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“Privar acesso ao capital cultural é não permitir a reinvenção democrática do estado e do mercado”, diz professor

20 de outubro de 2018

Em entrevista ao Alma Preta, Juarez Xavier, coordenador do Nupe (Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão) da UNESP (Universidade do Estado de São Paulo), fala sobre retrocessos no campo educacional, em especial no Ensino Superior

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Entrevista / Pedro Borges e Thalyta Martins
Edição / Thalyta Martins
Imagem / Marcelo Casal Jr./ Agência Brasil

Juarez Xavier, coordenador do Nupe (Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão) da UNESP (Universidade do Estado de São Paulo) deu entrevista ao Alma Preta nesta semana para uma reportagem sobre como seria a educação em um possível mandato do candidato à presidência da República Jair Messias Bolsonaro (PSL). Ameaça às cotas se concretizariam, o discurso meritocrático ganharia ainda mais força, investimentos em pesquisas desacelerados, entre outros retrocessos. Com contexto, são abordados pelo professor. Acompanhe na íntegra:

Alma Preta: Como chegamos ao modelo de ensino que temos hoje?

Juarez Xavier: As cotas foram adotadas no mundo inteiro com propostas de ascensão de grupos políticos e raciais marginalizados. Foi assim na Europa, nos Estados Unidos, foi assim na Austrália, nos principais estados multirraciais e não foi diferente no Brasil. As cotas aqui são cotas para maioria racial, diferente de outros países que adotaram política de cotas, como por exemplo os Estados Unidos, era pra minoria. Negro, classificado como preto e pardo, é maioria na sociedade brasileira.

O Ensino Superior no Brasil nasce como um mecanismo de segregação. Quando a família real chega no Brasil, ela propõe a fundação de duas faculdades, que é a Faculdade de Medicina de Salvador e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Essas duas instituições foram instrumentos importantíssimo para construção das narrativas preconceituosas e racistas do estado brasileiro. Elas constituem isso. Depois de 1816 a missão francesa cria no Brasil um modelo de educação, para que em 1824, na primeira Constituição, não se trate de nenhuma questão em relação à questão racial. Quando se constitui os cursos de direito, em 1827, um mecanismo de elitização para dar base legal e jurídica ao estado brasileiro também foi criado. Ao longo do século XIX, particularmente a partir de 1850, se definiu o status do estado brasileiro, de violência sistêmica contra a população não normatizada, o negro como sendo o foco central disso, e também de convencimento da população não negra das vantagens pelo bônus racial que ela tinha. Ao final do século XIX tem a política chamada de racismo científico, que, de novo, fez com que a universidade tivesse um papel importante na construção de um estado destruidor de corpos negros e corpos não normatizados.

Há um dado que é importante dizer: o Brasil foi o último país na América a desenvolver uma política de Ensino Superior. Já no século XVI um país como o México, por exemplo, já tinha universidades. No final do século XX surge uma proposta política que tem força no início do século XXI, que é pautado na política de inclusão das populações segregadas. Aí que se começa a desenhar uma política de cotas, inicialmente sendo uma prerrogativa política importante do movimento negro. Para que elas pudessem ser aprovadas ampliou-se para cotas sociais, que objetivava a expansão de benefícios para a população em condições vulneráveis. Só foi possível adotar as cotas sociais porque as cotas raciais foram articuladas inicialmente.

Quando isso começa a ser desenhado, começa também a se apresentar uma política contra essa universidade pública, democrática, gratuita, plural, inclusiva e sustentável. É como disse o geógrafo Milton Santos, há uma narrativa perversa contra as universidades públicas construídas pela extrema direita. Há uma narrativa de fabulação construída pelo centro no Brasil que tenta mostrar que não é necessário mudar nada, é necessário criar condições para que o aluno do ensino fundamental tenha condições de competição. Isso é uma bobagem, porque as condições de igualdade não se limitam à universidade. Você tem todo um tecido social, você tem toda uma articulação político social, Jessé Souza (autor do livro “A elite do atraso) tem mostrado isso. O aluno pobre da periferia tem dificuldades cognitivas de concentração no estudo, porque ele precisa ter como prioridade sua sobrevivência. O aluno branco de classe média não tem isso, por isso tem acesso muito mais fácil a mecanismos intelectuais importantes de formação, como por exemplo a concentração. Então todos esses fatores são correlatos do ponto de vista social. Quando você constrói essa narrativa de que mudando o ensino fundamental você vai mudar a possibilidade do ensino superior, é uma bobagem. Isso é a cristalização das diferenças sociais ao longo da formação desse aluno.

São insubstituíveis e fundamentais as políticas de reserva de vagas para que a população negra possa ter acesso a esse capital cultural, e a partir desse acesso criar possibilidades de redesenhar a política de desigualdade que nós temos no país. Desmontar as políticas de reserva de vagas é fazer com que se perpetue no país o mesmo mecanismo de violência e segregação da população afrodescendente que historicamente foram excluídos na sociedade brasileira.

AP: Qual é o problema para ascensão da extrema direita aqui no Brasil?

JX: No período do impeachment da presidente Dilma, fiz um pequeno texto falando sobre as implicações da ação para população negra. Naquela época eu apontei três questões. A primeira o aumento da incidência contra a população negra. Os índices ainda não foram fechados, mas eu não tenho dúvidas que vão apresentar aumento de forma significativa as violências físicas e simbólicas contra a população negra desde a metade do ano passado. A segunda coisa que eu apontei era o perigo que nós tínhamos de colocar em risco as políticas públicas arduamente conquistadas pelo Movimento Negro, construídas desde 1978, quando há a inauguração do que eu chamo do discurso moderno do movimento negro, com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU). O terceiro aspecto é como é que a população ia reagir em relação a isso. É como se você abrisse a caixa de pandora e colocasse à disposição dos segmentos mais reacionários do país um instrumento político de violência contra as populações em situação de vulnerabilidade social.

Esses dados foram confirmados. Aconteceu fundamentalmente em vários países que adotaram um caminho nazifascista das suas políticas. Foi assim nos Estados Unidos, com o governo Trump, foi assim na França, quando surgiu a Frente Nacional, com um discurso contra a esquerda, os direitos sociais e a população não branca da Europa, e foi assim na Alemanha, que quebrou o tabu e na última eleição teve um partido nazista concorrendo. Foi assim também em países que a gente jamais imaginou ter essas possibilidades, como a Suíça e a Suécia, que tiveram políticos de extremistas de direita. Então esse cenário é que está se repetindo no Brasil.

Nós temos hoje no país uma organização política de extrema direita, que tem como objetivo fundamental destruir os partidos de esquerda e criminalizar a luta política pela igualdade, né? E a eficiência desse discurso é tão grande que até as populações marginalizadas em condições de vulnerabilidade apoiam tal discurso e não se mobiliza contra pela alienação que vive em função da forte influência que a classe média conservadora e proto fascista tem na construção da narrativa dessa população. Então é importante levarmos em consideração que essas ações políticas implicaram perdas materiais importantes da população, exemplo disso é a aprovação da Emenda Parlamentar 95, que é um grande prejuízo para população pobre brasileira, e entre eles, a população negra.

A extrema direita avança para desmontar radicalmente as propostas políticas que favoreceram a inclusão da população negra e também outros direitos sociais. Já se fala no fim das cotas, já se fala no fim das políticas específicas da população negra, já se fala contra as políticas de titulação das comunidades remanescentes de quilombos, já se fala no fim da proteção muito pequenas a comunidades de terreiros, já se fala no fim de várias conquistas importantes que nós tivemos nesses últimos anos.

Então é possível que tenhamos que enfrentar uma batalha brutal para segurar direitos que nós conquistamos nesses últimos 40 anos, que hoje corre risco considerável em função da ascensão da extrema direita no Brasil e da capilaridade política social que ela tem adquirido.

AP: Como o senhor analisa o plano de governo do candidato Jair Bolsonaro (PSL) para a educação?

JX: É importante salientar que a extrema direita não tem plano. Foi feita uma apresentação de uma proposta pelos jornais, a Folha de S. Paulo fez isso, solicitou aos candidatos ao governo federal que apresentassem seus planos para o desenvolvimento de várias áreas. Em cultura e educação, o candidato da extrema direita não apresentou. Então, a rigor, não existe um plano de governo propositivo. Como disse muito corretamente Paulo Freire “A educação não é um espaço de relações neutras. A educação é um espaço de relações propositivas”. Quando você propõe uma neutralidade na universidade do ponto de vista da produção de conteúdo é a negação de qualquer possibilidade de criticidade da universidade e da educação. O que existe são falas fragmentadas, falas pontuais que apontam no sentido de ter aquilo que se chama no jornalismo de balão de ensaio: “Vou propor esses absurdos pra ver a reação da sociedade”. No entanto, alguns grupos articuladores ligados profundamente à candidatura de extrema direita têm se pronunciado sobre educação.

O não plano é destruir ou fragmentar qualquer possibilidade de uma educação de caráter democrático e público, principalmente, no sentido de abordar aspectos epistêmicos culturais educacionais importantíssimos na universidade. A universidade é isto: uma forma de construir um pensamento disruptivo, construir conhecimento científico que interesse à população, que fortaleça o estado democrático, que fortaleça a ação política das populações em condições vulneráveis, que é a população que paga a universidade. Ela tem o direito em ter retorno em relação a isso.

A proposta, por exemplo, de ensino a distância em todos os níveis é um crime educacional, um crime de inclusão de pessoas no universo do letramento, do conhecimento educacional, haja vista o que aconteceu na época da ditadura: a população brasileira pobre estava excluída do sistema universal de educação. Esse sistema só foi ser conseguido no Brasil em 1988 pós ditadura militar, a partir de uma ação muito bem articulada na Assembleia Nacional Constituinte. Avançar nessa direção é construir cidadania. O que a extrema direita pretende no Brasil, como tem feito pelo mundo afora é desarticular qualquer possibilidade de avanço educacional e que favoreça as populações em condições vulneráveis.

Outra proposta é retirar investimentos no Ensino Superior. Vários pesquisadores e teóricos têm falado sobre a importância do capital cultural nas sociedades ocidentais de modo geral. O capital cultural, formado fundamentalmente do ponto de vista do poder político nas universidades, cria setores importantes da classe média para assumirem postos estratégicos no mercado e assumirem postos estratégicos no estado. Elitizar o acesso das populações em condições vulneráveis ao ensino superior, é segregá-la da possibilidade de ter acesso ao mercado competitivo que paga altos salários, e, também, ao estado, que tem setores estratégicos na definição das políticas públicas na universidade, na universidade pública, principalmente, em que o mercado e o estado vai recrutar professores, jornalistas, engenheiros, médicos, arquitetos, entre outros. Essa elite que historicamente acaba assumindo uma política de transformar os seus privilégios econômicos, político sociais de classe em direitos. É o que nós temos visto em vários setores importantes do estado e mercado brasileiros. Desidratar o Ensino Superior é desidratar a possibilidade de uma formação crítica que possa estabelecer crítica sobre toda estrutura social, inclusive sobre a ineficiência da educação de base no Brasil.

Então, privar a população em condições vulneráveis de acesso ao capital cultural, que é o capital que define as digitais mais importantes do mercado e do estado em qualquer sociedade, em especial no Brasil, marcado por profundas desigualdades abissais e estruturais e por profundos mecanismos que se reproduzem socialmente de violência, de segregação e desigualdade, é não permitir essa reinvenção de forma democrática do estado e do mercado, é privar essa população de ter acesso aos conhecimentos conceituais, técnicos, políticos, éticos e sociais que poderiam propiciar a mudança de sua condição de vida.

AP: O senhor pode apontar alguns benefícios a longo prazo das cotas étnico raciais?

JX: As cotas étnicos raciais são um avanço político importante para toda a sociedade. Elas foram fundamentais como instrumento de superação da desigualdade estrutural e abissal na sociedade, que tem enfrentado desde a experiência negra no Brasil e desde a experiência da escravidão e de uma abolição mal feita.

Recentemente saiu na reportagem falando sobre a ascensão de um segmento social, que teve impacto na estrutura econômico/político/social no Brasil. E as reportagens sugeriam que a questão da política de cotas foi importante para essa mobilidade vertical da população negra. As políticas de cotas não são importantes apenas para a população negra, ela atinge de modo geral, porque ela traz arrastada atrás de si as políticas de cotas sociais, aqueles setores sociais mais vulneráveis, como por exemplo as mulheres brancas, que têm sido historicamente favorecidas pelas políticas de cotas. O machismo incide contra elas e quando elas consegue superar esses mecanismos a partir das políticas de reserva de vagas ou no trabalho, ou na universidade, elas têm ascensão significativa na sociedade.

Cotas são fundamentais não pros negros. Cotas são fundamentais para sustentabilidade de uma sociedade multirracial, como a brasileira, atravessada por profundas desigualdades econômicas, sociais e culturais.

As consequências políticas dos avanços adquiridos no Ensino Superior a partir dessa política de reserva de vagas, são efetivas: cria uma população articulada, cria uma população formada a partir de pressupostos importantes, em especial nas universidades públicas, que tendem a ser as melhores universidades porque oferecem pesquisa, cria a possibilidade da democratização do acesso ao capital cultural e cria possibilidade das mudanças políticas importantes no país.

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