A vereadora de Belém (PA), Bia Caminha (PT), tem sido alvo de vários tipos de ameaças que citam sua condição enquanto mulher negra e LGBTQIAPN+. Na mais recente, a parlamentar foi ameaçada de “estupro corretivo”.
Na mensagem enviada à vereadora por e-mail, o autor, que se identifica como Doutor Astolfo Bozzônio Rodriguez, narra o que seria uma sessão de “estupro corretivo terapêutico”. A parlamentar registrou Boletim de Ocorrência (BO).
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“Isso não é violência (…), uma terapia de eficácia comprovada que ‘cura’ o ‘homossexualismo’ feminino, porque ser ‘sapatão’ é ser uma aberração. Referi-me a bissexuais, pois o ‘bissexualismo’ feminino é uma variante dessa doença chamada ‘lesbianismo’.”, diz a mensagem.
O documento termina com o autor tentando intimidar a vereadora ao dizer que teria acesso a dados pessoais dela. “Se quiser, posso ir na sua casa (já tenho seu endereço) e fazer uma demonstração sem compromisso do Estupro Corretivo Terapêutico. O que acha?”, propõe o homem.
A mesma ameaça foi direcionada a parlamentares de outras regiões do Brasil, como as deputadas estaduais de Minas Gerais, Lohanna França (PV), Bella Gonçalves (PSOL) e Beatriz Cerqueira (PT). Um homem foi detido em 28 de setembro suspeito de participar de grupos e fóruns de onde teriam sido disparadas as mensagens. A prisão fez parte de uma operação conjunta entre o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) e as polícias Civil e Militar do estado.
“Hoje a gente sabe que essas mensagens têm origem em fóruns da deepweb, que têm listas com nomes de parlamentares para serem atacadas. O meu e-mail e os meus dados pessoais estão nessa lista. Semana passada eu voltei a receber esses e-mails, com ameaças diretas a minha vida e, também, várias questões criminosas como racismo e LGBTQIAPNfobia”, conta Bia Caminha.
Procurada pela Alma Preta, a Polícia Civil afirmou que trabalha para identificar a autoria das ameaças. O caso é investigado por meio da Diretoria Estadual de Combate a Crimes Cibernéticos.
Discussão sobre retirada de direitos da população LGBT+
A vereadora de Belém relata ser alvo de ameaças desde o início do mandato, em 2021, mas os ataques ganharam força nos últimos meses, a partir de discussões que ocorrem no Congresso Nacional sobre a retirada de direitos civis da população LGBTQIAPN+. É o caso do Projeto de Lei 5.167/09, que tramita na Câmara dos Deputados e propõe a proibição da união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, reconhecida desde 2011 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O PL proíbe que relações entre pessoas do mesmo sexo sejam equiparadas ao casamento ou à entidade familiar. A proposta foi aprovada, na manhã desta terça-feira (10), na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família. Agora, o projeto vai tramitar pela Comissão de Direitos Humanos e de Constituição e Justiça.
“Acho que essa onda conservadora no Congresso incentiva o ódio. Ou seja, a gente vê que aumenta nossa participação nos espaços de poder, mas a gente também sofre mais violência”, reflete Bia.
Além da ameaça de estupro, a vereadora relata que sofreu uma tentativa de invasão de seu gabinete na Câmara Municipal de Belém (CMB), em fevereiro do ano passado, e é constantemente alvo de ataques LGBTfóbicos na internet. Todos os casos foram denunciados à polícia, mas a vereadora afirma que os responsáveis nunca foram punidos.
“Violência política não é só ameaça de morte, mas um conjunto de práticas para deslegitimar e desconstruir a imagem de alguém. Para chegar em um ponto em que uma parlamentar eleita recebe uma ameaça de morte e o estado não toma isso como problema, é porque já teve todo um processo de normalização da violência de corpos como o meu”, descreve.
Falta de proteção a parlamentares
A parlamentar diz ainda que sofreu ameaça de morte em abril deste ano, também por meio de e-mail. Na ocasião, segundo Bia, o caso chegou a ser encaminhado para a Polícia Federal e foi proposto que a vereadora entrasse no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, mas, para isso, teria que renunciar ao cargo político e mudar de cidade.
“Eu preferi ficar sem segurança do que ‘morrer’ de outras formas, porque iam matar a pessoa que eu existo hoje para que eu me tornasse outra pessoa. Então, essa falta de preparo do Estado é muito simbólica. Por outro lado, a gente tem conseguido discutir com o governo federal, a partir de grupo de trabalho interministerial de violência política, propostas para construir um programa de proteção a parlamentares e lideranças políticas ameaçadas”, conta.
A advogada Lígia Batista, diretora executiva do Instituto Marielle Franco e organizadora da Pesquisa Nacional “Violência Política de Gênero e Raça no Brasil: dois anos da Lei 14.192/2021”, discute sobre as limitações e necessidades de aprimoramento das políticas atuais para garantir a segurança de parlamentares negras e LGBTQIAPN+.
“O uso de programas de proteção, como o de defensores dos direitos humanos, para esses fins de proteção também a parlamentares vítimas de violência política, nasceu a partir da mobilização após a morte de Marielle. A vereadora de Niterói, Benny Briolly (PSOL), também alvo de constantes ameaças, foi a primeira incluída no programa”, afirma.
“Mas isso expõe as limitações dessas e de outras instâncias do sistema de justiça, em que as respostas fazem com que a parlamentar precise deixar de ser quem ela é. Essas mulheres têm que se sentir seguras para exercer seus cargos, pois foram escolhidas pelo povo brasileiro e não podem perder seus mandatos ou terem seus direitos políticos limitados pelas ameaças”, defende Lígia.
Cenário político de Belém
Perfil raro na Câmara Municipal de Belém (CMB), Bia Caminha é uma das poucas negras e a única mulher assumidamente bissexual na casa legislativa. Ela foi eleita com mais de 4,8 mil votos e é considerada a vereadora mais nova da história da capital do Pará.
No mesmo pleito, em 2020, se elegeram outras quatro mulheres autodeclaradas negras: Pastora Salete (Patriota), Blenda Quaresma (MDB), e Vivi Reis e Lívia Duarte, ambas do PSOL. Porém, com a vitória do então deputado federal Edmilson Rodrigues (PSOL) para a Prefeitura de Belém, a primeira suplente, Vivi, assumiu o cargo na Câmara dos Deputados e deixou a vaga de vereadora para outra mulher negra, a Enfermeira Nazaré, do mesmo partido.
Já Lívia renunciou à vereança para disputar as eleições de 2022 e foi eleita deputada estadual, sendo substituída na câmara municipal por outra mulher autodeclarada negra, Gizelle Freitas (PSOL), da Bancada Mulheres Amazônidas.
Hoje, mulheres negras são cinco de um total de 35 vereadores de Belém, 14,2% da composição da câmara municipal – percentual bem abaixo dos 56% da população brasileira autodeclarada preta e parda, de acordo com a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em abril deste ano, Lívia também foi alvo de ameaça de morte. A deputada estadual recebeu uma mensagem que dizia que ela iria “visitar” Marielle Franco. Apesar de temer por sua vida e de seus familiares, ela não pretende abandonar a vida política. “Não posso me paralisar. Não tenho a opção de voltar. Sigo em nome de que essa situação não ocorra nunca mais”, afirma.
Vivi é outra que já sofreu várias formas de violência política, desde ser barrada na Câmara dos Deputados, em Brasília, até invasões ao escritório em Belém. No ano passado, ela teve o carro em que estava interceptado por homens encapuzados em uma estrada para Cametá (PA).
Bem antes, durante a campanha eleitoral de 2018, a ex-parlamente teve o vidro do carro quebrado e um homem mostrou uma arma para sua equipe. “Ele disse que era para saírem da porta da universidade dele porque ele não gostava de feminista, de ‘viado’, ‘sapatão’, fazendo panfletagem perto de onde ele estuda”, recorda.
Violência política em números
No país que, após cinco anos, não solucionou o assassinato de Marielle Franco, cerca de sete casos de violência política contra mulheres negras ocorrem a cada 30 dias, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desde a tipificação da violência política contra mulher, sancionada em 2021 pela Lei 14.192/2021, o Ministério Público Federal (MPF) contabilizou cerca de 112 casos.
Falta aproximadamente um ano para as próximas eleições municipais e Lígia Batista, do Instituto Marielle Franco, aponta para a necessidade de construir uma rede de apoio em volta das candidaturas negras. LGBTQIAPN+ e periféricas.
“Acompanhamos casos de companheiras que se elegeram e vivem trajetórias políticas solitárias, porque a gente não trata só de violência política, mas também de construir as campanhas eleitorais para essas pessoas que precisam de apoio e de uma rede para enfrentar os desafios colocados no fazer política no Brasil”, destaca.
“Estamos aqui não só para falar das violências como também para entender que nós, mulheres negras, só sobrevivemos porque a gente se organiza por fora da institucionalidade; mas ocupar esse espaço que sempre nos foi negado é histórico”, acrescenta Lígia.
Apesar da insegurança, Bia Caminha diz que não se intimida e reforça a necessidade de mais mulheres negras na política. “Acho que as portas foram abertas por muitas outras antes da gente, para que a gente estivesse aqui hoje. Então, só o fato da gente ter existido aqui faz com que outras mulheres possam pensar e ser priorizadas também para estar nesse espaço porque a gente tornou possível”, conclui.