Texto: Pedro Borges
A segunda nação mais negra do mundo, atrás somente da Nigéria, tem a sua história construída através do sofrimento do povo preto. O Brasil foi o maior destino de escravos durante a diáspora africana e é aqui onde negras e negros, depois de 388 anos de escravidão, continuam marginalizados. Ao invés de empregos, o convite a imigrantes europeus afim de embranquecer o país e trabalhar no período pós abolição da escravatura. Ao invés de educação e cultura, o povo preto recebeu estigmas, presídios e repressão. Enedina Alves, mestra em Direito pela PUC-São Paulo e militante da UNEafro, é enfática e explica como “desde a chegada do povo negro nessa terra sentimos a presença do Estado Penal como produtor do terror corpo-psíquico.”.
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Os números são evidentes. Temos um Estado que prende e mata de modo contundente e agressivo negras e negros. Em 2012, 173.536 dos presos no país eram brancos e 295.242, negros. Neste mesmo ano, enquanto 9.667 brancos morreram por armas de fogo, outros 27.638 negros perderam a vida da mesma forma. O Estado brasileiro tem então uma postura violenta e paradoxal com relação à população preta. Silvio de Almeida destaca como “temos um Estado que prende cada vez mais pessoas jovens e negros e, ao mesmo tempo, tolera a morte de indivíduos deste mesmo grupo.”.
Trata-se de uma política genocida completa, eficiente e cujo alvo é de conhecimento público. Para Samira Bastos, especialista no debate sobre jovens em situação de conflito com a lei no Brasil e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, “você mata uma parte, prende a outra, e aqueles que seguem a regra do Estado capitalista são oprimidos. Você vai ser oprimido de qualquer jeito. É isso que sobra pra juventude negra.”.
Mais do que dados alarmantes que comprovam esse genocídio, temos tendências desastrosas. A Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR, demonstra como há uma crescente nos últimos anos com relação ao encarceramento da população negra. A Secretaria destaca os dados publicados em junho de 2014 pelo Ministério da Justiça por meio do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, Infopen. Há “um hiperencarceramento no Brasil, um crescimento de 161% no total de presos desde 2000 e um número absoluto de 607.731 pessoas presas. O perfil majoritário é o mesmo apontado pelo Mapa do Encarceramento, 56% jovens entre 18 e 29 anos e dois em cada três detentos são negros.”.
Redução da Maioridade Penal
O ódio racial e o instinto assassino do Estado se retroalimentam. Mesmo frente uma situação caótica, o legislativo nacional, encabeçado pela figura de Eduardo Cunha, PMDB, deseja implementar a PEC 171 e reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. A SEPPIR enxerga tal medida como “mais uma alavanca dessa violência, que terá como efeito o aumento do encarceramento no país e, dessa forma, se sofisticará este que é mais um dos vários mecanismos de execução do racismo no Brasil.”.
O cerne da política genocida da PEC 171 está na ampliação do alvo. A juventude negra, com a aprovação da medida, passaria a sofrer a mesma violência imposta a homens e mulheres de pele preta. Silvio de Almeida explica como a redução da maioridade penal “apenas tornará lícito aplicar aos jovens negros o mesmo tratamento e os estigmas que já eram dispensados aos adultos negros inseridos no sistema prisional. Trata-se de um alargamento e de uma nova organização do racismo institucional.”.
Gabriela Vallim, jornalista e articuladora de Itaquera, São Paulo, do programa Juventude Viva da Secretaria Nacional de Juventude, completa a visão de Silvio de Almeida e enxerga a redução da maioridade penal como “legalizar o que a polícia já faz”, que é cercear a liberdade e a vida do jovem negro, seja por meio da prisão, ou da morte”.
Sistema Carcerário
O sistema carcerário brasileiro não tem como receber essa juventude de modo devido. Para Silvio de Almeida, os presídios “não têm condições sequer de receber a demanda atual.”. Mais do que isso, Gabriela Vallim detalha a situação e apresenta como em São Paulo, Estado com maior número de presos, há “250 mil foragidos e as cadeias já estão superlotadas. Se prendesse todos os foragidos, já não teria lugar para prender todas essas pessoas. Reduzindo e prendendo mais gente, onde vai se colocar?”.
Mais do que uma série de foragidos, o Estado brasileiro têm um grande contingente de pessoas que estão presas sem julgamento. Tâmara Terso, Secretária-Executiva do Conselho Nacional de Juventude, explica como “cerca de 38% dos que estão encarcerados hoje nas cadeias tradicionais, eles são presos provisórios. Não tem nenhuma perspectiva de que o seu caso seja apurado pela polícia e pelo sistema judiciário. Então, nós temos um conjunto grande de presos que não sabem porque estão presos.”.
A lógica é a seguinte. Temos um sistema carcerário sem qualquer condição para receber um grande contingente, assim como uma justiça ineficiente e seletiva, pois, como já fora apontado por Silvio de Almeida, esse Estado é mais severo quando o negro comete o crime e omisso quando o negro é a vítima.
Genocídio
Deste modo, é impossível não relacionar e não enxergar o encarceramento em massa como mais uma das faces do genocídio da população negra. Enedina Alves explica como “tanto as penitenciárias, quanto cadeias ou Fundação Casa aparecem, neste contexto, não apenas como espaço de enclausuramento, mas também como a reiteração de uma ideologia de desumanização, exploração e morte física e simbólica do corpo negro.”. Samira Bastos completa e expõe como não há uma intenção de ressocializar o jovem, mas sim o exterminar. “A medida de privação de liberdade não tem a mínima intenção de reeducação, muito menos o sistema prisional. Lá sim, se concretizará a completude do genocídio da juventude negra. É terminar mesmo o serviço.”.
E a política genocida do Estado brasileiro não tem fim. Para Tâmara Terso, “parece que, parece não, é certeza que a intenção dessa bancada conservadora que está dominando hoje o congresso não é de arrumar a casa e reajustar os mecanismos para que a gente consiga dar um freio nessa política de segurança pública do Estado que é genocida. A verdade que está colocada é um aprofundamento disso se depender da opinião dos deputados e das deputadas da câmara federal”. Além da redução da maioridade penal, Tâmara Terso cita outras duas decisões tomadas pela câmera federal que intensificam a política genocida brasileira. Não revogar os autos de resistência, artifício utilizado pela polícia para legitimar a morte de jovens negros, assim como pleitear a revogação do estatuto do desarmamento. “A revogação do estatuto do desarmamento é uma pauta forte no congresso.”.
Desdobramentos para a população negra
Essa política genocida já apresenta inclusive significativos desdobramentos na composição da população brasileira. Samira Bastos compara a nossa situação a de países em guerra e conclui. “O número do genocídio da juventude negra já tem déficit populacional, em especial os jovens das classes mais pobres. Na próxima geração, haverá uma defasagem muito maior de homens. Em termos estatísticos tende a uma extinção dessa juventude a cada dia com um agravante mais significante. Essa geração já tem um déficit de homens.”.
Dentro desse quadro genocida, a redução da maioridade penal promete tirar mais cedo a vida do jovem negro. Gabriela Vallim aponta como “pesquisas mostram que é aos 19 anos, um ano depois do jovem atingir a maioridade penal, que ele é morto. Então, ao reduzir a maioridade penal, ele só vai morrer mais cedo. Se ele morria aos 19, agora ele vai morrer aos 17”.
A SEPPIR amplia a visão sobre as consequências. Mais do que exterminar negras e negros, a redução da maioridade penal deve atingir a juventude negra dos mais diferentes modos. A Secretária destaca como a redução pode permitir um precoce contato por parte dos jovens com bebidas alcóolicas e armas, assim como entrar mais cedo no mercado de trabalho. Todas essas medidas podem vir a “gerar um impacto sobre a saúde e a previdência”. A SEPPIR elenca inclusive como os jovens poderão adquirir mais cedo a habilitação e assim se tornarem aptos a dirigir, o que pode gerar um aumento no número de acidentes de trânsito. Há também o medo de, nos esportes, aumentar a “fuga” precoce de craques para outros países. Isso sem contar que a redução descaracterizará o que definimos hoje como abuso e exploração sexual.
Gabriela Vallim acredita que a redução da maioridade penal pode expor mais o corpo da mulher, afinal, o que acontece com uma menina de 18 anos estuprada e responsabilizada pela violência que sofrera deve passar a acontecer com maior intensidade com a menina aos 16 anos. A redução é encarada como a tentativa do Estado de responsabilizar as adolescentes pela situação vulnerável a que estão expostas.
Por isso, Gabriela Vallim destaca a importância da união do movimento negro e dos movimentos sociais para barrar a PEC 171. “Papel dos movimentos sociais e do movimento negro é de unificar por aqui essa pauta da direita, essa pauta totalmente fascista para que não nos destrua enquanto povo, principalmente nós enquanto comunidade negra que já vem sofrendo com histórico de morte, histórico de negação de direitos, com histórico de abuso de poder por parte da supremacia branca.”.