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Convenção 169: tratado faz 33 anos de proteção a povos tradicionais e luta por direitos

Projeto de decreto legislativo busca tirar o Brasil da Convenção; especialistas reforçam como o marco internacional é fundamental para evitar que comunidades e povos tradicionais sejam ainda mais vulnerabilizados

Ilustração de duas pessoas indígenas e uma negra para texto sobre Convenção 169.

Foto: Imagem: Camila Ribeiro /Alma Preta Jornalismo

27 de junho de 2022

Há exatos 33 anos, em 1989, era adotada a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, na Suíça. A Convenção impõe o direito de comunidades como indígenas e quilombolas serem consultadas sempre que previstas medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los diretamente.

Segundo o texto do tratado internacional, as consultas aos povos realizadas na aplicação da Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento sobre as medidas propostas. Além disso, as realidades, os anseios das comunidades e a participação dos povos interessados devem ser considerados durante todo o processo.

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“A Convenção 169 baseia-se no respeito às culturas e aos modos de vida dos povos indígenas e tribais e reconhece os direitos deles à terra, à biodiversidade, aos usos e costumes e a definir suas próprias prioridades para o desenvolvimento. Assegura também que participem na tomada de decisões que impactam suas vidas. Assim, os princípios fundamentais de consulta e participação constituem elementos centrais da Convenção”, explica Jaqueline Andrade, assessora jurídica popular da Terra de Direitos.

De acordo com Jaqueline Andrade, a Convenção se tornou a mais importante norma internacional sobre grupos com estilo de vida tradicional, como os indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais.

“Primeiro, por ter uma normatividade mais adequada aos sistemas jurídicos latino-americanos e, segundo, porque cria instrumentos de reconhecimento e proteção dessas populações e seus territórios, como a auto atribuição e a consulta prévia, livre e informada”, destaca a assessora da Terra de Direitos.

A Convenção começou a vigorar internacionalmente em 5 de setembro de 1991. No Brasil, passou a valer a partir de 25 de julho de 2003, após ser aprovada pelo Decreto Legislativo n° 143, de 2002. Atualmente, o tratado segue em vigência no país pelo Decreto 10.088, de 2009.

Sem a Convenção, as comunidades tradicionais e originárias seriam ainda mais violadas do que já são. Sendo que, mesmo diante da existência dela, há uma constante luta para que o direito seja respeitado.

Uma luta constante pela garantia do direito

No Brasil, há constantes violações ou tentativas de violações ao exposto no tratado internacional da OIT, o que coloca os povos e comunidades protegidas em situação de vulnerabilidade e violência. Suas terras são alvo da especulação imobiliária, da mineração clandestina e do avanço do agronegócio.

Indígenas protestando contra o desmatamento

Sem a Convenção, as comunidades tradicionais e originárias seriam ainda mais violadas | Crédito: Mídia Índia

“Em nome de um suposto ‘desenvolvimento’ os direitos dessas populações são violados. Um dos principais pontos da Convenção 169 é a obrigatoriedade de consulta e participação dos povos indígenas, tribais e quilombolas. Também é um dos direitos mais violados. Recentemente no Brasil, estamos assistindo a constantes ataques a ele pelo governo federal”, conta a professora e historiadora Silvane Silva.

Para a assessora jurídica popular Jaqueline Andrade, considerando as graves violações e ameaças que os povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais enfrentam no Brasil, com ainda mais intensidade na atual gestão federal, a consulta prévia é um instrumento fundamental diante do avanço de grandes empreendimentos e obras do setor público e privado.

Um exemplo de violação a esse direito de consulta no Brasil é o que aconteceu no município de Alcântara, no Maranhão. Um acordo entre Brasil e Estados Unidos que permite o uso comercial da base espacial de Alcântara, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019, ameaçou cerca de 800 famílias, que poderiam ser retiradas de seu território caso houvesse uma expansão da base, prevista no Acordo de Salvaguardas Tecnológicas. A decisão foi tomada sem ouvir as comunidades impactadas.

“Eles nunca fizeram consulta nenhuma. Quando implantaram a base aqui, o Brasil ainda não era signatário da Convenção 169. Mas mesmo depois que o Brasil assinou, foi muito desrespeitado. A ameaça [de remoção] persiste na medida em que não titulam o território étnico quilombola, que nós já temos todos os pré-requisitos”, pontua Fátima Diniz, uma das coordenadoras do Movimento das Mulheres de Alcântara (MOMTRA).

Com o acordo, o Brasil passaria a receber recursos para investir no desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro. Entretanto, uma pressão do movimento negro e das comunidades quilombolas da região impactada fez com que a Comissão do Senado dos Estados Unidos da América (EUA) vetasse o repasse de verbas para o governo brasileiro remover as famílias quilombolas do território de Alcântara.

De acordo com Fátima Diniz, por conta dessa pressão dos movimentos negros tanto locais quanto nacionas e de pessoas aliadas nos Estados Unidos, o país norte-americano não vai investir recurso no acordo se houver realocação de quilombolas no Brasil.

“A luta continua aqui, as pressões continuam, sim. Para esse acordo de salvaguarda nós conseguimos esse respaldo com o congresso estadunidense, mas quem garante que vai ser cumprido aqui no Brasil? Nós estamos sempre de prontidão, essa é a questão. Não somos contra o avanço tecnológico, somos contra a expansão do território que penetra nas comunidades”, comenta a integrante do MOMTRA.

As lideranças do Território Étnico Quilombola de Alcântara chegaram a construir coletivamente, ainda em 2019, um Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (CCPLI) para nortear a atuação do Estado brasileiro no processo de desenvolvimento nacional, regional e local que afeta os direitos das comunidades quilombolas da região.

Mulher negra quilombola

Mesmo com a Convenção 169, Brasil segue não respeitando direito de consulta | Crédito: Lizely Borges

Jaqueline Andrade pontua que a importância da Convenção 169 também se verifica quando vários empreendimentos que afetam povos e comunidades tradicionais são barrados por não cumprirem com a etapa legal do consentimento dos povos interessados.

Um exemplo é a recente recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos que pede a suspensão das audiências públicas do Projeto Santa Quitéria e a suspensão do licenciamento ambiental do empreendimento, que prevê a exploração de urânio. Há observações de que o projeto violou o procedimento de consulta e consentimento prévio aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais afetadas.

Também recentemente a Justiça Federal de Itaituba, no Pará, determinou que o governo do estado mantivesse suspenso o processo de concessão do licenciamento ambiental do terminal portuário da empresa Rio Tapajós Logística (RTL) até que a consulta prévia, livre e informada aos povos Munduruku fosse realizada.

“A Convenção 169 da OIT é o primeiro instrumento jurídico internacional que reconhece os povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais como sujeitos de direito, por isso sua manutenção é de fundamental importância. Devemos exigir não apenas a sua permanência, mas lutar pela garantia de meios a sua real implementação”, destaca a historiadora Silvane Silva.

Ameaça tramitando no Congresso

Há um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) n° 177/2021 tramitando no Congresso, de autoria do deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), que permitiria ao presidente Jair Bolsonaro denunciar a Convenção 169 e retirar o Brasil do tratado.

“Este PDL segue a lógica do governo federal de desmonte de conquistas históricas na área de direitos humanos. Sua aprovação seria um enorme retrocesso e uma vergonha para o país. Se hoje, com o tratado em vigor, assistimos a constantes violações de direitos e ao genocídio dessas populações em nosso país, imaginemos como seria se não houvesse legislação protegendo”, ressalta a historiadora Silvane Silva.

A assessora jurídica popular Jaqueline Andrade ressalta que há grandes desafios no que diz respeito ao cumprimento das diretrizes da Convenção nº 169 da OIT no Brasil. Dentre eles, estão os direitos de propriedade e de posse para as populações que tradicionalmente ocupam a terra.

“O reconhecimento deste direito pelo Estado brasileiro está longe de ser realidade para muitas comunidades, principalmente considerando o total sucateamento dos recursos e instituições públicas para a demarcação e titulação das terras indígenas, quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais na atual gestão. Tanto que o descumprimento sistemático da Convenção 169 pelo Estado brasileiro foi objeto recente de denúncia de organizações para a OIT”, explica.

“Com certeza, se não existisse a Convenção 169, povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais estariam ainda mais vulnerabilizados. Apesar das constantes violações, a existência da legislação permite que as lideranças possam denunciar e buscar apoio e proteção. Sabemos que isso é muito pouco, o Estado brasileiro precisa avançar e garantir de fato os direitos desses povos. A Democracia brasileira precisa existir para toda a população do país e isso, infelizmente, ainda não é um fato”, finaliza Silvane Silva.

Posicionamento

Em nota, o Consórcio Santa Quitéria, formado pelas Indústrias Nucleares do Brasil – INB e Galvani, aponta que não há terras indígenas homologadas ou comunidades quilombolas nas áreas de influência do Projeto Santa Quitéria.

“O EIA/Rima – Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – define três tipos de áreas de influência: Área Diretamente Afetada (ADA), onde ocorrerá a instalação do Projeto; Área de Influência Direta (AID), que inclui os municípios de Santa Quitéria-CE e Itatira-CE; e a Área de Influência Indireta (AII), que inclui os municípios de Madalena-CE e Canindé-CE. Em nenhuma dessas áreas, segundo a Funai, o Incra e a Fundação Palmares, há terras indígenas homologadas ou comunidades quilombolas, conforme diagnóstico apresentado no EIA-Rima. Mesmo assim, a cultura e tradições dos mais diferentes grupos locais serão sempre respeitadas pelo Consórcio Santa Quitéria”, pontuam. 

Leia mais: Qual o caminho da titulação de terras quilombolas no Brasil?

*Texto atualizado em 29 de junho de 2022: foi incluído o posicionamento do Consórcio Santa Quitéria.

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