah, de Murder) ou Assassinato Negro, em português. O grupo se autoproclamava a primeira banda de rock totalmente negra dos Estados Unidos. Os conflitos raciais e a luta pelos direitos civis tiveram profunda influência em suas músicas e letras.

Na época os relatos de assassinatos de afroamericanos praticados por policiais e pela Ku Klux Klan eram constantes. Em julho de 1967 uma intervenção da policia de Detroit em uma comunidade afroamericana da cidade deu origem a revolta negra que se espalhou pelo país. Em meio aos conflitos, a banda queria um nome e uma sonoridade que representasse a tensão de sua época.

Em 1970, o grupo lançou seu primeiro álbum de estúdio homônimo. Em 11 faixas que misturam funk, jazz, blues, rock e psicodelia e posicionamento efetivo contra o racismo americano, o Black Merda concebeu um dos álbuns mais completos de seu tempo. Algo que eles chamavam de Black Rock, profundamente influenciado pelo som de Jimi Hendrix e Sly and the Family Stone.

O álbum, lançado pela Chess Records (responsável por cuidar de nomes da música negra americana como Muddy Waters, Etta James e Chuck Berry) se destaca pelas guitarras potentes, os conjuntos vocais e o groove psicodélico latente dos anos 70.

A música de abertura Prophet anunciava o grito por liberdade em um período crucial para questionar velhas crenças, sobretudo para a comunidade negra americana. “If you want to be saved we’d better hear you say, set me free” (se você quer ser salvo, é melhor ouvirmos você dizer, ‘me liberte’). Em sequência, a balada Think Of Me acalma os ânimos. Composta apenas de vozes e violão se destaca pela ótima harmonia vocal e a letra de amor inocente.

O ponto alto do álbum aparece com a sequência de Cynth-Ruth, Over and Over, Ashmed e Reality. A mistura de funk, jazz e rock psicodélico não deixa dúvidas quanto ao poder do Black Merda. Cynth-Ruth emplaca uma bateria pesada e riffs de guitarra que remetem à acidez de Jimi Hendrix e ao estilo urbano de blues de Muddy Waters.

Na sequência a instrumental Over and Over funde jazz e funk de maneira impecável, com solos de guitarra reverberados e espaciais. Em Ashmed a banda retoma a pegada de Cynth-Ruth, dessa vez embasada pelo tom político na luta contra a pobreza e o racismo americano.

And people oh people / You think you’re living in harmony
But you stay up in your big house / and turn your back on poverty

You ought to be ashamed / ashamed of yourself”

“E o povo, ah, o povo/ você pensa que eles estão vivendo em harmonia
Mas você permanece em sua casa grande / e vira suas costas para a pobreza

Você deveria se envergonhar / se envergonhar de si mesmo

A representação de um período difícil continua em Reality. A canção se mostra como um lamento, sem muitas esperanças diante do contexto violento e das estruturas perversas. Eles mencionam os constantes ataques às pessoas que ajudavam a causa racial nos EUA.

You think your country is a great democracy
Well they just killed your priest for helping folks like me”

“Você pensa que seu país é uma grande democracia
Bem, eles apenas mataram o seu padre por ajudar caras como eu

O bloco final do álbum se inicia com Wind Song, um instrumental mais suave e melancólico. Good Luck em sequência se coloca quase como uma oração diante do tempo perverso, para que nada ruim aconteça. Tudo isso acompanhado de guitarras com riffs rasgados, vocais em coro, o groove intenso do baixo e viradas de bateria que lembram a Hendrix Experience.

That’s The Way It Goes e I Don’t Wanna Die se completam. Musicalmente carregam melodias semelhantes. E encerram com a mensagem tranquila e ao mesmo tempo alarmante: “We don’t wanna die” (nós não queremos morrer). A curta conclusão em fade-in e fade-out se mostra na faixa final Set Me Free, apenas vozes e violão questionam de maneira atual: “won’t somebody set me free?” (alguém irá me libertar?).

Apesar de lançado nos anos 70, a discussão feita pelo Black Merda em seu primeiro álbum permanece. O racismo americano persiste, em outros moldes, mas ainda carrega o peso da morte. Em 2015, eclodiram nos EUA dezenas de protestos contra assassinatos de jovens negros pelas polícias americanas. O mais famoso deles na cidade de Baltimore, em Abril.

Para ouvir:
Banda / Black Merda
Álbum / Black Merda
Ano / 1970

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