“Ai, Xangô, Xangô menino. Da fogueira de São João, quero ser sempre o menino, Xangô”, a música que já foi cantada nas vozes de Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso representa, na arte, o sincretismo do povo brasileiro. Dia 24 de junho é lembrado, para o catolicismo, como o dia do nascimento de São João Batista, o santo que batizou Jesus Cristo. Para as religiões de matrizes africanas, é dada homenagem a Xangô, o orixá da justiça. Os dois são lembrados através de um elemento tradicional junino: a fogueira. No entanto, a simbologia do fogo tem o mesmo significado?
Segundo a historiadora Clara Maria, mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a prática de acender a fogueira na noite de 23 para 24 de junho está relacionada aos jesuítas, que trouxeram a tradição para o Brasil como seguimento de uma tradição que, na Idade Média, era usada como um marco de renovação da natureza, através do solstício de verão e, com o poder da igreja, passou a ser marco de festividade relacionada a um santo. Ao passar dos anos, o ato foi associado a outras tradições populares, como o forrobodó africano, que resultou no forró, e a quadrilha junina, que recebeu influência de símbolos dos bailes populares de dança na Europa. Exemplo disso, é o uso de palavras como “anarriê” e “alavantú”, exclamadas nas durante as apresentações de quadrilhas juninas.
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Para a igreja católica, a tradição de acender fogueira está associada também ao acordo feito pelas primas Isabel, a mãe de São João, e a mãe de Jesus Cristo, Maria. De acordo com a história bíblica, Isabel teria mandado acender uma fogueira no topo de um monte como forma de avisar sua prima que o filho havia nascido, um meio de comunicação entre povos distantes na época.
Já para as religiões de matrizes africanas, entende-se que a fogueira está relacionada com o poder do fogo proveniente do orixá Xangô, conhecido como a entidade da justiça, sabedoria, dos raios e do trovão. Para as diferentes religiões de matrizes africanas, a comemoração e o culto ao orixá pode ser realizada no mesmo período dedicado a São João pelos cristãos, desde o dia 23, véspera, até o dia 30 de junho, data em que, na maiorias das casas de axé, é dada como reservada ao orixá. Em época de festejos juninos, para os cultuadores do axé, é tempo de estar mais próximo com o orixá.
Para a Iyapetebí do Ilê Obá Aganjú Okoloyá – Terreiro de Mãe Amara (representante histórico da linhagem ‘Nagô’ vinda de África para Pernambuco), situado no Recife, Gabriela Sampaio, é por este elemento que o orixá se manifesta, buscando trazer mais vitalidade, afastando o que há de empecilhos no caminho do seus seguidores para trilharem suas trajetórias.
“Para nós, povo de terreiro, da linhagem Nagô, a fogueira de Xangô é o próprio Xangô ali vivo, presente, com a sua força sendo mostrada através da própria natureza. Nós sentimos a sua presença, a vitalidade, vendo as suas chamas como as chamas da vida. É o que nos dá força”, explica.
Relações religiosas, que seguem até os dias atuais, que revelam práticas de representação das entidades trazidas pelo povo negro como resposta às imposições dos colonizadores, visando dar continuidade às suas tradições. Por isso, apresentam similaridade nas datas e simbologias, como a fogueira, mas com bagagens históricas distintas.
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Datas festivas
O questionamento contemporâneo trazido em estudos e levantado por estudiosos sobre religiões e história – e que ajuda no entendimento dos sucessivos casos de intolerância religiosa no país – é o porquê de não existirem feriados que respeitem a cultura religiosa tradicional negra e vinda de África, que deixem celebrar com o mesmo alcance de feriados cristãos.
A historiadora Clara Maria indaga quais seriam os reais motivos para desigualdade de celebrações, mesmo tendo, na Constituição Brasileira, a obrigatoriedade do respeito ao laicismo.
“É algo histórico, da origem do nosso país e que perpetua até hoje sob novas faces e frentes, pautados pelo conservadorismo e discriminação. A marginalização de tudo que compõe a cultura negra é mais uma tentativa de apagamento da nossa história, da trajetória dos nossos antepassados e de tudo que forma a identidade do que se refere a ancestralidade. Enquanto se cultua os orixás, a força e os elementos que compõem a natureza, muitas vezes guiados pelo medo da intolerância, até hoje, muitos seguem desvalidando a crença, difamando os saberes e a relação do povo negro com o sagrado”, observa.
A estudiosa ainda pontua a importância da valorização e respeito por um país plural, que valide as comemorações que constituem a cultura diversa da população brasileira.
“O sincretismo brasileiro nada mais é do que a mistura de influências, inclusive religiosas. Não dá para pensar nas celebrações religiosas no Brasil, por exemplo, que são consideradas feriados, sem abarcar as nossas tradições. Usamos de um meio que foi usado como defesa e resguardo dos elementos da nossa cultura, por isso os povos escravizados usaram de elementos cristãos para cultuar os orixás. Trazendo para a contemporaneidade, imaginem se existisse um feriado nacional chamado ‘Dia de Xangô’. A data seria celebrada com tranquilidade ou demonizada?”, reflete e finaliza.
Leia também: Conheça o Parque Pedra de Xangô, primeiro no Brasil com nome de orixá
Para saber mais sobre o “orixá do fogo”
Abaixo, a Alma Preta Jornalismo separou indicações de três documentários para saber mais sobre a relação da população negra de terreiro com o orixá da justiça e do fogo, que é cultuado para além da época dos festejos no mês de junho. Confira!
‘Xangô, a Yá e o Terreiro: negras histórias que se cruzam’
‘O Poder da Machada de Xangô’
‘O Quebra de Xangô’