O racismo está presente na área da Saúde e é um dos principais temas lembrados na campanhas eleitorais. Com atuação nas periferias, estes três médicos negros explicam a importância a Saúde no Brasil e a perspectiva da Saúde Integral da População Negra como proposta para a área
Texto / Solon Neto
Imagem / Agência Brasil
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Com as chapas presidenciais já definidas pelos partidos, já tiveram início as campanhas dos candidatos à Presidência nas eleições de 2018.
Com isso, as propostas com as quais os candidatos e candidatas trabalharão já são de conhecimento público, através de seus programas de partido.
O Alma Preta já discutiu a questão da Segurança Pública com respeito aos interesses da população negra e pobre ouvindo dois especialistas no assunto.
Desta vez, o tema é a área da Saúde. Apesar de ser um conceito amplo, ouvimos Com atuação nas periferias, estes três médicos negros que explicaram práticas e políticas que podem mudar o quadro da saúde pública no Brasil.
“O racismo é uma determinante social de saúde”
“O dado que a gente tem é este: 67% dos usuários do SUS são negros. Defender o SUS é defender o acesso e a saúde da população negra. A partir do momento que a gente defende e é contrário ao desmonte da saúde pública, a gente precisa ter a total consciência de que a defesa desse sistema de saúde de uma forma adequada, com investimentos e com avanços, atinge um público-alvo bem específico.”
Foi desta forma como Monique França, de 29 anos, abriu a entrevista. A jovem médica é exemplo de uma geração de jovens negros conscientes que acessaram a universidade. Moradora de Vila Isabel, Rio de Janeiro, ela nasceu e foi criada na famosa Cidade de Deus, onde faz residência como médica de família na comunidade do Jacarezinho.
Monique participa do coletivo chamado NegreX, que reúne médicas e médicos negros ao lado de estudantes de medicina.
No coletivo, Monique atua em grupos de trabalho específicos, voltados à saúde da população negra e da família, ao mesmo tempo em que ela está envolvida na área de racismo e saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).
“81% das internações no SUS são de pessoas negras. O racismo é uma determinante social de Saúde e tem impactado a população negra de forma nefasta”, ressalta Cleber da Costa Firmino, também integrante do coletivo NegreX. Ele formou-se na Escola Latino Americana de Medicina, em Cuba, e revalidou seu diploma na Universidade Federal do Mato Grosso. Pós-graduado em psiquiatria, Cleber atua na área dentro do setor de atenção primária especificamente em áreas de vulnerabilidade na cidade de São Paulo.
Diante do cenário, assim como Monique, ele entende que o SUS é primordial na mudança dos indicadores de saúde no Brasil, principalmente da população negra. Ele enfatiza que a mortalidade materna das mulheres negras é sete vezes maior do que a das mulheres brancas e que as crianças negras menores de 5 anos têm 60% mais chances de morte por doenças infectoparasitárias.
Além disto, as crianças negras, aponta Cleber, a mortalidade por tuberculose é 3 vezes maior do que no caso das crianças brancas.
“É necessário e fundamental haver a aplicação de políticas públicas nesse sentido, porque a legislação do SUS baliza que as políticas públicas devem ser baseadas na epidemiologia e o nosso povo apresenta os piores indicadores de Saúde”, aponta Cleber.
Já Amanda Arlete Ribeiro Firmino, de 30 anos, médica de família e comunidade em São Paulo e formada na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, enfatiza que até na hora do parto, as mulheres negras sofrem tratamento diferenciado. E o que a médica denuncia é algo que o movimento negro aponta com frequência.
“As mulheres negras são menos anestesiadas para parto normal do que as brancas porque os profissionais tendem a achar, por exemplo, que elas suportam mais a dor do que mulheres brancas. E isso é racismo institucional”, explica.
A perspectiva de que não só os negros são maioria no número de usuários do SUS, como também apresentam os números mais preocupantes em relação à saúde, é uma forte evidência do projeto brasileiro em relação à população negra, apontam os três médicos. Isso se estende à precarização de serviços públicos de saúde.
“A gente não pode achar que, por acaso, o SUS sempre teve processo de sucateamento”, ressalta Monique França. “É porque ele atende a um público específico.” Nesse ponto, Monique refere-se à universalidade do sistema, ou seja, à premissa de atender a todas e a todos.
Negros e pobres são a maioria dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Nascido em 1988, o SUS é considerado um exemplo de financiamento público de saúde mundo afora e atende a todas as pessoas que necessitarem do serviço dentro do território nacional.
O sistema, que é abrangente por natureza, busca justamente atender às pessoas que não teriam como pagar por um serviço de saúde de qualidade: os mais pobres. No entanto, sua estrutura tem sido prejudicada pela políticas federais.
Perspectiva pessimista ronda o orçamento da saúde pública
Em 2001, o Brasil tornou-se signatário de um importante documento internacional de combate ao racismo durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. Na resolução, da qual participaram os países reunidos no encontro promovido pela (ONU) em Durban, na África do Sul, solicita-se a “concentração de investimentos adicionais nos serviços de saúde, educação, saúde pública, energia elétrica, água potável, controle ambiental, bem como outras iniciativas de ações afirmativas ou de ações positivas, principalmente, nas comunidades de origem africana.”
No entanto, o estímulo a este tipo de investimento, incluindo a área da Saúde, tem sofrido ameaças diante da política radical de cortes de gastos no governo de Michel Temer (MDB).
O SUS, considerado uma conquista popular brasileira, apesar de suas deficiências, está previsto na Constituição brasileira como um sistema que garante serviços de saúde no Brasil. A Constituição aponta como dever do Estado a garantia da saúde em seu artigo de número 196:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Segundo consta na carta magna, assim como nas Leis Orgânicas da Saúde, o acesso aos serviços do SUS deve ser universal.
A Constituição estabelece também valores de investimento, como no artigo 198, que aponta para a União o gasto mínimo de 15% da receita corrente líquida do exercício financeiro, ou seja, de todos os gastos previstos para a máquina pública no decorrer de um ano. Esse valor mínimo foi apontado em 2015 por meio da Emenda Constitucional nº 86.
O problema é que o gasto no setor de saúde pode começar a diminuir a partir do ano que vem devido ao teor da Emenda Constitucional nº 95, que estabelece teto de gastos do governo baseados no ano de 2017. A emenda dura 20 anos e só poderá ser revista a partir do décimo ano de vigência.
A medida faz parte da agenda do atual governo do MDB, orientada pelo documento “Ponte para o Futuro”, divulgado ainda em 2015, no qual são ressaltados valores de austeridade, ou seja, que anunciam cortes do orçamento público com a intenção de melhorar as contas do governo. Isso, na prática, diminui também investimentos do governo em áreas de interesse público. Em um trecho do documento já era possível prever o que se pretendia sacrificar em prol do “equilíbrio das contas públicas”:
“Para isso é necessário, em primeiro lugar, acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação, em razão do receio de que o Executivo pudesse contingenciar, ou mesmo cortar, esses gastos em caso de necessidade. No Brasil, o orçamento não é impositivo e o Poder Executivo pode ou não executar a despesa orçada”, o que adiante é ressaltado com outras afirmações.
O governo Temer vem anunciando cortes em áreas de interesse social, também no caso da educação, que recentemente foi abalada com a possibilidade anunciada pela Capes do não pagamento de milhares de bolsas na pós-graduação a partir de 2019. Essa situação, portanto, coloca em risco diretamente as populações que mais carecem de investimento público: os pobres e negros.
Política de austeridade do governo de Michel Temer coloca saúde da população negra em risco (Imagem: Agência Brasil)
O que é Saúde Integral da População Negra?
Para o SUS melhorar, a médica e ativista Monique França sugere que haja maior atenção em alguns pontos com os quais ela mesma vem trabalhando, pensando a saúde de forma preventiva e presente diretamente nas comunidades e famílias.
“Ele [o SUS] foi pensado para que todo mundo tivesse acesso, mas não é isso que acontece. Uma estratégia que vejo é a ampliação da estratégia de saúde da família, que é uma forma de atenção do sistema de saúde baseado na atenção primária”, explica Monique.
“A gente precisa, primeiro, fortalecer a atenção primária, realmente com unidades de saúde capacitadas e profissionais de saúde capacitados – médicos, enfermeiros e equipes de saúde da família – e pessoas que consigam lidar e que estejam capacitadas para lidar com a saúde da população negra em todos os seus aspectos”, enfatiza Amanda.
Ela aponta que tal capacitação, assim como explica Monique França, seria uma forma de reconhecer a diferença existente entre negros e brancos no país. Isso seria uma forma de garantir atendimento adequado, seguindo os preceitos da saúde integral, que leva em conta o entorno.
“A maioria das pessoas acha que não há nenhuma diferença entre o paciente branco, negro ou não-branco, enfim, sendo que na verdade é isso: o racismo é um determinante de saúde. Se a pessoa sofre racismo, ela tem uma chance maior de adoecer e toda pessoa negra no Brasil sofre de racismo”, explica Amanda.
Neste formato, a atenção primária seria haver uma porta de entrada para o sistema de saúde, garantindo assistência permanente.
“A figura da equipe de saúde da família é fundamental. Não só do médico de família, mas do enfermeiro, do agente de saúde, da equipe de saúde bucal, do NASF, o núcleo de apoio de saúde da família, que vai ter psicólogo, fono[audiólogo], assistente social, fisioterapeuta, nutricionista, educador físico… É uma forma de estender [o sistema]”, acrescenta a médica Monique França.
No entanto, apesar da extensão apresentada por este modelo, a médica alerta que a medida não deve parar por aí, pois mesmo com assistência bem gerenciada e ampla, como a que ela descreveu, não basta se não vier acompanhada de formação contra o racismo, especificamente, “uma lógica de saúde integral da população negra”.
Aqui, Monique se refere à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Lançada em 2017 como documento oficial do Ministério da Saúde em conjunto com Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a política apresenta uma série de diretrizes, estratégias e diagnósticos para a aplicação no sistema de saúde brasileiro com vista ao combate ao racismo.
“A formação médica e acadêmica reproduz… Reproduz, não! Ela produz um racismo que vai reverberar na prática. Além de ter a estrutura física e a mão de obra humana, é importante essas pessoas estarem capacitadas para atuarem nesses territórios e com essas pessoas. Senão, a gente não terá sucesso”, aponta Monique.
De fato, a medicina no Brasil teve papel ativo na formação do racismo brasileiro. Nomes como Cesare Lombroso, João Baptista de Lacerda e Júlio Afrânio Peixoto são notáveis casos de eugenistas que promoveram políticas racistas na medicina e na vida pública brasileira. Eles tiveram aval de universidades de referência, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, hoje parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Juliano Moreira, o primeiro catedrático de psiquiatria no Brasil, um cientista fantástico e com reconhecimento fora do Brasil, pouco é lembrado aqui. E ele é uma pessoa negra”, aponta Cleber. Para ele, a falta de médicos negros, assim como sua valorização, é um ponto importante no debate do racismo institucional. Cleber acredita que a subjetividade criada pelo racismo impede a formação de mais quadros negros na área.
“Em um país que tem metade da população negra, seria normal que a metade dos médicos fossem negros”, ressalta Cleber.
“É fundamental que [nós], médicos, gestores e sociedade civil, lutemos para a implementação da política integral da saúde da população negra. É necessário o reconhecimento por parte dos profissionais de saúde, principalmente o médico, de que há no Brasil um racismo estrutural e institucional”, aponta Cleber.
O reconhecimento é o primeiro passo, segundo ele, ao citar que nos institutos de formação de médicos, esse ainda é um tema inviabilizado, dando o exemplo da disputa do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), cuja eleição de chapas têm demonstrado ignorância nesse sentido.
“As chapas que têm pautado a questão da saúde da população negra têm sido ridicularizadas. Alguns perguntam por que e outros acham que é privilégio discutir saúde da população negra, e outros consideram até que quem discute esse tema é considerado ‘verme’. E isso que a gente está falando de médicos, imagine entre as outras categorias”, enfatiza.
Cleber aponta também que os médicos negros são minoria na instituição, lembrando que no exame aplicado pelo CREMESP em 2015, apenas 0,9% dos inscritos eram negros. O exame não é obrigatório, mas é considerado importante dentro do mercado de trabalho como uma prova de competência. Por isso, Cleber acredita que o voto negro se torna fundamental nessa eleição para o apoio de projetos que possam colocar em pauta essa discussão nos governos.
“Infelizmente, esse é um tema completamente ignorado pelas candidaturas. Algumas candidaturas negras já estão começando a se aproximar dessa questão da saúde da população negra e a se apropriar dos dados, e lutarão institucionalmente para a implementação da saúde da população negra”, aponta Cleber.
“A gente tem de entender o processo do racismo institucional e o combate ao racismo interpessoal, sim, mas principalmente o institucional, para poder dar conta desta demanda imediata”, afirma Monique, referindo-se à estrutura que faz permanecer o racismo no Brasil, com raiz ainda no estabelecido por nomes como os acima citados.
Para ela, é papel do movimento negro cobrar que mais médicos e profissionais de saúde negros sejam formados, assim como a instrução de política como a de saúde integral da população negra.
“Os nossos profissionais não estão preparados e capacitados para tocar em um corpo negro para além de um objeto de pesquisa, de estudo ou de um corpo que desempenha função de ser alvo de treinamento”, ressalta.
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“Saúde não é apenas ausência de doença”
Apesar disto, Monnique também aponta que os princípios dos SUS já teriam abrangência suficiente para esta prática ser observada.
“O SUS tem princípios e um dos princípios é o princípio de equidade. O princípio da equidade ele preza para que a gente possa oferecer mais a aquem precisa mais. Isso é muito diferente de igualdade. Quando a gente promove equidade a gente promove justiça e isso faz com que a gente tenha práticas não negligentes no cuidado”, afirma.
A médica da família enfatiza que esse tipo de prática não se resume a negligenciar cuidados, mas também a própria estrutura da saúde.
“A negligência vai tanto na perspectiva de você não cumprir um princípio do SUS, que é a equidade, mas também na falta de acesso à unidade básica de saúde ou a um hospital. Ou algum recurso de saúde. E recurso de saúde e a gente pode falar em vários dispositivos”, diz.
Daí vem o conceito de Saúde Integral, que englobe cuidados não só clínicos e de atendimento, mas necessidades externas.
“Não só uma UBS, mas uma praça para fazer uma academia, acesso à alimentação de qualidade, seja em um restaurante popular, saneamento básico e escolas. Tudo isso é importante para a gente garantir saúde de qualidade. Saúde não é apenas ausência de doença”, enfatiza Monique França.
Não basta haver médicos negros
Para a médica, a formação de mais médicos negros é importante, mas assim como no caso dos médicos brancos, deve ser acompanhada de um processo educacional adequado.
“O impacto da formação de médicos negros tem importância, mas a gente não pode se deslumbrar, pois a representatividade esvaziada de consciência não adianta de nada. Posso muito bem me formar e não ter consciência racial bem estabelecida e reproduzir todas as práticas que um curso médico pode ter”, aponta.
Monique lembra práticas que vêm em consequência disto, como a violência contra mulheres negras baseada em estereótipos. É o caso da negligência com anestesias em partos e outras práticas médicas, ou a ausência do toque no atendimento.
“O não avanço em políticas públicas e o não investimento no SUS são outras modalidades de genocídio. A partir do momento que você cerceia uma população de receber atendimento em saúde de forma básica, não no sentido de mínimo, mas no sentido de essencial, de ser base do processo de sistema de saúde, você também está fazendo uma forma de genocídio.”