Tiros, drones, suspeitas de grilagem e uma reintegração de posse que pode tirar milhares de pessoas de suas casas: conheça a história dos assentamentos Morada da Lua, Morada das Estrelas e Nova Canaã, terras ocupadas por famílias pobres e negras de Bauru-SP
Texto: Lucas Mendes, Lucas Zanetti, Solon Neto e Thamires Motta
Fotos: Lucas Mendes
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“O que a gente mais tem é ladrão de sonhos nesse país”, desabafa Rosemeire Magalhães, a Rose, sentada em um estrado de madeira ao lado do comércio de Ademar Batista Pereira, o mais popular do acampamento Morada da Lua, em Bauru-SP.
Vestida com a camiseta vermelha do Movimento Social de Luta dos Trabalhadores (MSLT), a líder nacional enrola um cigarro de palha com destreza enquanto o cotidiano de uma das maiores ocupações de terra da região se desenrola com a normalidade de um bairro.
Às 9h, a feira do rolo acabou de começar. Bombeiro, apelido de um morador, bate em um disco de grade que tilinta alto um som metálico. “Olha o rolo! Olha o rolo! Olha o rolo!”, grita chamando a atenção de quem passa. Uma lona protege seus produtos do chão de terra. Canos, cabos, ferramentas, produtos de pesca, relógios, plantas e até dois coelhos podem ser comprados bem barato.
“Tenho mais de 50 espécies de plantas, não dá pra trazer tudo. Um colega meu caminhoneiro traz pra mim do nordeste”, conta Ronaldo Hernandes, o Bombeiro.
Seu Ademar acabou de abrir e o café ainda não está pronto. Aos poucos, uma dezena de homens aparecem para comer. “Trabalhei a noite inteira, ainda estou no ar”, conta Bombeiro.
Os barracos estão fechados. O dia apenas começou no Morada da Lua. Descendo a rua principal se pode ver o horizonte tomado por árvores e barracos de madeira. Há casas de alvenaria, mas em menor número. Andando nas ruas, quase todos são homens adultos. Um menino só, vem de longe, compra uma pipa e vai embora.
Venda do Seu Ademar, no Morada da Lua. Lá se vende de tudo, desde arroz até botijão de gás. É o principal comércio do Morada da Lua. (FOTO: Lucas Mendes/Alma Preta)
Chega a primeira mulher. Um chevette marrom de placa de Bariri para em frente aos reservatórios de água do acampamento. O porta mala sequer fecha, devido ao tamanho dos galões que carrega. Quando cheios, a suspensão do carro desce quase ao solo. Dentro dele há uma família, homem, mulher e um menino. Três galões de 60 litros duram dois dias na casa de Viviane e Uanderson.
“Aqui é tranquilo, é sossegado, não existe briga. É um bairro. Um bairro classe média pobre, sem infraestrutura nenhuma, mas é normal. É melhor que na classe alta de Bauru, devido aos corruptos, ladrão, mentiroso. Aqui não existe isso”, conta Viviane que há 8 meses vive com o marido e o filho na casa de madeirite que ela e Uanderson construíram.
“Viemos pra cá por causa do aluguel muito caro, salário baixo. Não tava sendo compatível com tudo né? A gente pagava o aluguel e aí faltava alguma coisa”. Eles enchem os galões de água e com a ajuda dos vizinhos para empurrar o carro vão embora continuar o dia.
O chevette levanta a poeira fina da rua. Rose continua sentada. “As pessoas conseguem roubar até sua fé, a sua esperança”, afirma. “Eles não vão deixar as pessoas aqui. Na realidade, aqui é zona sul da cidade. Eles não vão querer esse pessoal aqui perto pra ser vizinho”. A Zona Sul é considerada a região mais nobre de Bauru.
Rose organiza ocupações em diversas cidades da região. Estava prestes a sair de Bauru em direção a Santa Cruz do Rio Pardo, onde um novo acampamento está começando. Ela continua: “Quando eu vejo um vereador falando ‘essa gente’, eles se referem a gente aqui como ‘essa gente’. Essa gente quem? Essa gente trabalha, essa gente paga imposto, mantém a cidade porque é maioria, essa gente é quem paga conta. Quem não paga conta e é caloteiro é esse povo que enriquece às custas de pobre. Quem não paga IPTU, que são patrões que exploram os funcionários com salários miseráveis. Por isso que essas pessoas não tem condições de comprar uma casa, terreno. Eu sou uma dessas pessoas”.
Uma das lideranças nacionais do MSLT é uma mulher, seu nome é Rose. (FOTO: Lucas Mendes/Alma Preta)
Os acampamentos Morada da Lua, Morada das Estrelas e Nova Canaã são o lar de mais de 700 famílias assentadas em Bauru. Os nomes remetem a sonhos, como relatam as lideranças do MSLT. A ideia é inspirar as pessoas que se aventuram nas ocupações. Rose conta que pelo menos dois dos nomes foram escolhidos pelo céu bonito que se pode enxergar no terreno à noite.
As batidas metálicas continuam. “No acampamento do MST, cada batida era uma reunião. Quando era com a direção do movimento era duas batida, a da educação era quatro, pessoal da estrutura era cinco. Aqui ele tá chamando pra feira do rolo”, o barulho do disco deixa Marcio Oliveira saudoso. Ao lado de Rose, Marcio é uma das principais lideranças dos acampamentos.
“Na região temos acampamentos em Agudos, Sarapuí, Itapetininga, Bofete, Araçatuba e Cabrália, uns 8 ou 9 acampamentos. Mas urbanos só em Bauru e Agudos. Todos esses apenas do Movimento. E agora já estamos indo para outros estados, Cuiabá no Mato Grosso e Goiás também”, explica Marcio pouco antes de começar uma transmissão ao vivo no Facebook mostrando a entrega de água pelos caminhões-pipa do Departamento de Água e Esgoto (DAE), da Prefeitura de Bauru.
Moradores abastecem suas residências em caixa d’água. Dia sim, dia não o DAE fornece água. (FOTO: Lucas Mendes/Alma Preta)
Em Bauru, a área entre os bairros Jardim Mary, Jardim Marabá e Vila Aviação B tem pelo menos 2,5 mil pessoas assentadas. Todos os dias, novas famílias se juntam aos assentamentos que têm o cerrado, a Universidade Estadual Paulista (UNESP) e três condomínios de luxo como vizinhos. Segundo o MSLT, há mais sete acampamentos na cidade de Bauru, com quatro mil famílias no total.
A ocupação começou em 2016. Em um ano, a organização autônoma de trabalhadores transformou a área onde estão assentados. Se antes havia apenas mato, lixo, entulho e árvores espalhadas, a presença das famílias transformou o local em bairro. Já surgiram igrejas, comércios e diversos tipos de prestadores de serviço. Ainda falta saneamento básico, coleta de lixo local e ligação elétrica regularizada. As casas têm banheiros externos e fossas para os dejetos. No acampamento vivem pessoas portadoras de deficiência física e mental, idosos e acamados. Os moradores coletam verba para garantir o mínimo de infraestrutura.
Imagens aéreas mostram que o local passou pelo menos 13 anos sem ocupação ou uso do solo. As lideranças do MSLT falam em quatro décadas de terras vazias. Com a presença dos assentados, postes foram instalados com rede elétrica e iluminação e um sistema de distribuição de água foi construído. Onde apenas cigarras cantavam para a lua, crianças passaram a ser ouvidas rindo.
“Só saio morto do meu barraco”: a ameaça de reintegração de posse
A estruturação do bairro cessou desde que um pedido de reintegração de posse foi feito. Em uma sexta-feira, 12 de maio, os bauruenses se depararam com uma matéria do Jornal da Cidade – único veículo impresso diário de Bauru. No texto, o título alardeava que a Polícia Militar (PM) se organizava para a “maior reintegração da história do município”.
“Pretende remover cerca de 2,5 mil pessoas”, com policiais “munidos de cassetetes, escudo, capacete e munição não letal que, se for usada, será de forma escalonada”, e com o poderio de armas de fogo, que “ficarão nas mãos dos sargentos e comando”, eram trechos da fala do tenente-coronel Flávio Jun Kitazume, comandante da PM em Bauru, presentes na matéria. A ação fora agendada para o dia 23 do mesmo mês, a partir das 6h da manhã. Um acordo impediu que a ação acontecesse, adiando a reintegração em 90 dias.
O temor das lideranças em relação a uma possível reintegração de posse é que haja resistência, violência e enfrentamento. Andando entre os assentados, não era incomum ouvir máximas como “só saio morto do meu barraco”, ânimos que sustentavam o medo na organização.
Moradores se reúnem na venda do Seu Ademar. (FOTO: Lucas Mendes/Alma Preta)
Michel Freitas Candelária, líder do Morada da Lua, pede sensibilidade ao poder público: “Só queria que eles começassem a olhar com olhos diferente para nós assim, como posso dizer, para a classe baixa, você entendeu? Para eles verem as condições, as necessidades que cada família está passando aqui”.
Defendendo o direito à propriedade dos 4 mil lotes estão, de um lado, 32 mandados, representantes de um número ainda menor de famílias. De outro, são 2,5 mil pessoas, homens e mulheres de maioria negra, origem humilde, representantes de cerca de mil famílias, reivindicando o direito à moradia. Ambos procuram um direito que de fato têm, iguais sob as frias letras da lei, no que se pode interpretar como a pura “luta de classes”.
À época, a notícia de que a reintegração poderia remover as famílias do local correu os bares, casas, instituições e universidades de Bauru. Os militantes do MSLT saíram às ruas para relatar seus problemas e buscar aliados. Logo, a cidade começou a se posicionar. Um dos primeiros a atender o chamado foi Roque Ferreira. Durante 8 anos, ele foi vereador da cidade pelo Partido dos Trabalhadores (PT), organização que deixou, insatisfeito, em direção ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Na última eleição foi um dos candidatos mais votados. Porém, a legenda de agora não garantiu sua manutenção na Câmara. Uniu-se, então, às lutas e às ruas, como costuma dizer.
Para ele, as ações governamentais, como as do programa federal Minha Casa, Minha Vida não resolveram a situação da moradia em Bauru, ao que a população teve que propôr uma solução. “Uma maneira de responder que as pessoas encontraram é usando movimentos de ocupação, porque de certa forma quando você ocupa você obriga o Estado a encontrar respostas. E a resposta do Estado é a repressão. E essas pessoas você vai colocar aonde?”, questionou Roque.
O protesto contra a reintegração fechou a Av. Nações Unidas, uma das principais vias da cidade. (FOTO: Lucas Mendes/Alma Preta)
Em abril, o Conselho Municipal de Direitos Humanos de Bauru declarou apoio ao movimento dos assentados depois de discutir a questão em sua reunião mensal. No encontro realizado no Conselho Regional de Psicologia local estiveram presentes Roque Ferreira e dois dirigentes do MSLT, Marcio e Rose.
A nota divulgada pelo conselho preocupa-se com as quase 5 mil crianças que estariam em assentamentos da cidades e alerta: “Nosso temor é que aconteça em Bauru a repetição da ‘tragédia humanitária’ ocorrida em São José dos Campos, quando o bairro do Pinheirinho virou uma ‘praça de guerra’, envolvendo até senhoras, idosos e crianças”.
“Cuidado com quem vocês estão mexendo”
A ocupação tornou-se alvo de ameaças constantes e seus líderes de perseguição. Michel relata vigilância com drones no local, Rose relembra casos em que foi seguida por carros desconhecidos e Marcio afirma ter sofrido três tentativas de assassinato.
Em uma cena que parece sair de filmes, diversos drones sobrevoaram o terreno do acampamento no que parecia ser um reconhecimento da área. Os moradores relatam momentos de pânico e insegurança. A área era observada do alto: “A gente estava em uma reunião no Canaã e vimos uma movimentação estranha no alto. E a gente conseguiu ver que era um drone mesmo, só não sabia se era da polícia ou… a gente só sabe realmente que era [um drone], porque a gente viu algumas pessoas se escondendo no mato de noite”, conta Michel, que continua: “Com medo de alguma reintegração, alguma coisa assim, a gente comunicou todos os acampamentos. Veio algumas famílias nos dar algum suporte, algum apoio para a gente ficar em retaguarda se fosse ter uma reintegração assim, inesperada”.
Crianças se divertem no parquinho improvisado. Na ausência do poder público moradores se viram como podem. (FOTO: Lucas Mendes/Alma Preta)
Ameaças mais brandas também são frequentes segundo o líder do acampamento, que afirma que os moradores são intimidados: “Vem bastante pessoas aqui que dizem ser donos. Vem uns até com carros importados, com algumas documentações dizendo ser dono da terra. Isso é com frequência. A todo momento tem essas pessoas aqui”.
Em um dos casos mais impressionantes, os moradores locais contam que uma denúncia os alertou sobre movimentação estranha durante a noite em volta do acampamento. Dois ônibus teriam se aproximado pelo mato e foram vistas lanternas e pessoas em meio às árvores. O local é cercado de mata fechada. Segundo os moradores, a movimentação durou a noite inteira, ao que poucas pessoas puderam dormir, permanecendo em alerta.
Marcio Oliveira é a liderança do movimento mais conhecida na cidade. A fama, no entanto, atraiu tentativas de assassinato com tiros em sua direção. “Isso já aconteceu três vezes dentro do acampamento. Uma foi em um apartamento que eu estava. Até tiro na janela do meu apartamento deram. Na segunda vez foi no Canaã. Eu fiz uma reunião e tinha um coordenador que morava em uma casinha que tem lá até hoje, uma casa amarela, e os caras chegaram caçando eu fortemente armados”, lembra Márcio com estranha tranquilidade. Ele continua: “Ainda bem que eu já tinha saído. E o pessoal me ligando pra saber onde eu estava, se eu estava bem, para eu tomar cuidado. A outra vez foi no Morada da Lua. Um golzinho, quatro caras dentro também tudo armado, perguntando da gente, onde a gente estava”.
As constantes ameaças e perseguições fizeram com que Marcio tivesse que trocar de residência diversas vezes. “A gente sofreu várias ameaças e até hoje as pessoas sentem medo dessa questão. Desde então, nesse momento, eu precisei me mudar 8 vezes de Bauru”.
Para Márcio, as ameaças vem pelo valor que as terras ocupadas renderiam. Mas também porque a posição social dos interessados também denota poder, segundo o membro do MSLT. “A gente passa apuro né. Infelizmente estamos mexendo com caras que tem dinheiro, nós estamos mexendo no bolso dos caras. Os caras vendem a 100 mil o lote deles. Imagina quanto de terreno… os caras dividem assim 6m por 25m, 8m por 25m. Imagina quanto dá… 3 alqueires de terra quantos lotes não dão?”, pergunta.
Imagens de satélite mostram a velocidade da ocupação do terreno pelas famílias do MSLT.
“Cuidado com quem vocês estão mexendo”, é uma frase que os assentados já ouviram muitas vezes. As ameaças afetam em cheio os ânimos dos moradores. “Até mesmo quando a gente tá conversando com autoridades a gente escuta ‘cuidado’, ‘tomem cuidado’, e isso é uma represália”, desabafa Rose. Ela relata que carros do movimento já foram perseguidos na rua. Os riscos são reais, assim como é real a disposição para a luta.
O pânico das famílias nos acampamentos aumentou após a reintegração de posse ser divulgada pela imprensa local. O receio de um confronto entre a polícia e o movimento social era grande.
Cinco dias antes do dia 23 de maio, data da reintegração de posse, o prefeito de Bauru, Clodoaldo Gazzetta (PSD) “costurou” um acordo com a direção do movimento. A ideia era evitar uma tragédia. O acerto adiou por 90 dias a reintegração, com o objetivo de dar tempo para o poder público viabilizar uma nova área para reassentar os moradores.
“Movimento não tem que fazer acordo, movimento tem que se movimentar”, opina Rose. Por colocar em primeiro lugar o bem-estar das famílias, ela entende que o movimento foi “obrigado” a firmar o acordo, a fim de não “castigar o povo”: “A gente fez acordo para ganhar tempo, só que ele [o prefeito] não está cumprindo”, lamenta.
O tempo era crucial para o MSLT. Comentando a ação do prefeito, Márcio Oliveira aludiu ao capítulo 10 do Evangelho de Lucas da Bíblia Cristã, em que aparece a parábola do bom samaritano. A passagem realça que é importante ter compaixão pelo próximo, ainda que este seja “um inimigo”. Interpretações não teológicas também chegam a afirmar que a parábola simboliza a importância de cumprir o “espírito da Lei”, e não apenas a “letra da Lei”.
“Do lado do Gazzetta esse acordo foi um ato político. Ele foi o ‘bom samaritano’ Ele tentou ser um bom prefeito, pra que não acontecer nada na cidade, muita coisa feia. Ele tentou apaziguar, mas só apaziguar não resolve. Agora temos 20 e poucos dias pra tentar resolver a situação e o problema está maior, porque muito mais gente se envolveu nisso. Antes muita gente tinha dúvida ainda com relação ao movimento. Hoje já se enxerga a gente como parte de uma luta séria. Tem pessoas se sensibilizando com a falta de estrutura, porque aqui é uma vida de cão”, afirmou a liderança do MSLT.
Ele enfatiza que o tal acordo foi parte de uma estratégia que, além de ganhar tempo, possibilitou uma articulação maior com outras frentes e movimentos, convocados para apoiar a luta dos assentados em Bauru.
“Naquele momento [23 de maio, dia da reintegração], nós não tínhamos tanta força e estávamos com pouco tempo pra mobilizar todo o apoio”, explica. À época seria mais difícil reunir apoio naquela situação, pois outros movimentos sociais e frentes sindicais estavam se dirigindo à Brasília, para compor as jornadas de luta pelo “Fora Temer”.
“A gente iria brigar sozinho. O dia do ato [Fora Temer] era no mesmo dia da reintegração de posse”, afirma o dirigente. A estratégia adotada foi adiar a reintegração para viabilizar o apoio que contaria com outras entidades, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e sindicatos. “Isso foi uma estratégia nossa. Não era hora de brigar mas de recuar e se fortalecer”, avalia.
Não acabou: reintegração ainda pode acontecer
Caminhando pela Rua 2 do Acampamento Morada da Lua, Valdir Justino dos Santos volta para sua casa, após uma rápida conferida na feira do rolo que acontece no lote do Bombeiro. A incerteza quanto ao futuro é um sentimento que atinge muitos moradores, em maior ou menor grau. A ameaça da reintegração fez alguns desistirem do acampamento e procurarem outro local de moradia. Os que ficaram, resistem e esperam. Alguns mais corajosos enfrentam a dúvida de construir uma casa de alvenaria.
Com 64 anos de idade, Valdir e sua esposa, Marcia Aparecida de Oliveira, têm um casal de filhos ainda crianças. Quando se mudou para o acampamento era época chuvosa, e ele veio montar seu barraco debaixo de chuva intensa. Assim que ficou pronto ele trouxe sua família. Na casa em que moravam antes a dívida com o aluguel chegava a quatro meses, e eles corriam o risco do despejo.
Desempregado devido a um acidente de trabalho, o dinheiro ia quase todo para o aluguel, pouco ou nada sobrando para alimentação e os demais gastos com a família. A situação se agravou com o acidente do filho. Uma semana antes seu o caçula havia acabado de passar por uma cirurgia. O menino estava soltando pipa, caiu e quebrou o osso do braço em duas partes.
Desde que a criança saiu do hospital era necessário conseguir um remédio para infecção e outro para a dor. Mas Justino não tinha o dinheiro. Para conter as dores do menino ele estava medicando com Dipirona, enquanto se virava para conseguir a medicação prescrita. “Eu to na correria, e mesmo assim cortaram o Bolsa Família do meu filho e da minha filha”, lamenta. “É duro rapaz, tem dia que eu tenho que pegar fiado aqui na vendinha”.
A falta de água é uma das principais reclamações de Valdir. “Não tem como lavar roupa, não tem como tomar banho, não tem chuveiro”, explica Valdir. O abastecimento de água continua sendo possível graças aos dois reservatórios montados pelos moradores, abastecidos a cada dois dias por um caminhão-pipa da Prefeitura.
Enquanto não houver um desenrolar para o adiamento da reintegração de posse, pouca coisa pode ser feita pelos moradores, sob o risco de perderem os investimentos que fizeram na construção de suas casas.
Faltam pouco menos de 30 dias para terminar o acordo estabelecido entre Gazzetta e o MSLT, e a prefeitura prometeu procurar nova área para reassentar as famílias. A negociação se deu com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Em entrevista, Gazzetta afirma que “se o Incra não passar a gleba para Bauru assentar, a reintegração será cumprida em até 90 dias”. A data final é 22 de agosto. O problema não está resolvido.
As terras destinadas à prefeitura pelo Incra correspondem aos lotes 351 e 353, localizadas ao final da Avenida Rodrigues Alves. Porém, os lotes já estão ocupados pelo próprio MSLT, os acampamentos Morada Nova e Cristal. Em nota à reportagem, o Incra afirmou que as ocupações são irregulares e que “os imóveis se apresentavam inviáveis para a exploração agropecuária”. Mesmo assim, as áreas estão em processo de regularização para serem destinadas às famílias.
Rose não acredita que a solução encontrada pela prefeitura irá resolver o problema. “A quantidade de área que tem e de pessoas não se encaixam nos projetos do Incra. Não dá pra fazer”, afirma. “Eu acredito que o Incra não resolveria essa situação. O Incra é reforma agrária e eu sempre falei isso e avisei para o Gazzetta que isso seria tempo perdido”, completa Marcio.
Em conversas informais, o gabinete do prefeito chegou a afirmar que não haveria como cumprir o acordo. Mesmo com as terras destinadas, a problemática continua, pois a área já está ocupada e não haveria espaço para assentar todas as famílias. Apesar do cotidiano precário, sair de lá não é uma opção para a maioria. “Aluguel hoje em dia de uma casa com dois, três cômodos sai por 700, 800 reais”, diz Valdir. “E eu não tenho condição de pagar isso. Eu já mudei de casa por esse motivo”, lamenta.
“Roubam meu suor”: especulação imobiliária e déficit habitacional
A lógica da especulação imobiliária levou Rose a se tornar coordenadora nacional do MSLT. Foram anos trabalhando no Hospital Estadual de Bauru como faxineira para investir em um terreno. Quando ficou desempregada, a situação se complicou. Tendo pago mais de 40 prestações de seu pedaço de terra, três ainda estavam atrasadas.
Quando juntou o dinheiro para pagar uma das prestações, Parreira, dono da Parreira Imóveis, não quis receber. “Você não vai receber, mas vai escrever uma declaração que você não vai receber. Você está me obrigando a ficar inadimplente. Você tá me levando a dever para você para tomar meu terreno”, disse ao proprietário.
Para não perder o terreno devido a inadimplência, decidiu vendê-lo “a preço de banana”. Segundo ela, é comum a prática de se recusar a receber para tomar o terreno e revendê-lo a outra pessoa. Ele só receberia se fosse a quantia de todas as parcelas atrasadas. Eles devolvem apenas a entrada as parcelas já pagas são perdidas.
Rose estava desempregada e sem ter pra onde ir. “Foi aí que eu me despertei”, conta. “Eu falei ‘olha como a vida é injusta. Essas pessoas estão certas, também vou partir pra isso’. Eu cheguei a essa conclusão. Olha a humilhação que pobre passa. Trabalha, tenta fazer as coisas direito e nem esse direito tem porque eles roubam. Isso pra mim é roubo. Roubam meu suor”, conta ela.
A promessa de terreno a condições acessíveis atrai pessoas que muitas vezes não possuem condições de pagar as parcelas até o fim. Quando isso acontece, o terreno é tomado pela imobiliária e as parcelas não são ressarcidas, apenas a quantia dada de entrada. Isso é permitido por lei, desde que conste em contrato.
Rose explica que essa é uma tática para lucrar com o terreno e esperar sua valorização. “Ele devolvia a entrada, tomava a terra e fazia isso com outra pessoa”, relata. Já presenciou casas serem destruídas e famílias desalojadas por falta de condições de pagar as parcelas.
A Constituição Federal de 1988 assegura o direito à propriedade em cláusula pétrea, ou seja, o artigo que o garante não pode ser modificado. A moradia, entendida como direito social, é garantida da mesma forma pela Carta Magna do país. O choque entre esses direitos é inevitável em sociedades populosas e desiguais como o Brasil.
“Temos uma justiça em que o direito de propriedade vem primeiro e que leva em conta um tipo de direito que é o da elite” afirma Clodoaldo Cardoso, presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos de Bauru e professor aposentado da UNESP. A concentração de terras, lotes e imóveis em nome do acúmulo de lucro, assegurada pelo direito à propriedade, faz com que parte da sociedade seja privada do direito à moradia.
O Brasil tem um déficit habitacional de 6 milhões de domicílios, segundo relatório de 2014 da Fundação João Pinheiro. Isso corresponde a cerca de 20 milhões de pessoas, ou 10% da população brasileira. Ao mesmo tempo, a revista ‘O Empreiteiro’ aponta uma receita bruta de R$ 10,149 bilhões para construtoras como a Odebrecht, em levantamento de 2013.
Sob a guarda do direito à propriedade, empresas do setor imobiliário e de construção civil alteram a composição dos espaços para valorizar uma região e produzir lucro em um processo chamado gentrificação. Como consequência, a população de baixa renda originária dali é afetada e obrigada a se mudar.
“Atualmente no Brasil existe investimento na propriedade para explorar, tanto de terrenos quanto o aluguel, por exemplo, com a especulação imobiliária”, explica Clodoaldo. Com esse processo, e os custos crescentes dos aluguéis, surgem os assentamentos organizados por movimentos sociais e a ocupação de favelas.
Em Bauru, a situação se repete. O mercado imobiliário da cidade apresentou 8% de crescimento entre 2014 e 2016, com preço médio do m² que chega a cerca de 4 mil reais segundo dados da Secovi (Sindicato de Habitação do Estado de São Paulo), um dos m² mais caros do Brasil, de acordo com o ex-vereador Roque Ferreira.
A última pesquisa do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) de Bauru data de 2010 e mostra que o déficit habitacional é de 4300 unidades habitacionais. No programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) foram mais de 27 mil inscrições somente na segunda fase, de acordo com a prefeitura.
“Bauru sempre teve esse problema de terras, a história de Bauru tem fatos que marcam, até assassinato de prefeito. É uma cidade que tem perímetro pequeno no município, o que faz com que aumente o valor da terra, é uma cidade que viveu da especulação, e não teve nenhum programa de produção habitacional, esse processo aconteceu logo que chegaram as ferrovias, teve um boom de loteamentos, depois o grande programa de habitação para os setores médios populares é através do Banco Nacional da Habitação (BNH), com as COHABS, que aconteceu em 1960”, explica Roque.
A disputa das classes sociais em torno de um território mostra uma lógica simples e “muito evidente”, como aponta Fernanda Nascimento Corghi, urbanista, doutora em Engenharia Civil e mestre em Geografia pela Universidade de Campinas (Unicamp). Para ela, toda vez em que se fala de ocupação do território, está se falando de fragmentação e de vulnerabilidade socioespacial. “A pessoa pobre sempre vai estar na franja, na periferia, no lugar que sobrou. Nunca à mercê das melhores áreas da cidade formal”, diz.
Ela afirma, ainda que “quem era dono da cidade continua sendo e as gerações vão continuar a ser”. Para ela, é nesse momento que entra em cena o poder público, que deve estabelecer uma Política Urbana, colocando diretrizes e planejamento para a ocupação do solo e criando mecanismo para impedir ou minimizar a especulação imobiliária.
“Hoje você pega um loteamento e compra ele por R$ 50 mil. Se você esperar 10 anos esse lote triplicou ou até quintuplicou seu valor”, explica Fernanda. Isso porque as casas que foram chegando ao redor colocaram dinheiro na região. “Quem é dono dessa terra e quem já tem o olhar de empreendedor na cidade, vai comprando terra já pensando que quando a cidade chegar, ele já vai ter lugar de terra barata para investir”. Nesse sentido, ela ressalta também a importância dos gestores do Poder Público na destinação da terra e na sua função social.
A forma de valorização imobiliária mais comum é esperar. Os lotes do Morada da Lua e Nova Canaã fazem parte da zona sul da cidade, considerada área nobre. Na região se localizam o Bauru Shopping, o Aeroclube local, a UNESP, a Universidade de São Paulo (USP), restaurantes, bares e condomínios de luxo como os Villagios. Os moradores dessa região são a elite econômica do município. É um local fértil para a especulação imobiliária agir com a construção de mais prédios de luxo, condomínios e casas.
De acordo com o Plano Diretor Participativo de Bauru (PDP), inúmeras glebas sem utilização situadas no perímetro urbano estão esperando o aumento de valor, “servindo de depósito de lixo e criação de gado, propiciando o desenvolvimento de epidemias graves, como a Leishmaniose”.
Conforme o documento, os terrenos vazios funcionam como barreiras que impedem a continuidade da urbanização, o que força a expansão do perímetro urbano e aumenta o trajeto do transporte público e encarecendo a implantação de infra-estrutura. Consta ainda que os lotes vagos correspondiam, em 2008, a 40% do total de lançamentos de IPTU em Bauru.
O diagnóstico do PDP também aponta para os problemas da concentração de riquezas presentes na sociedade bauruense: “a cidade reproduz a profunda desigualdade de distribuição de renda da sociedade brasileira: 1/5 da população mais pobre detém 9% da renda, enquanto o 1/5 mais rico se apropria de 42%”.
Isso permite, ao mesmo tempo, que a cidade tenha o 21º maior Produto Interno Bruto (PIB) do Estado de São Paulo, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), enquanto mais de 100 mil pessoas vivem em situação de baixa renda, dependendo de medidas assistenciais do município, do Estado ou da União para sobreviverem, de acordo com dados de 2016 do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). Essa quantidade de pessoas corresponde a 30% da população, que segundo o IBGE era de 343.937 habitantes em 2010.
Ocupações na zona sul, como o caso do Morada da Lua e Nova Canaã, atrapalham os interesses dos empreendedores imobiliários e construtoras, pois são terrenos que aguardavam valorização e a expansão da cidade. A reintegração de posse no acampamento Morada da Lua envolve 32 mandados que reivindicam terras no local. “No Canaã estamos brigando com um dono só que é o Parreira. Ele fala que é dono de uma posse de 11 alqueires, sendo que ele também não é dono”, explica Marcio.
“Vem pessoas de fora, que são os grileiros mesmo. Vem pra atiçar. Inclusive o Parreira falou que se a gente não sair por bem vai sair na bala. Ele é o grileiro principal. Ele chega aqui, pega a terra e, até a União legalizar, ele vai vendendo em parcelas para outras pessoas”, relata Bombeiro.
O homem a que Marcio e Bombeiro se referem é dono da João Parreira Negócios Imobiliários LDTA. A empresa devia um total de R$ 338.068,40 para o município em IPTU no ano de 2013. Pagani é o nome de outra família que reivindica terras onde está o Morada da Lua. São donos da Pagani Comércio Administração e Urbanismo LTDA. Ao todo, a dívida dos Pagani com IPTU chegava a mais de R$ 4 milhões em 2013, de acordo com documento dos maiores devedores de IPTU, cedido pela Prefeitura. As famílias citadas e seus advogados não foram encontrados para comentar a questão.
Rico contra o pobre: a grilagem das terras
“Isso aqui é o rico contra o pobre. O rico tem força e o pobre não, infelizmente. Pro rico é bem fácil de falar ‘Eu sou o dono’. Pro pobre, não. Ele é o oportunista, o invasor, o ladrão, e o rico?”, questiona Viviane. “Aqui ninguém é dono, tem grileiro, mas não tem dono”, afirma.
Um dos motivos da indignação é que não há certeza sobre a titularidade das terras onde estão as famílias assentadas. O MSLT está tentando provar que as terras reivindicadas não pertencem aos supostos donos.
Grilagem é “a ocupação irregular de terras, a partir de fraude e falsificação de títulos de propriedade”, segundo o Incra. Geralmente, a grilagem é feita por grandes proprietários que reivindicam terras para a valorização e para o lucro. Por isso é “um dos mais poderosos instrumentos de domínio e concentração fundiária no meio rural brasileiro”. Os mecanismos para provar a grilagem de terras são complexos porque podem envolver “fraude com cartório, fraude no processo judicial”, explica Roque.
Para Henrique Ribeiro Varonez, promotor de urbanismo do Ministério Público Estadual, “todas as áreas onde foram deferidas as liminares [de reintegração] estão devidamente registradas em nome dos que requereram esta medida judicial”, por isso “para o Juiz que deferiu esta liminar, não ocorreu dúvida”.
Ele também explica que “a matrícula do imóvel tem fé pública e é o documento que prova a propriedade. Para deixar de comprovar a propriedade, somente após sentença transitada em julgado em ação civil que determine a desconstituição desse título registrário”.
O MSLT se manifestou sobre a questão. No entendimento do movimento, “existem nestas glebas grandes faixas de terra que eram leitos ferroviários da antiga Companhia Paulista de Estrada de Ferro, área hoje pertencente à União e sobre o Controle da Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Para eles, se basear apenas nas matrículas é pouco para provar a posse. Como exemplo, o MSLT usa o caso dos condomínios Villagios, que foram construídos em terras públicas e a questão só fui denunciada e apurada pelo Ministério Público após denúncia do movimento.
As suspeitas de irregularidades envolvendo a questão de terras em Bauru atingem também o poder público. No dia 25 de julho, a Secretaria de Planejamento (SEPLAN) de Bauru foi alvo de mandados de buscas do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). A motivação fora um possível esquema de falsificação de documentos por parte de alguns servidores.
De quem é essa terra?
Três crianças correm por uma rua asfaltada debaixo de um sol de cerca de trinta graus em Bauru. Apesar do inverno, as temperaturas insistem em não abaixar na cidade do centro-oeste paulista. A cena poderia acontecer em qualquer outro lugar do Brasil: ao redor dos meninos, casas com grandes quintais, cachorros latindo ao portão, muros altos e um porteiro simpático que observa enquanto acessa sistemas complexos de abertura dos portões em um dos condomínios de luxo da cidade: o Villagio.
Estabelecido na zona sul de Bauru, considerada uma área nobre, de fácil acesso a rodovias e próximo a um pólo universitário, o Villagio se tornou um dos principais argumentos utilizados pelos líderes do Movimento Social de Luta dos Trabalhadores para afirmar que o poder público tem terras para destinar a população. Mas essas terras são selecionadas entre ricos e pobres, trabalhadores e empresários.
Roque explica que o processo de construção dos condomínios de luxo Villagio I, II e III começou em 2014, em lotes de terra pertencentes à União, localizadas no perímetro urbano, em áreas do antigo leito ferroviário da região, de acordo com inventariança da Rede Ferroviária Federal. Em 2015, travou-se na Câmara dos Vereadores uma intensa discussão envolvendo empresas e o poder público, culminando na elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
O procurador da República, André Libonati, permitiu que os proprietários construíssem três condomínios fechados na área, enquanto a prefeitura assumiu o compromisso de retomar parte das glebas para fazer duas avenidas. Justificou-se que as obras serviriam para o bem-estar da população e ajudariam a solucionar “grande parte do estrangulamento de trânsito urbano existente na região”.
Outro compromisso firmado no TAC foi que o condomínio destinaria área para a construção de um parque na região. “Quem fez os Villagios foram meia dúzia de bacanas, que chegaram, venderam o Villagio, terra da união, e ainda querem fazer um parque pra valorizar uma terra que não é deles?”, questiona Marcio. “Pra que a gente quer um parque com tanta gente sem casa? Ainda sim vai ser lucro, vai valorizar ainda mais o condomínio, a propriedade deles. Aqui estamos discutindo se as pessoas vão pra outra área ou pra rua. E onde fica o ser humano?”, dispara Rose.
Ainda na zona sul de Bauru, não tão longe dos Villagios, outras três crianças brincam. Nesse cenário algumas características se diferem: com os pés na terra, os meninos se divertem empinando pipa, desviando de pequenas casas de madeirite e com alguns cachorros magros correndo ao lado. Eles vivem no Morada da Lua. Diferente dos condomínios de luxo, ao invés de um Termo de Ajustamento de Conduta, eles receberam a ameaça de uma reintegração de posse que pode acabar com todos os sonhos reunidos ali.
Assim como no Villagio, o Morada da Lua foi um acampamento levantado em glebas de terra da União. A reintegração foi pedida por diversos empresários do ramo imobiliário da cidade, que viram no espaço a oportunidade de continuação dos negócios.”Aqui existe terra da Secretaria de Patrimônio da União. Mas essas áreas, assim como as áreas das APAs, são para loteamento e condomínio. Não é pra pobre”, critica Rose.
Para Roque, a diferença de tratamento entre as duas áreas se deve às diferenças sociais. “Nesses Villagios moram muitas autoridades da cidade, então não é tecnicamente tão simples. Há aspectos de natureza política e social que não se reproduzem para as ocupações”, explica.
“Destravar a cidade”
Como forma de ampliar os limites do município, para atender novas demandas por terras, o “destravamento da cidade” vem sendo discutido desde que Gazzetta assumiu o executivo municipal. Na câmara de vereadores, o tema também foi adotado pelos representantes do povo em suas discussões.
Esse destravamento envolvia a liberação de loteamentos urbanos nas Áreas de Proteção Ambiental (APAs) do município. Para viabilizar a proposta, no entanto, foi necessário modificar alguns artigos do Plano Diretor Participativo (PDP) da cidade, aprovado pela Câmara em 2008 após um intenso processo de participação, discussão, e deliberação popular que se iniciara dois anos antes.
No dia 24 de julho, os 17 vereadores da Casa votaram a favor do projeto de lei do prefeito Gazzetta, que altera dispositivos do PDP, permitindo assim a construção de empreendimentos imobiliários nas APAs. A Câmara contava com cerca de dez pessoas acompanhando as discussões.
Com a realização de duas audiências públicas para discutir o tema, o sentimento dos que são contrários a essa alteração é de que faltou participação popular. Na época de elaboração do PDP, por exemplo, todas as 12 regiões administrativas do município receberam audiências e reuniões para discutir o plano.
As três APAs de Bauru – Água Parada, Batalha e Vargem Limpa/Campo Novo, somam 66% do território municipal. Com a alteração da Lei e para disciplinar as construções nas APAs, será necessário a elaboração dos chamados Planos de Manejo – análises técnicas que vão estabelecer diretrizes de ocupação do solo.
“É possível que áreas de APAs possam ser ocupadas, desde que todo este processo seja feito com rigor, obedecendo a legislação e fundamentalmente ouvindo a população”, destaca Roque Ferreira, que argumenta que isso não foi feito.
“Os que opinaram no projeto foram os grandes proprietários de terra, os donos de imobiliárias e incorporadoras, construtoras, e os produtores de habitação, conhecidos predadores do meio ambiente”. Rose também tem críticas ao processo. “Foram 2 audiências públicas. Quem estava lá era o pessoal do SECOVI e as mesmas pessoas do Villagio, as mesmas que pedem reintegração aqui. São os donos da cidade”, expõe. Para ela, todas as brigas de terra na cidade têm os mesmos nomes envolvidos. “São os devedores do IPTU. Eles estavam nas audiências públicas, no conselho do município”.
Para Roque, outro problema com a abertura das APAs para loteamentos urbanos refere-se à falta de critérios na própria Lei do PDP. “As diretrizes dos planos de manejo não constam na lei”. O ex-vereador também pontua que essa aprovação visa interesses comerciais de grande porte, devido ao “modelo de desenvolvimento de produção habitacional extremamente atrasado” que impera na cidade, a qual paga um “alto custo” pela produção de grandes condomínios ou loteamentos fechados.
Entre acordos
“Saiu no jornal que o prefeito deu a palavra dele que estava tentando resolver o problema. Mas eu não estou acreditando mais”, dispara Marcio. O descontentamento com a Prefeitura de Bauru começou logo após o fechamento do acordo. Segundo ele, o cadastro dos moradores feito com a administração municipal deixou muitas pessoas de fora do reassentamento, o que obrigou o movimento a realizar um segundo cadastramento.
O combinado entre as partes também dizia que seriam montados dois grupos de trabalho. Um faria a seleção das famílias que poderiam se mudar, obedecendo critérios da SEBES – a Secretaria do Bem-Estar de Bauru, e outro grupo ficaria responsável pelo trabalho de campo, levantando áreas que poderiam ser destinadas às famílias sem-teto.
“Passaram a perna na gente”, revolta-se Marcio. Ele alega que o MSLT ficou apenas com a função de selecionar as famílias, “o que era um trabalho deles [prefeitura] e não da gente”. A vontade da coordenação era participar desde o início do trabalho de campo, pois existe uma noção de responsabilidade da coordenação dirigida aos assentados que estão sob a bandeira do movimento. “Aí numa dessas colocam a gente lá no fim do mundo, e não adianta”, argumenta o líder. “É igual eles fazem com o Minha Casa Minha Vida, tudo fora da cidade”.
“Vamos cobrar”, alerta Rose. “Se o prefeito prometeu ele vai ter que cumprir. A situação de todas essas pessoas que estão aqui ele vai ter que resolver. Senão vai queimar a vida política dele”, pontua.
A contrapartida do movimento no acordo foi cumprida. O MSLT comprometeu-se a não montar mais nenhum acampamento, enquanto a prefeitura disponibilizaria o novo terreno. “Ele falou que resolveria então não abrimos mais nenhum acampamento. Só mantemos o que já tinha”, diz Marcio. “Eles cresceram mas não aumentamos a área, foi só entrando gente”.
Essa terra tem dono
“O que eu peço para o pessoal da prefeitura é ter mais compaixão e ajudar a gente, porque estamos na necessidade”, comenta Valdir Justino, antes de voltar para sua casa, na manhã de domingo.
No comércio do Seu Ademar, alguns moradores conversam entre si, sentados em três cadeiras de plástico dispostas para o balcão da venda.
“Eu vim pra cá, conheci como funciona, e gostei”, comenta um deles. É Anderson Ferraz, de 31 anos, conhecido como ‘Magrão’. “Lutei pra poder ficar aqui. Muita gente passa necessidade, aqui falta água, temos que lutar por tudo isso aqui, e o nosso prefeito até agora não resolveu nada, a gente não sabe de nada”, protesta.
Uma das preocupações de Magrão é com relação às condições precárias de moradia, que permanecem por conta da incerteza e da insegurança com a posse. “Tem muita gente que já quer fazer sua casa, seu lar, pra sair do barraco. A gente mora em barraco! A gente passa frio aqui dentro”, explica.
Outro que chega para conversar é Bombeiro. “Se for pra ele [Gazzetta] tirar a gente daqui que seja para colocar em um lugar regularizado, certinho, com saneamento básico. Isso é o principal que todo mundo está querendo”, afirma. Por outro lado, ele também ressalta a moral das famílias no acampamento. “Ninguém aqui está triste. Todo mundo gosta de morar aqui, viver aqui. Já se criou laços familiares e laços com a vizinhança. O pessoal aqui é bem unido e a gente procura se ajudar”.
Bombeiro já foi um dos coordenadores do Morada da Lua. Faz questão de colocar em evidência a dedicação e o trabalho do moradores no local. “A Polícia Ambiental chegou aqui e elogiou nosso trabalho, o fiscal da CPFL veio e também elogiou os gatos porque é tudo cabo padrão”, exemplifica. “E outra, aqui não é favela com barraco tudo grudado. Aqui tem lote, tem organização”.
Observando diariamente todo movimento na rua principal do Morada da Lua está Seu Ademar. O comércio que ele toca junto da esposa é ponto de encontro dos moradores, e tem uma estrutura mais consolidada no acampamento, diferente dos outros comércios no local. “No começo tinha bem mais gente, e agora deu uma raleada”, lamenta. A minguada nas vendas foi atribuída à saída das famílias com a ameaça da reintegração.
“Na época, quando a gente veio aqui, o negócio estava bom, tava rendendo bem”, comenta. “O povo estava animando, construindo, material chegando. Aí depois que deu essa ameaça o povo foi saindo, abandonando”.
Para Seu Ademar o lugar é bom de viver, mas ele enfatiza os problemas. “A gente tá morando num barraco, a gente não tá morando na mordomia. Pra gente fazer uma coisinha melhor, a gente precisa de uma posição. Enquanto não tem essa posição a gente tá morando num lugar trágico, coisa de filme”. A insegurança para se estabelecer também pesa. “Você vai gastar um dinheiro e não sabe se vai ficar ou não vai, a gente não tem uma palavra certa”, diz. “E estamos aí, segurando as pontas. Só ficou quem falou que não tem pra onde ir mesmo, não tem como pagar aluguel. Do jeito que está hoje não tem condições”.
O comércio vende um pouco de tudo. Batata, tomate, arroz, frango, ovo, carne, gás, pão, leite, doces, pipas, refrigerante, cerveja, “cigarro solto”. “Muitos moradores não tem carro, então eles compram aqui”, diz Ademar. Aproveitando sua visão para os negócios, já tratou de expandir seu comércio. Construiu uma pequena granja nos fundos da seu estabelecimento, com cerca de 60 galinhas, o que lhe rende ovos e a venda dos frangos.
“Eu sou feliz aqui dentro, queria ficar aqui mesmo, não quero sair, já peguei muita amizade também”, revela Magrão. “Muita gente que mora aqui pagava 1000, 1200 reais de aluguel, ou ele pagava aluguel ou comia”, diz. “Hoje o mundo não tá bom pra nós, mas essa terra não é deles, é nossa. É da União, e vai ser nossa. Isso aqui é garantido. Deus falou que tá garantido, então tá garantido”.
Para todos os efeitos a reintegração de posse está suspensa até o dia 22 de agosto, quando se esgotam os 90 dias do acordo entre prefeitura e movimento. “Eu acho impossível os donos quererem prolongar mais um tempo”, confessa Marcio. “Mesmo assim a gente vai manter nossa jornada de luta, porque a gente não sabe o que pode acontecer do dia 22 pra lá”, revela.
“Dificilmente você acha um juiz que tenha consciência”, comenta Rose. “Eu fico me questionando porque que esse povo fala tanto em Constituição, sendo que a coisa que está sendo mais desrespeitada nesse país é a Constituição. Por mim podia rasgar e jogar fora porque não está valendo nada. E a moradia digna é um dos direitos revogados. Ela é inquestionável mas não é cumprido”.
“Aqui já tem muita casa de alvenaria, feito tudo bonitinho”, destaca Viviane. “Tem muitos que fizeram barraco aqui e não tem um serviço fixo, que não têm condição de desmanchar daqui e montar em outro lugar. Não tem dinheiro, não tem como. Tinha gente que vinha a pé até aqui pra fazer seu barraco”, lembra.
Seu Ademar compartilha do sentimento. “Eu to aqui até a última gota d’água”, projeta. “Quando falar que não tem mais jeito eu saio, caso contrário, vou ficar até o final mesmo”.