O Zumví Arquivo Fotográfico é uma iniciativa que existe há mais de 30 anos com o trabalho de registrar a cultura e as lutas negras na Bahia. Idealizado em 1990 por Lázaro Roberto, Ademar Marques e Raimundo Monteiro, fotógrafos negros das periferias de Salvador, hoje o projeto busca preservar um extenso acervo de imagens com um registro documental da cultura negra que garanta o acesso à memória às gerações futuras.
Com o lema “Fotografar hoje para o futuro”, ao longo do tempo, o acervo conseguiu reunir mais de 30 mil imagens sobre variadas temáticas que atravessam a população afro-brasileira e a cultura baiana, em um registro fotográfico documental ou fotojornalístico: blocos afro, estética negra, festas populares, movimento negro, quilombolas, religiosidades, entre outros assuntos.
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Além dos idealizadores, outros fotógrafos colaboraram e doaram obras para compor a iniciativa, como o fotógrafo Rogério Santos, o poeta e militante Jonatas Conceição e o cineclubista e militante Luiz Orlando. Atualmente, a iniciativa é gerenciada pelo idealizador Lázaro Roberto e seu sobrinho, o historiador José Carlos Ferreira.
Todo o material se encontra armazenado em pastas na residência de Lázaro Roberto, no bairro da Fazenda Grande do Retiro, em Salvador. Essa, inclusive, é uma das dificuldades que ele conta enfrentar no trabalho de preservação do acervo, que hoje fica em um espaço que é pequeno e úmido, não climatizado.
“Os problemas que surgem é por estarmos em um espaço que não é adequado para a preservação desse acervo. Estamos lutando por um espaço adequado, um acondicionamento, higienização e digitalização desse material. Estamos pleiteando sair daqui, conseguir um financiamento para alugar um espaço mais adequado onde a gente possa acondicionar esse material melhor e também receber as pessoas e fazer atividades. Esses são os nossos receios e também anseios”, explica Lázaro Roberto.
Além de um melhor local de armazenamento, o idealizador do Zumví também explica que outra questão urgente trabalhada por ele e José Carlos Ferreira é sobre o processo de catalogação, higienização, acondicionamento e digitalização das fotografias, etapas importantes considerando um acervo onde há imagens com mais de 40 anos de existência. De acordo com Lázaro, isso impacta na circulação do material em exposições e na visitação.
“A falta de manutenção para o acervo já ocasiona vários problemas. A maioria do material nunca passou por um tratamento, por uma preservação e estão ainda do jeito que eu fotografei”, comenta Lázaro.
“Então as fotografias não podem quase que circular, as pessoas não podem vir aqui – como estudantes, professores, pesquisadores – para pesquisar, porque o material ainda não está em condições. A gente não pode passar o material para as pessoas enquanto não houver todo esse trabalho de higienização, catalogação, acondicionamento e digitalização. Tudo isso só acontece quando a gente conseguir verba e um financiamento”, explica o idealizador da iniciativa.
Apoio e investimento público
O historiador José Carlos Ferreira relata que há uma dificuldade de se ter um financiamento contínuo para o projeto, que possa apoiar todas as necessidades que existem para sua preservação e manutenção. Segundo ele, o Zumví hoje se mantém com trabalhos e editais esporádicos que financiam por um determinado período as atividades.
“Em 2014, a gente ganhou pela primeira vez um edital para digitalização de acervos, que foi junto com a Universidade Federal de Pernambuco e o Ministério da Cultura. Nessa oportunidade, eu fui levado duas vezes a Pernambuco para fazer formação. Durante a pandemia, foi a primeira vez que a gente teve um financiamento da prefeitura por meio de um edital que a gente pôde fazer o nosso site e uma exposição virtual”, elenca José Carlos alguns apoios que receberam ao longo dos últimos anos.
Mais recentemente, o Zumví ganhou um edital de 2019 do Fundo de Cultura da Bahia, promovido pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Cultura (SecultBA), para digitalização e promoção de acervos privados de interesse público. Com o recurso distribuído neste ano, Lázaro conta que se iniciou a digitalização de 10 mil fotografias, processo que será coberto pelo edital.
“A gente tem certas ações esporádicas do estado nesse sentido, mas não vemos uma responsabilidade de apoiar o acervo no sentido contínuo, um apoio mais sólido”, explica o historiador.
“O estado deveria nos apoiar, porque essa documentação, essas memórias são as memórias do pós-abolição. O acervo do movimento negro está aqui dentro do Zumví Arquivo Fotográfico. Com grandes pautas do movimento negro, como Centenário da Abolição, Nelson Mandela na Bahia e outras pautas que deveria servir hoje pra trabalhar com a Lei 10.639”, também ressalta Lázaro Roberto.
Além disso, José Carlos conta que a iniciativa recebe apoios importantes que ajudam, seja com formações específicas para a preservação do material ou com disponibilização de estagiários, como o auxílio do professor Elson Rabelo, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, e do Grupo de Pesquisa LEIA, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.
“A gente já vem digitalizando desde 2014, quando conseguimos a nossa máquina de escanear e viemos escaneando de uma maneira bem aleatória. Hoje a gente tem mais uma organização no processo, no método de trabalho e graças a formação que Elson Rabelo tem dado”, comenta José Carlos.
O poder público da Bahia e do município de Salvador explica que a forma de se conseguir financiamento para iniciativas como a do Zumví Arquivo Fotográfico é por meio da participação em editais promovidos pelas instituições públicas.
Em nota enviada à Alma Preta Jornalismo, a Fundação Gregório de Mattos – FGM (órgão da Prefeitura de Salvador, responsável pelas políticas de fomento à cultura na cidade) informa que uma de suas frentes de atuação são por meio de editais (programas de incentivo financeiro em projetos).
“A FGM não financia projetos diretamente, a política de fomento desenvolvida é via chamadas públicas, como Arte Todo Dia – edital para projetos de pequeno porte, voltado para todas as linguagens artísticas; Gregório´s – edital voltado a projetos estruturantes inovadores; entre outros. Todos os editais seguem e respeitam a política de cotas para projetos com temática afro, porém, em torno de 70% dos projetos aprovados, são voltados para esse tema”, explicam.
Além disso, a FGM informa que outra frente são os equipamentos culturais, “(programa que administra e gerencia os equipamentos culturais do município, bem como cessão de pauta, do Teatro Gregório de Mattos, Espaço Cultural da Barroquinha, Casa do Benin, Espaços Boca de Brasa, além dos editais de Ocupação e Dinamização de Espaços Culturais, onde os projetos selecionados recebem recurso financeiro para desenvolverem as atividades na comunidade, por um ano)”.
Vaquinha, financiamento coletivo e loja no Pelourinho
José Carlos Ferreira conta que para ajudar a atrair mais recursos para o projeto, um caminho foi alugar um espaço no Pelourinho, na Ladeira do Carmo, mesmo que ainda insuficiente para o armazenamento de toda coleção, mas que funciona como um ambiente de venda de fotografias. Uma vaquinha foi construída para que o objetivo fosse realizado. Atualmente, há um esforço de buscar manter o interesse das pessoas pela compra das fotografias. Além disso, imagens do acervo são cedidas para documentários, livros e exposições como uma forma de angariar mais recursos para a manutenção do projeto.
Lázaro Roberto e José Carlos contam que, em breve, um financiamento coletivo será aberto para buscar recursos de forma mais contínua para a preservação do acervo documental, sobretudo para a digitalização de mais 20 mil fotografias que compõem o repositório.
Garantia de acesso à memória
O historiador Elson Rabelo, professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco pontua que a falta de manutenção pode colocar o acervo em perigo de perda material, especialmente em uma cidade chuvosa como Salvador, e em virtude da fragilidade dos suportes analógicos (negativos e cópias impressas).
“No Brasil, tivemos experiências negativas de perdas de importantes acervos institucionais e isso compromete o ensino, as políticas reparatórias, o direito à memória e a renovação da produção de conteúdos didáticos e midiáticos que façam jus às experiências históricas negras, indígenas, camponesas e da classe trabalhadora em geral. Como podemos situar a memória das lutas por direitos como cotas raciais, acesso à saúde, trabalho digno sem o recurso a imagens e documentos que registraram essas lutas há décadas atrás?”, ressalta.
De acordo com o professor, o exercício de memória e as narrativas da História precisam do apoio dos testemunhos, das imagens e documentos para não deixar esses processos históricos se perderem.
“Embora a Bahia seja celebrada pelas memórias das práticas culturais da população afrodescendente, há uma lacuna muito séria de políticas de memórias para a população negra, sobretudo das lutas, do trabalho e da diversidade cultural localizados em espaços periféricos. Sem o apoio do poder público, a sociedade civil precisa de letramento racial e histórico, e de acesso ao consumo, para vir a investir nos projetos. Hoje, muitos turistas conhecem e visitam o espaço do Zumví no bairro do Santo Antônio, mas a construção da visibilidade local e regional ainda está em processo”, destaca Elson Rabelo.
Lázaro Roberto também comenta sobre a importância da iniciativa ao relembrar sua própria história, como filho de uma lavadeira e de um estivador que conseguiu chegar à fotografia.
“Eu acho que as pessoas negras precisam se ver na fotografia, porque, na minha trajetória, a maioria dos fotógrafos que eu sempre vi são pessoas de classe média branca daqui de Salvador. Eu vejo a importância desse trabalho com a identidade negra que eu venho fazendo há quase quarenta. Então acho que a juventude e essas novas gerações têm que ver esse trabalho. O acervo do Zumví tem que estar aí para as pessoas verem e tem que estar dentro das escolas”, finaliza.
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