Militante desde a adolescência, aos 27 anos Flávia Hellen se tornou a primeira vereadora negra a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de Paulista, na região metropolitana do Recife. A petista começou a sua história dentro da luta por igualdade de acessos e garantia de direitos ao ver, no seu dia a dia, negligências do poder público com a população socialmente vulnerável. Tentar diminuir as desigualdades virou principal bandeira da líder dentro da esfera pública.
Filha de mãe solteira, Flávia passou a infância e adolescência na Zona Sul do Recife, mais precisamente no bairro do Ibura. Também estudante do ensino público municipal, na mesma região, começou a enxergar a necessidade de militância ao conviver com um processo de desmonte da instituição, onde não havia merenda de qualidade e, em tempos de chuva, o canal próximo transbordava, impedindo a realização das aulas. Mobilizando os colegas, conseguiu denunciar os descasos presentes e pontuar o estágio de precarização da educação básica.
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Também beneficiária de programas como o Bolsa Família, para garantir o acesso à Bolsa Escola, teria que permanecer na rede de ensino municipal. Ao fim do fundamental, ingressou na Escola Municipal em Tempo Integral Pedro Augusto, no bairro da Soledade, no Recife, onde, além de cursar o ensino médio, integrou o grêmio estudantil e continuou fazendo o elo entre as necessidades dos estudantes e as respostas da escola.
Por meio do programa Pré-Vestibular Popular, a ativista conseguiu cursar História após conquistar uma bolsa no Programa Universidade para Todos (Prouni). O ingresso no ensino superior não fez com que Flávia abandonasse sua atuação política. No mesmo período, se aproximou da formulação do Orçamento Participativo, constituiu o Diretório Acadêmico de História, integrando o Movimento de Juventude Mudança. Em seguida, assumiu cargos como Diretora de Assistência Estudantil da União Nacional dos Estudantes (UNE) e Vice-Presidenta da União dos Estudantes de Pernambuco (UEP).
Agregando sua atuação à um projeto político nacional, há seis anos é filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), a porta de entrada para que a tornou Secretária Estadual de Juventude, onde pôde atuar com pautas que dialogavam com as necessidades da população negra, periférica e LGBTQIA+.
Entre a progressão na sua atuação política, passa a residir na cidade de Paulista, onde encontrava uma problemática central que a inquietava: mesmo sendo uma cidade próxima da capital, não tinha efervescência significativa de movimentos sociais. Diante do incômodo, mobilizou ativistas locais, que resultou na fundação de um núcleo municipal da Marcha Mundial das Mulheres e da implementação do projeto Podemos Mudar Paulista, com a promoção de espaços de resistência, autoajuda, rodas de conversa, formações, atividades voltadas às comunidades locais.
Aliada às pautas que vivenciou e ajudou a construir na e com a juventude, gostaria que a história do município fosse contada por uma narrativa mais representativa. “Uma cidade com histórico de contribuição negra e periférica forte no estado, foi entregue à um bandeirante. A narrativa do povo, de origem majoritariamente periférica, era e ainda é muito contada da perspectiva da indústria têxtil, do sobrenome Lundrgen, como o restante da população não fosse importante para a formação identitária local”, pontua a vereadora.
Objetivando mudar, de alguma forma, o curso sobre os acessos nos espaços de poder no município, que Flávia Hellen, em 2020, se candidata à vereadora de Paulista e, para a surpresa de uma câmara tradicionalmente conservadora e assistencialista – segundo a própria líder política -, foi eleita como a pioneira entre as mulheres negras a ter uma cadeira na casa, com 1.361 votos.
Questionada sobre as dificuldades que enfrentou desde a campanha, passando pela vitória e, nos últimos meses, sua atuação, Flávia Hellen conversa com a Alma Preta Jornalismo aponta os desafios cotidianos, revela as pautas prioritárias demandadas por seu mandato e traz uma projeção de trabalhos a serem realizados nos próximos anos de atuação. Confira:
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ENTREVISTA
AP: Você acredita que há uma falta de apoio para candidaturas negras?
Flávia: Temos um sistema político que tem sobrenome e dinheiro. O mínimo de visibilidade que nós temos é a partir da nossa resistência contra os projetos de morte que, sistematicamente, nos é colocado. Não conheço liderança negra que tenha conseguido ser referência sem ser fruto de luta. No processo eleitoral, nossos corpos chegam cansados, fadados, em um sistema viciado, sem estrutura financeira dentro de um processo que não é barato. No caso de nós, mulheres, com muita luta conseguimos a instituição de 30% de nossa participação nas chapas e acesso ao fundo eleitoral. Entretanto, é fato de que a condução dos partidos é feita por pessoas brancas, por isso, se não tivermos o apoio de coletivos negros, de organizações que estejam na linha de frente defendendo as nossas propostas em conjunto, dificilmente teremos participação efetiva no cenário político. Estamos nos inserindo, mas estamos muito atrasados e o pouco que conseguimos foi resultado de acreditar em nós mesmos.
AP: Diante desse cenário, como você avalia o seu processo de campanha eleitoral?
Flávia: Sim! Além do que falei anteriormente, passei por um processo de solidão durante a campanha. No meu partido, não era tida como prioridade e isso faz parte de uma lógica política do município que não conseguia enxergar a minha candidatura como forte. Essa nova percepção só foi possível quando vencemos as eleições, quando esse resultado reverberou de forma interna e externa. Para mim, serviu de exemplo que, cada vez mais, precisamos conquistar igualdade nos acessos, independente de quais sejam.
AP: Foi uma vitória a inserção da primeira mulher negra na Câmara Municipal de Paulista, um marco para a história política da cidade. Mesmo com essa conquista, quais foram e são os maiores desafios de estar nesse espaço?
Flávia: Para mim, o principal é reconhecerem que sou preta, de movimento social e isso é urgente. Sinto desprezo pela raça, pelo gênero e pela sexualidade. Das pautas que tentei submeter como prioridade a serem executadas, a Casa sempre pontuou que tinham outras mais urgentes, dizendo, nas entrelinhas, que os recortes que o mandato levanta não tem importância frente às suas prioridades. Exemplo disso foi a valorização de artistas da nossa terra, colocada em pauta em fevereiro, que garantia a participação de artistas locais em eventos abertos ao público, mas foi vetado. Assim mesmo foi com o Projeto de Lei que pretende regulamentar, na administração pública, o direito do nome social. Pauta rejeitada, não chegou nem a ser colocada em votação. A própria comissão responsável por receber a justificativa do projeto e discutir deu um parecer negativo, além da casa mobilizar representantes que acreditam nos ideais fundamentalistas. Na Casa, trabalhamos as pautas, organizamos e apresentamos projetos, mas há um entendimento que, políticas públicas que garantem direitos à pessoas historicamente negligenciadas terão dificuldades de serem aprovadas e sancionadas. Desafio diário, estruturante, que requer que tenhamos um constante diálogo com a sociedade civil para apresentar as problemáticas e mobilizá-los para que os representantes da casa vejam a importância das pautas.
AP: E quais pautas foram as mais ouvidas pelo mandato nessa construção de diálogos junto à população?
Flávia: Cada grupo tem suas pautas prioritárias e nós tentamos, mesmo com uma pequena estrutura, ouví-las e pontuarmos como podemos atuar diante do cenário atual. Por exemplo, na questão da saúde, Paulista teve muito problema no processo de vacinação contra a COVID-19, uma dificuldade em priorizar as vacinas em pólos que atendiam as comunidades. Sobre o desemprego, fizemos um levantamento que mais de 30 mil famílias estão vivendo com um custo de 90 reais por mês, além de estarem sem perspectiva de inserção no mercado de trabalho. Com isso, junto a um movimento nacional de mandatos progressistas, defendemos a inserção do projeto de renda básica em caráter de urgência, com apresentação do nosso mandato ao poder executivo. Já sobre raça, pensamos na Comissão de Igualdade Racial, que já foi sancionada e que vai permitir reunir movimentos juntos à nossa atuação para o monitoramento de políticas públicas voltadas à população negra no estado, além de um contato mais amplo sobre as necessidades desta população. Além disso, assinamos a agenda de compromisso legislativo Marielle Franco. Estamos, aos poucos, tentando pluralizar nossa luta.
AP: E, fazendo uma projeção para o futuro do mandato, quais são as maiores expectativas de atuação nos próximos anos?
Flávia: Nossa expectativa é de, o quanto antes, conseguirmos instituir o Estatuto de Igualdade Étnico-Racial na cidade e garantir um fundo específico dedicado às necessidades que envolvem disparidade de acessos e negligência na garantia direitos por raça.Também estamos em sintonia com o pessoal da agroecologia, apresentando um programa municipal de agroecologia urbana, atendendo os pequenos produtores, por exemplo. Fizemos um requerimento de garantias para a segurança alimentar também. E, além das que estão na luta por tramitação, temos a ciência de que as problemáticas a serem enfrentadas são várias. A falta de políticas públicas estão presentes em pontos como pavimentação, saneamento, mobilidade urbana, centro de referência que atenda vítimas de violência e creches. Só para se ter uma ideia, estamos falando de uma população que chega a meio milhão de moradores e contamos, ao todo, com cinco creches. É muita disparidade, mas seguimos na luta.