Ainda que os dois mandatos do ex-presidente entre 2003 e 2010 e pré-candidato à presidência em 2018, e atualmente preso, tenham sido marcados pela expansão diplomática, há dúvidas sobre as características das relações estabelecidas com governos de países africanos
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Texto / Pedro Borges
Imagem / Página Lula no Facebook
O Alma Preta publicou, em 27 de março, a reportagem “Lula e o continente africano: aproximação ou exploração?”, na qual abordava pontos positivos e questionáveis da política econômico-diplomática adotada durante os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) com países do continente africano.
À época, Márcio Farias, doutorando na PUC-SP sobre imigrantes africanos no país e educador do Museu Afro-Brasil, faz ressalvas à aproximação com o continente e alguns pontos ressaltados por ele foram ressaltados na reportagem.
Confira a seguir, em caráter integral, a entrevista concedida por ele à equipe do Alma Preta.
Alma Preta: O que se pode dizer sobre mudanças e permanências na relação do Brasil, durante os governos do PT, com o continente africano?
Márcio Farias: Os governos Lula e Dilma têm uma característica voltada a propor um projeto neodesenvolvimentista apoiado em eixos não tradicionais no campo das relações internacionais. Talvez a melhor caracterização desse período [seja relativo às] políticas Sul-Sul do ponto de vista da geopolítica internacional desse período.
Em linhas muito gerais, nós estamos falando de um processo de internacionalização da burguesia nacional, com setores estratégicos, nas alianças propostas pelo PT. Então, é nesse contexto que o Brasil estende a sua relação ao continente africano na medida em que nós temos nos anos 2000, período do lado de cá do Atlântico, de chegada ao poder do PT e dessa proposta; e do outro lado do Atlântico, aquilo que se convencionou como o “Milagre Africano”. O conjunto de conflitos e guerras civis começou a diminuir, ainda que esses conflitos existam, mas há um fenômeno a ser estudado sobre o crescimento significativo da economia africana, sendo em algumas regiões superior à média mundial. Além de ser um terreno e região de riquezas com recursos naturais significativos, o continente tornou-se naquele período um mercado em expansão a ser explorado.
Os governos do PT, muito atentos ao dinamismo do mercado internacional, tentaram projetar nesse nicho de mercado em expansão um projeto de parceria em médio e longo prazos, o que tornaria o país menos dependente da relação Sul-Norte. O PT, muito atento internamento ao debate da história do continente africano, no que diz respeito às lutas pela independência, até pelo fato de a militância negra mais antiga ter atuado nesses campos de interface entre Brasil e África, [transformou] esse cenário complexo conforme a relação do partido com o continente africano, com a ampliação de parcerias significativas com [grande] número de países e as aberturas de embaixadas em países onde a parceria era minúscula outrora.
AP: O que pode ser dito sobre a relação da população negra no Brasil e no continente africano?
MF: Em médio prazo, [a consequência direta seria] o maior intercâmbio com o continente em nível de trocas materiais e imateriais que subsidiariam uma plataforma em que certos mitos positivos e negativos seriam desfeitos. Como consequência direta, seria o [aumento do] fluxo migratório.
Esperava-se pelos fluxos migratórios de estudantes e de comerciantes, mas foi nesse período também quando eclodiram a crise nos EUA e na Europa e as políticas de austeridade. Com isso, o país passa também a se tornar destino de um contingente significativo de africanos oriundos dos mais variados países e, desse modo, a relação se daria nesse campo.
AP: Como se dá a relação de mercado entre o Brasil e os países africanos?
MF: Quem foi à África objetivamente não foi a população negra ou o movimento negro. Quem foi à África foi a burguesia nacional, que como qualquer burguesia, o fez para produzir de linha – leia-se explorar. É assim que se produz de linha, ou seja, a partir da exploração da força de trabalho e de recursos.
De forma geral, o discurso do movimento negro serviu como instrumento e justificativa para a ida da burguesia nacional ao continente africano. A burguesia poderia justificar a sua ida porque “o Brasil tem herança histórica com o continente africano e, por isso, precisava conhecer a si mesmo e restabelecer conexões”.
Ao levar-se em consideração que a África estava em processo de desenvolvimento e precisava construir uma indústria de base e consolidar infraestrutura de estradas e aeroportos, os setores da burguesia nacional, sobretudo da construção civil, mas também a indústria do entretenimento e as mídias nacionais, sobretudo a televisiva, também se estabelece no continente africano, com destaque para Globo e Record. A música brasileira também muito presente nesse período. Era preciso haver infraestrutura e superestrutura dialogando para a efetivação desse processo todo.
É fato que o Brasil que chegou ao continente africano é o Brasil burguês. Trata-se de setores da burguesia nacional que apoiavam o projeto petista e que se agraciariam com essa conexão. Logo, não foi o movimento negro, muito pelo contrário.
AP: Pode-se dizer então que o Brasil teve postura ligada ao imperialismo durante os governos do PT?
MF: Creio que não seja possível utilizar o termo imperialista para não o desgastarmos. O Brasil não tem condições ou vocação para ser imperialista. Talvez se trate de sub-imperialismo, tal qual a teoria da dependência define o sub-imperialismo.
Ainda assim, o sub-imperialismo às vezes leva a política imperialista para outra região. Mas se trata de algo secundário, ainda que a burguesia nacional, no no campo do seu território, compense essa depreciação no campo da política internacional.
Trata-se, de fato, de um voo de uma ave de rapina que almejava se consolidar no plano internacional. Lula reiteradamente diz, como esta semana na entrevista que ele deu à Folha de S.Paulo [em março de 2018], que os governos do PT eram aqueles que se propunham à conciliação e que burguesia e proletariado ganharam.
A relação do Brasil no campo internacional: essa frase é muito a lapidar, pois alguns preços precisavam ser pagos para o Brasil se inserir na nova ordem mundial e transitar para se tornar em décadas uma potência, a ponto de ocupar uma cadeira de Segurança no Conselho da ONU. Ela é muito importante. E os pedágios têm a ver com o Haiti e com certos empréstimos feitos internacionalmente.
Mesmo assim, a gente pode ressaltar uma menor interferência, principalmente nas primeiras gestões petistas, sobretudo na segunda, do FMI [Fundo Monetário Internacional], mas essa transição não poderia ser tão abrupta diante da proposta do PT. Então, a dependência crônica internacional existiu, mas o PT deu as mãos para a burguesia nacional para tentar consolidar um projeto de desenvolvimento. Você tem de jogar o jogo para tocar um projeto de calibre, mesmo com todas as contradições que isso representa, e o PT fez isso muito bem.
Em âmbito internacional, os governos do PT tiveram postura mais incisiva e agressiva, e isso postulou o legado da burguesia nacional internacionalizada, assim como a ação político-militar para se projetar enquanto não apenas como um país emergente, mas com credenciais para tornar-se um país desenvolvido.
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