As mulheres negras são significativas no eleitorado brasileiro, mas a mídia do país parece não querer saber muito delas
Texto / Gabrielly Oliveira
Edição / Simone Freire
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Foi o primeiro debate entre presidenciáveis mediado por uma mulher negra. A presença de Joyce Ribeiro na linha de frente da discussão eleitoral na TV Aparecida tornou-se um momento histórico no enfrentamento ao racismo institucional em “sete décadas” de televisão no país. Se a euforia tomou conta, também ficou evidente o ambiente excludente que é a televisão brasileira.
Quero falar sobre meu incômodo no jornalismo, já que a TV não é uma exceção. É época de eleição e, se por um lado não temos propostas consistentes dos candidatos sobre como pensam em melhorar a vida das 55,6 milhões de mulheres negras brasileiras (somando as autodeclaradas pardas e pretas), por outro, temos um sistema de empresas de comunicação que ignora que representatividade é importante sim!
Entre aquelas pessoas que votam e aqueles que querem ser eleitos, existe o papel daquelas pessoas que ficam no meio e escolhem o que vai ser notícia ou não, assim como o que será omitido e o que será destaque ou apenas algumas linhas no rodapé do jornal, da revista. Quem são essas pessoas que escolhem o que eu, jovem negra e periférica, vou ler, ouvir ou assistir?
Somos mais da metade da população brasileira e uma parcela importante do eleitorado. No entanto, somos – entre homens e mulheres negras – apenas 23% dos profissionais de comunicação no país, segundo o “Perfil profissional do jornalismo brasileiro”. 72% dos jornalistas são brancos. Os dados são de 2012 e pertencem a Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O reflexo desta realidade a gente vê no dia a dia. No que poderia ser mais um dia normal entre os cliques no Facebook, a notícia sobre o time de colunistas da Revista Piauí me chamou a atenção. E por que? A grande maioria dos críticos e ditos entendedores da política brasileira, segundo a revista, são homens, brancos e da classe média. Nenhum deles era um homem negro, muito menos uma mulher negra. Apenas alguns dias depois – e muito provavelmente pela má repercussão da ausência de caras negras e de mulheres – a revista incluiu em seu time mais duas pessoas: uma mulher nordestina, a jornalista Fabiana Moraes, e uma mulher negra, a pesquisadora Suellen Guariento.
Não somos racistas, olha lá a Glória Maria
A maioria da população brasileira não está representada nos lugares de poder e a comunicação, como os dados mostram, é um desses lugares. Se levamos tão a sério a suposta imparcialidade ou universalidade do jornalismo, qual a explicação para não ter nenhum cientista político, jornalista ou provocador negro ou negra falando sobre política na revista? Isso é lamentável. E é comum dentro das redações. Preto e preta é “um ou outro”.
Se somos tantas no país – e podemos decidir a eleição – e tão poucas dentro das redações, como garantir que as pautas que realmente importam a nós, mulheres negras, sejam, de fato, levadas em consideração e debatidas?
Recém chegada ao jornalismo, eu fui conversar com algumas mulheres do campo para saber o que elas achavam sobre isso. Conversei com Rosane Borges, jornalista e professora colaboradora do Curso de Especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP (Universidade São Paulo). Ela me disse que “a gente interfere no mundo, mas quando a visão é única, se a visão continuar sendo tão branca e masculina, não conseguimos sequer conhecer o mundo como ele é em suas complexidades”.
Na minha família, a maioria das pessoas são negras e mulheres, e a maioria vota. Eu comecei a votar com 16 anos de idade, não precisava, mas queria me sentir parte daquele fuzuê todo. Antes disso, gostava de ir com a minha avó na urna, digitar o número de algum santinho e ouvir o “pirilili” depois de apertar o botão. Desde que me entendo por gente, meu pai é cabo eleitoral de partidos como DEM (quando era PFL, inclusive), MDB e PSDB – até porque eles pagam bem.
A tevê sempre ficava ligada, o horário eleitoral gratuito era um momento importante, mas os jornais também. Fiquei pensando sobre esta “visão única e masculina” na tv. Talvez as futuras gerações de meninas negras da minha família poderiam se sentir mais capazes estar no jornalismo, ou mesmo na política, se o ambiente da comunicação e lugares de poder fossem mais representativos e tivesse um número que fosse proporcional à sociedade. Quem sabe isso tornaria minhas sobrinhas mais próximas desses lugares.
“A não representatividade é apenas um reflexo desse racismo institucional. O corpo negro não é bem aceito em diversos ambientes, inclusive no jornalismo”, Suellen Guariento
Entre as publicações dos primeiros escalados a colunistas na Piauí, apenas dois abordaram a questão do racismo e eleições: Lucas de Abreu Maia, fazendo uma comparação do Brasil com os EUA, e José Roberto de Toledo, ao prestar homenagens a Marielle Franco. Nenhum dos outros abordou raça e gênero, nem nada disso, até o momento em que fiz esta pesquisa.
Conversei com a Suellen Guariento, que é doutoranda em Ciências Sociais, e que começou a tocar a coluna na revista aos domingos. Ela tem feito a diferença com temas pertinentes na luta antirracista e contra o machismo. Ela defende que o repórter é alguém que ocupa um lugar social. Que pode ser um lugar de privilégio, mas também pode ser um lugar marcado pela desigualdade, pela subalternidade. E que é necessário começar a discutir a imparcialidade na imprensa.
“A posição que o jornalista ocupa é determinante e influencia diretamente no recorte da cobertura. (…) Só tem regime de autoridade de fala o repórter branco que tá na redação? Não. Uma ativista, uma mulher negra periférica também pode e deve estar nos espaços de produção de conteúdo sobre processo eleitoral e temas afins”, afirma.
Não somos todas iguais, somos plurais e com particularidades. Mas temas como o racismo dificilmente passariam despercebidos e tomariam um outro patamar de discussão. A nossa ausência dentro das redações, e a nossa ausência dentro das discussões e coberturas das eleições, torna o jornalismo e os grandes veículos de comunicação racistas, uma vez que perpetuam uma única visão de mundo, a visão excludente que garante a manutenção das mesmas estruturas de poder.
“A individualização do racismo é um grande problema, ele ainda é tratado como um fruto de ação individual, um episódico”, Rosane Borges
Eu queria muito que a gente conseguisse criar um contraponto a isso, que reuníssemos jornalistas e cientistas políticos negras e negros e que conseguissem colocar em circulação ideias que levassem em conta a realidade do racismo, da nossa vida, do que nos importa, e não apenas a suposta imparcialidade e “universalidade” branca na leitura sobre a política nacional.
Mas então branco não pode falar de racismo?
Assim como negro não fala só de racismo, branco também pode falar sobre o assunto. Esta questão fez parte da minha conversa com Rosane Borges, que me pontuou que brancos não só podem, como devem falar de racismo. É obrigação de uma sociedade como a nossa, que todo mundo tenha responsabilidade de falar de racismo, sexismo, homofobia, transfobia.
Mas também é preciso entender o por quê falamos de representatividade. “O jornalismo é uma profissão de classe média urbana branca, e essas pessoas foram formadas a partir de um ideário, de um imaginário que não tomou o racismo como uma questão que estrutura a desigualdade no Brasil”, me disse Rosane.
Gabrielly Oliveira é estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e da Escola de Jornalismo Énois.