A questão racial é um elemento importante dentro das letras de rap e da identidade que produz a cultura hip hop
Texto / Lucas Veloso | Edição / Pedro Borges | Imagem / Luan Batista
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“É o hip hop / Minha religião, mantém os meus pés no chão / É o hip hop / Salvando vidas, a rima é minha oração”, canta o grupo Filosofia de Rua junto com Sharylaine na música ‘É o Hip Hop’’.
Nerie Bento, assessora de imprensa e diretora da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop, confirma o que diz a música. Ela acredita que o rap foi importante no sentido de empoderar as pessoas negras, já que o movimento nasceu de uma cultura negra em prol de uma luta social.
“O rap perpassa pelos anos sendo uma ferramenta de transformação social. Quando a gente pensa nisso, precisamos considerar a nossa base social, onde estão os pretos e periféricos”, pontua.
Professor do Departamento de Gestão Pública da FGV EAESP, Márcio Macedo relembra que, originário das culturas negras caribenhas e afro-americanas, o hip-hop tem um apelo forte para jovens negros. “Nos anos 1980 e 1990 o hip-hop, e mais especificamente o rap, politizou a sua estética o que aumento o seu apelo em torno de ideias de ‘consciência racial’”, destaca.
Segundo ele, esse traço permanece no hip-hop, e no rap especificamente, até hoje. É justamente isso que torna o rap um elemento de circulação de ideias políticas entre jovens negros ao redor do mundo.
O hip hop
O rap (“MCing” mais o “DJing”) é um dos elementos constitutivos do que se entende como “hip hop”: movimento cultural e artístico surgido nos anos 1970 no meio da juventude afro-americana e hispânica de Nova Iorque, EUA. Os outros elementos do hip-hop são o “breaking” ou “b-boying” (dança) e o graffiti. O hip hop é assim composto por uma série de práticas dentro de uma cultura juvenil.
Foi em agosto de 1973, no bairro do Bronx, em Nova York, que o DJ jamaicano Kool Herc organizou uma festa que mudou os rumos da música. Para inovar seus sets, decidiu tocar apenas o instrumental e breaks das músicas de funk e soul da época, como James Brown e James Clinton. Depois, os MCs começaram a acrescentar rimas às batidas. Desde então, a cultura hip-hop se transformou em um movimento da música, da dança, da arte e da moda.
Uma das músicas que ajudou o hip-hop ser exportado para os outros países foi a música “Rapper’s Delight”, do grupo Sugarhill Gang, lançada em 1979.
Na cidade de São Paulo o hip-hop surgiu na década de 80, quando os jovens ficaram sabendo do que estava acontecendo em Nova York. Os grupos das periferias se reuniam na Galeria 24 de Maio e na estação São Bento do metrô para escutar as música vindas do Bronxs, acompanhados de passos de dança.
Os primeiros frequentadores do local foram os dançarinos de break. Um dos precursores do estilo foi Nelson Triunfo, conhecido como um dos principais dançarinos do país. O primeiro álbum exclusivo de rap no Brasil foi a coletânea “Hip-Hop Cultura de Rua”, lançada em 1988. A obra tinha música de Thaíde e DJ Hum, MC Jack e Código 13.
Em 89 foi lançada a coletânea “Consciência Black, Vol. I”, que projetou um dos principais grupos da história do rap brasileiro, os Racionais MC’s. Formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo tinha letras sobre a desigualdade na periferia, racismo e as injustiças sociais.
De acordo com o professor Macedo, é difícil afirmar quais são os papéis de qualquer forma de arte, já que um dos pressupostos da produção artística é a liberdade de experimentação, mas por outro lado, a arte muitas vezes acaba se tornando uma espécie de fórum de discussão das questões sociais e políticas, trazidas pela identidade dos artistas.
“O hip-hop tendo origens negras acaba, de uma forma ou outra, sendo uma forma de arte que dialoga com questões que dizem respeito às populações negras ao redor do mundo já que boa parte dos seus principais artistas são negros”, pontua. “Mas é necessário sempre lembrar que outros grupos não negros necessariamente também usam o hip-hop com um fórum de discussão de temas referentes a eles”.
Para Nerie, o rap, enquanto gênero musical, permite dialogar com a periferia, de forma simples e objetiva. Ela cita que o grupo Racionais é um exemplo de como as músicas difundiram a ideia da identidade negra ou Sharylaine, a primeira negra MC do rap, que também pautava a questão racial nas suas letras.
‘Ganha pão’
O professor Macedo defende que antes dele ser visualizado como uma possibilidade de ‘ganha pão’ ou forma de se projetar artisticamente por alguns jovens, o hip hop é um conjunto de práticas que lidam com aquilo que ele chama de “politics of fun”, em tradução livre, significa ‘políticas da diversão’.
“Há algo de prazeroso e divertido nessas práticas que atrai jovens dos mais diversos grupos sociais. Foi no desenvolvimento da cultura hip-hop, principalmente, a partir dos anos 1980, que alguns artistas começaram a visualizar a possibilidade de viverem do hip-hop, serem artistas de fato reconhecidos pela arte que praticavam/produziam”, contextualiza.
Ele lembra que hoje o hip-hop/rap no mundo é um mercado multibilionário de vários nomes, como Jay-Z e Cardi B nos EUA e Racionais MC’s, Emicida e Criolo no Brasil.
Nerie Bento ressalta que ser um MC de rap, por exemplo, vai além de produzir as músicas, mas é quem ministra oficinas em centros de recuperação para jovens infratores, quem dialoga com as pessoas na favela e promove festivais de graça, por exemplo.
Ela enxerga que hoje há uma crescimento de rappers que usam o elemento para ganhar dinheiro e se projetarem artisticamente. “Isso é ótimo”, define.