A campanha de abstinência sexual da ministra Damares Alves, lançada nesta segunda-feira (3) pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), foi alvo de críticas de especialistas em saúde sexual desde seu anúncio.
Para Carolina Iara de Oliveira, mestranda em ciências humanas e sociais e assistente de políticas públicas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, a proposta culpabiliza a população marginalizada, como jovens negros e LGBTs, pelas suas atividades sexuais.
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“Em vez de fazer uma mobilização social para acabar com a exploração sexual juvenil de meninas negras e combater a transfobia que faz jovens trans serem expulsas de casa e terem que se prostituir para sobreviver, você abafa todos esses problemas sociais originados pelo racismo e machismo para colocar a culpa somente sobre as pessoas marginalizadas pela nossa sociedade cisgênera e heteronormativa”, afirma.
A proposta de abstinência sexual faz parte da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, organizada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) em parceria com o Ministério da Saúde. A ministra Damares Alves também pretende incluir a proposta de abstinência sexual como um método contraceptivo, em uma política pública mais ampla chamada de Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce.
Para o Ministério comandado pela pastora evangélica, o início precoce da vida sexual leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”. Em entrevista à Rádio Jovem Pan, Damares Alves afirmou esperar que a política de abstinência convença os adolescentes a adiar o início da vida sexual. Para aqueles que preferem não esperar, a ministra defende o uso de outros métodos contraceptivos.
Segundo Carolina Iara, a campanha de abstinência sexual também pode ter impacto negativo sobre as denúncias de abuso sexual de crianças e adolescentes. As estatísticas sobre violência sexual no Brasil são alarmantes e estão de fora da campanha de Damares Alves.
Dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2019, mostram que 53,8% das vítimas de estupro no país têm menos de 14 anos e 50,9% são negras. Em relatório de 2017, a Unicef destaca que em todo o mundo o número de casos de gravidez na adolescência resultantes de violência sexual é de 40% a 60%.
“Eu temo que meninas e meninos LGBTs não consigam denunciar abusos ou ao menos buscar apoio por conta de uma política como essa, que vai culpabilizá-los. Uma campanha de abstinência sexual não vai mudar uma cultura de exploração dos corpos colocados em outro patamar de humanidade e são essas pessoas marginalizadas, como os LGBTs e negros, que serão punidos por ‘não terem controlado seus extintos’”, sustenta Carolina.
O que as pesquisas científicas dizem?
A proposta de abstinência sexual defendida pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi embasada em políticas do tipo usadas nos Estados Unidos, no Chile e na Uganda.
Nos últimos anos, revisões feitas em estudos sobre políticas de prevenção à gravidez na adolescência e infecção de jovens por HIV apontam que programas pautados exclusivamente em abstinência sexual não funcionam. O mais recente, publicado em 2016 na revista médica Health Psychology Review, assinado por quatro pesquisadores das escolas de medicina da Universidade de Exeter e da Universidade de Bristol, ambas no Reino Unido, concluiu que políticas sobre saúde sexual com foco exclusivo na abstinência não são eficazes para mudar o comportamento sexual de adolescentes.
A pesquisa analisou 37 revisões de 224 estudos baseados em intervenções feitas em escolas e concluiu ainda que programas completos sobre riscos sexuais e prevenção de HIV foram consistentemente efetivos em mudar conhecimento, atitudes e habilidades dos adolescentes.
Carolina Iara de Oliveira, mestranda em ciências humanas e sociais e assistente de políticas públicas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, avalia que os adolescentes brasileiros deveriam ter acesso aos conhecimentos sobre saúde sexual e reprodutiva em vez de serem o público-alvo de uma campanha de abstinência sexual.
“O governo sabe que a proposta de Damares não terá eficiência, pois não possui respaldo científico e nenhuma motivação que explique uma política de abstinência ser uma política de estado. O que não é falado é o prejuízo de uma política dessas que é não existir a inserção da pauta de saúde sexual e reprodutiva no currículo escolar e na mídia de forma bacana para a infância e adolescência. Em vez disso, estimulam a culpabilização do indivíduo por seus comportamentos”, explica.
Conservadorismo e educação sexual
Educação sexual é um tema distante do governo Bolsonaro, que desde a campanha eleitoral de 2018 assumiu uma agenda de fortalecimento das ideias propagadas pela parcela mais conservadora do país, como as igrejas evangélicas. Segundo a ministra Damares Alves, a campanha de abstinência sexual não possui um viés religioso, embora uma de suas inspirações venha da associação cristã “Eu Escolhi Esperar”, que tem como política central o incentivo ao início da vida sexual somente após o casamento.
Para Carolina Iara de Oliveira, mestranda em ciências humanas e sociais e assistente de políticas públicas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, a proposta de Damares Alves encontra apoio no eleitorado religioso.
“Na minha avaliação, a política de postergação sexual é uma forma de mobilizar eleitorado. Mobilizar essa faixa da população que é conservadora e ligada a dogmatismos religiosos contra a liberdade sexual. Nós sabemos que nosso país tem uma população que flerta com o conservadorismo há muito tempo”, analisa.
Prevenção ao HIV
Em julho de 2019, a Organização das Nações Unidas (ONU) chamou atenção para o aumento do contágio do vírus HIV, causador da AIDS, no Brasil. Segundo a organização mundial, o número de pessoas infectadas pelo vírus subiu 21% em oito anos, apesar das campanhas e do tratamento oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ainda no ano passado, o governo Bolsonaro foi criticado pelo desmonte do órgão exclusivamente responsável pelo combate à AIDS, que passou a ser uma coordenadoria dentro do Ministério da Saúde.
“Nós não temos mais um departamento exclusivo para a saúde sexual, faltam medicamentos e isso tudo atinge a população mais vulnerável. Prevenção não é só fazer campanha, é também ter acesso aos serviços de saúde, como a distribuição de preservativos e os serviços de aconselhamento nas unidades básicas de saúde. É muito ruim que toda a questão da saúde sexual seja reduzida ao debate do viés moral, como se fosse simplesmente uma escolha de fazer sexo ou não”, pondera Carolina.
O Alma Preta questionou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) sobre a criação de políticas de saúde sexual com foco na população mais marginalizada, como a negra e a LGBT. Até a publicação desta reportagem, a pasta comandada por Damares Alves não respondeu aos questionamentos da redação.