Referência nos estudos sobre raça e gênero no Brasil, a autora, política, professora, filósofa e antropóloga brasileira, Lélia Gonzalez, neste 1º de fevereiro faria 87 anos. Conhecida por atuar em diversos campos de estudo e pesquisa, a intelectual se firmou como um dos ícones da luta antirracista no país, além de contribuir para o entendimento interseccional das causas.
Mineira, Lélia nasceu na capital, Belo Horizonte, mas mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se graduou em história e geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e deu continuidade à sua vida acadêmica, com mestrado em comunicação e doutorado em antropologia política – algo que já revelava seu interesse dem torno da pluralidade da população negra.
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Sua contribuição no campo da educação é extensa, tendo como marca de carreira a iniciação do primeiro curso de Cultura Negra da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, também na capital fluminense, onde lecionou. Lélia ainda foi responsável por ajudar no estudo ‘O que é ser negro no país’, atuando no ensino médio e outras universidades.
Um destaque de seus estudos, foi o pensamento em torno do feminismo afro-latino-americano como ponto central para o entendimento do que é ser mulher negra no Brasil. Lélia trouxe conceitos que, até os dias atuais, são necessários para se pensar na pauta racial de forma plural, atendendo às especificidades de cada grupo social, pelo viés de gênero também.
Para a doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Irys Oliveira, a importância de Lélia Gonzalez para o pensamento social brasileiro, assim como para a luta negra como um todo, é inegável. Para explicar isso, ela usa como exemplo um dos textos mais famosos da autora, intitulado ‘Racismo e sexismo na cultura Brasileira’, publicado em formato de artigo no ano de 1984.
“Nele, Lélia elabora uma linha de pensamento para analisar aquilo que chamou de ‘neurose cultural brasileira’, o que, segundo ela, é o pilar central da constituição do racismo no Brasil, que consiste na dupla negação, em termos psicanalíticos, do patriarcado e do racismo enquanto co-fundadores da sociedade brasileira. Esta neurose está na estrutura social e inconsciente coletivo brasileiros, funcionando estrategicamente como um elemento de negação do racismo, ao mesmo tempo em que perpetuador do mesmo”, explica.
“Para validar sua tese, a autora adentra no exemplo do papel da mulher negra na constituição da sociedade brasileira, através das noções de ‘mulata’, ‘doméstica’ e ‘mãe preta’. Para Lélia, esta tríade, que marca a experiência ao longo da vida das mulheres negras brasileiras, é responsável por perpetuar o racismo à brasileira. Aqui podemos enxergar nitidamente a interseccionalidade no pensamento de Lélia”, complementa.
Irys ainda afirma que a intelectual foi uma das responsáveis por aquilo que Sueli Carneiro chamou de “enegrecer o feminismo”, assim como trazer para dentro do movimento negro a necessidade de se discutir a situação das mulheres atreladas às questões raciais.
Ponto de destaque na sua trajetória de estudos, é que Lélia ainda foi responsável pela inserção de termos como “amefricanidade” e “pretoguês” no dialeto da academia, sendo este primeiro a concisão do que se refere à experiência comum da população negra e indígena em relação ao processo de domínio e colonização. Já para a linguística, o segundo termo refere-se ao processo de “africanização” do português falado, que possibilita a validação dos desdobramentos de uma linguagem que não é imutável e valoriza o cotidiano e quem o faz.
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“Através de sua habilidade em transitar entre a linguagem científico-acadêmica e aquela de uso cotidiano, Lélia lançava sua crítica à ‘neurose cultural brasileira’, que procura negar justamente aquilo que a compõe: a cultura negro-africana e indígena. Através da defesa desses dois elementos centrais para a formação da nossa sociedade, ela lança-nos a necessidade de construir um diálogo, relação e unidade entre as experiências negro-africanas e indígenas, surgindo assim o termo ‘amefricanidade’, outro conceito completamente necessário e atual para a construção do fazer científico e da luta política no Brasil”, aponta Irys.
Ainda segundo a estudiosa, o legado deixado por Lélia Gonzalez, seu exemplo de militância e fazer acadêmico-científico, estão na lista de contribuições atemporais do arsenal negro, fazendo dela uma mulher pioneira no que diz respeito aos estudos de gênero e raça no Brasil.
“Além de visionária, tendo em vista que suas contribuições ecoam e se perpetuam ao longo do tempo, favorecendo e funcionando como mola propulsora da atuação e produção cientítica de mulheres negras nos dias atuais, tendo sempre em mente a libertação e empoderamento do povo negro no Brasil e no mundo”, finaliza.
Legado
Nacionalmente, Gonzalez ajudou a fundar instituições de referência em raça, como a construção do Movimento Negro Unificado (MNU) – grupo de ativismo político, cultural e social de relevante trajetória no âmbito do movimento negro no país – e do N’Zinga – Coletivo de Mulheres Negras -, além de participar da fundação do Instituito de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e da escola de tambores afro-brasileiro da cidade de Salvador, o Olodum.
Além dos estudos, a intelectual se mostrava ativista das causas, trazendo seus trabalhos junto à academia para o cenário político nacional. Além de participar da formação do Partido dos Trabalhadores (PT), Lélia também fez parte do Partido Democrático Trabalhista (PDT), protagonizou debates nas discussões sobre a Constituição de 1988, que rege todo o ordenamento jurídico do país até os dias atuais e fez parte do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Reconhecimento
Ainda em 1997, Lélia Gonzales fez parte do enredo “Pérolas Negras do Saber” do primeiro bloco afro do país, o Ilê Aiyê. No ano seguinte, também foi citada pelo bloco no enredo intitulado “Candaces”. Já em 2010, com o objetivo de estimular a inserção de mais políticas públicas voltadas para mulheres na Bahia, o governo instituiu no estado o Prêmio Lélia Gonzales.
Além de ser referência de estudo, política e educação, até hoje protagoniza nomes de escolas e coletivos acadêmicos de vários municípios do país, como em Aracajú, São Paulo e no Rio de Janeiro.