Quando tomou conhecimento sobre o que a educação poderia proporcionar, principalmente sobre a possibilidade da mudança de narrativa que estava cansado de ver e ouvir no dia a dia na comunidade do Coque, no centro do Recife, Marcone Ribeiro a agarrou como uma chave. Por anos, o jovem cruzou a favela – detentora de altos números de vulnerabilidade social, estando no topo do ranking de menor índice de desenvolvimento humano da cidade – em busca de formação e percebeu a necessidade de partilhar o que havia aprendido. O motivo? Oportunizar acessos historicamente negados para a população da periferia. Hoje, Marcone ocupa um lugar estratégico dentro da gestão da capital de Pernambuco e tenta pautar políticas que oortunizem mais jovens com histórias como a dele.
O despertar para a necessidade de criação de estratégias que viabilizassem ocupar novos espaços veio antes da percepção do poder da educação para a população marginalizada. Aos 7 anos de idade, Marcone perdeu o pai assassinado por violência armada, se tornando filho de mãe solo. Aos 9, passou a cuidar da mãe que descobriu uma doença chamada Crohn, patologia inflamatória séria do sistema gastrointestinal.
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Mais velho entre os três filhos, Marcone assume a responsabilidade de pôr comida na mesa e garantir o mínimo de renda. Contemplados pelo projeto Bolsa Família, ele e sua mãe decidiram juntar recursos do auxílio mensal e investirem na compra de uma carroça para venda de salgados na esquina da rua onde morava. O trabalho passou a assumir boa parte do tempo que poderia ser dedicado às brincadeiras e aos estudos, mas, ainda, não havia outro caminho que pudesse recorrer.
Diante das dificuldades diárias, só pôde ser criança e jovem quando teve de passar a maior parte do tempo na escola. Orientado pela mãe, Marcone entendeu que o estudo seria a porta de entrada para o sucesso profissional, oportunidade que sua genitora não teve. A educação se tornou, portanto, o ponto de esperança de uma mudança que só poderia ser proporcionada com um esforço e foco.
Graças ao apoio materno e sua própria determinação, o jovem acessou oportunidades que, estruturalmente, no Brasil, não estão ao alcance de jovens de periferia, entre elas atividades como aprender inglês, fazer intercâmbio por meio do Programa Ganhe o Mundo e ingressar em um curso superior. Longe de promover o discurso da meritocracia, Marcone conseguiu aprender e levar para o lugar de onde veio o que acumulou com a sua jornada. O senso crítico tomou forma ao cursar Relações Internacionais, e, em seguida, o jovem fundou um projeto que viabilizou a educação de crianças e jovens. Ação que, como força motriz, tinha o desejo de reafirmar a potência da juventude que tem orgulho de ser quem é e de onde veio.
Aos 22 anos, sua atuação, com três meses de projeto, rendeu o ingresso em um curso de formação na sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, aos 25, atua como Secretário Executivo da Juventude da Prefeitura do Recife, sendo um dos poucos negros presentes na gestão municipal. Para saber mais sobre a sua trajetória, atuação política, representatividade e suas ações pela garantia de direitos da juventude, a Alma Preta Jornalismo entrevista Marcone Ribeiro.
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ENTREVISTA
AP: Quando sua vivência passou a pautar sua percepção sobre políticas públicas?
Marcone: Desde muito cedo, através da minha mãe, quando entendi os benefícios de programas como o Bolsa-Família. Mesmo sendo chamado de uma política de “esmola”, foi com essa política pública que consegui comprar a minha carrocinha, o toldo, a máquina de fazer salgados e começar a vender. Além disso, a educação foi o que me fez entender mais quando, aos dezesseis anos, consegui estudar inglês pelo programa “Ganhe O Mundo”, do governo do estado, com chance de ir para fora do país. Lembro de me espelhar em Rihanna na época, inclusive, de ver uma garota preta sair do Caribe e ir pros EUA conquistar o que conquistou. Resultado é que fui o primeiro da minha escola Amaury de Medeiros, no bairro de Afogados, a viajar. Fui para o Canadá, conheci a estrutura de um país de primeiro mundo, que é referência em educação e isso me despertou muitas ideias, além do desejo de não parar de me conectar com as pessoas e dar continuidade aos meus estudos. Isso resultou na minha aprovação no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), quando fiz o curso técnico para guia em turismo e recebia bolsa de R$160,00 para alimentação e passagem, o que ajudava a me manter no curso. Em seguida, fiz o ENEM e logo após soube do Programa Universidade Para Todos, da disponibilização de seletiva para bolsas em uma universidade privada do Recife e passei no primeiro lugar para o curso superior em Relações Internacionais.
AP: Mesmo com a sua inserção em programas que possibilitaram o seu acesso e desenvolvimento junto à educação, os desafios eram constantes. Na universidade, mesmo sendo um curso superior e com maior estrutura de formação, foi desafiador estar na instituição?
Marcone: Sim. Ir para a universidade é um desafio, pois ingressar em uma instituição privada é ainda maior. Pessoas como eu se tornam a exceção nesses espaços, sobretudo em uma faculdade estruturada para elite. Enquanto meus amigos, com dezoito anos, estavam ganhando carros por terem passado no vestibular, eu pegava dois ônibus para ir e dois para voltar. Lembro de chegar em casa por volta das onze horas da noite. Isso trouxe a necessidade de colocar a minha história naquele espaço. Encarei a universidade, desde o princípio, como uma forma de garantia de emprego, eu precisava trabalhar e logo comecei a estagiar. No primeiro período, meus colegas diziam que queriam ser diplomatas e eu não fazia ideia do que era o concurso do Instituto Rio Branco. Visava trabalhar para grandes empresas para garantir renda. Era isso, inicialmente, meu foco.
AP: Acessando esses lugares de “privilégio” diante da conjuntura desigual de acessos à direitos básicos no país, você sentia uma diferenciação no tratamento por ser quem é e pelo trabalho que realizava?
Marcone: Nos espaços que acessava, eu era reconhecido como preto, da periferia, mas sempre na narrativa apontada de que eu era o diferente, que lutou para estar ali e, assim como eu, se outros jovens quisessem, apenas, também estariam. O velho discurso da meritocracia era falado e eu não concordava com isso. Sabia de vários amigos que tinham potencial de estarem onde quisessem, mas que tinham de abrir mão da educação por não terem suporte e por assumir outras responsabilidades cedo. O espaço para gente era e é hostil e esses amigos acabaram por não continuar um processo que eu continuei. Sabia que era muito injusto o discurso que eu estava, por saber explicitamente que na prática não era aquilo que se era falado.
AP: Esse entendimento te instigou, de alguma forma, a pensar em estratégias de melhorias para continuidade do processo de educação dos colegas e jovens da periferia que você conhecia?
Marcone: Sim. Comecei a refletir sobre o que e como fazer para que as pessoas ao meu redor pudessem ocupar os espaços que eu estava conseguindo estar. No meu dia a dia de trabalho eu não conseguia identificar ninguém com uma realidade semelhante a minha e isso me incomodava. O estopim foi quando trabalhei em um consulado. Pensava que cruzava a favela todos os dias para trabalhar para uma organização internacional de reconhecimento, onde eu dialogava com pessoas influentes e elas me respeitavam sem nem saber de onde eu vinha. Vi que a educação tinha permitido aquilo, que, de certa forma, havia um pequeno entendimento de que era possível a quebra de barreiras de desigualdade. Entendi que eu poderia ser tão potente quanto através do que a educação me proporcionou.
AP: E como e quando esse projeto foi colocado em prática?
Marcone: Sabia que eu tinha estudado inglês e que queria passar esse mesmo conhecimento para frente. Foi quando surgiu o “Coque Conecta”. Um projeto que eu não tinha intenção de ganhar visibilidade, mas de chegar junto aos colegas de comunidade e compartilhar o conhecimento que tive acesso. Lembro que, na época, tinha uma visão que repassava para os jovens que era de aprender a língua para sair da favela, mudar de realidade saindo do território e, ao contrário do que pensava, eles tinham o entendimento que eu tinha ido para fora, estudado em uma universidade e diante disso não se fez necessária a minha saída da periferia. Eles queriam ter os acessos, mas já entendiam que não precisavam sair de onde vinham, tinham orgulho de estarem ali. Um processo que me fez compreender enquanto indivíduo negro e periférico que teve esses acessos, sabe?
AP: O quanto essa troca direta foi importante para sua construção pessoal e desenvolvimento do “Coque Conecta”?
Marcone: Ensinei o que tinha aprendido e os jovens também me ensinaram muito. Foi uma rede de aprendizado. Foi importante para entender que enquanto eu passava a mensagem que ser periférico não limitava eles, eles me diziam que eu não precisava abrir mão de ser periférico. Construímos juntos essa narrativa. Podemos estar em universidades, sairmos do país, assumir cargos altos em empresas. O projeto acabou afinando com esse lugar, de potencializar as habilidades e as características que são nossas e que mostram que a periferia é uma potência mesmo em diversos aspectos.
AP: Mesmo orgulhoso pelo andamento do projeto, em algum momento você teve a visão crítica de que estava suprindo ações que as gestões políticas não estavam realizando?
Marcone: Sim. Esse movimento me fez enxergar um outro olhar sobre a inserção de políticas públicas. Lembro que, quando comecei a me relacionar com o poder público, era em um lugar de articulação, de pleitear espaços, lanches para os jovens, fardas, mas nunca coloquei as necessidades enquanto pedido, um favor. Chegava nas reuniões na intenção de demandar mesmo, explicando que deveria ser papel do poder público, que eu estava usando do meu tempo, do meu esforço e de recursos próprios para suprir algo que é de responsabilidade deles. De início pensava que, se não chegavam até nós, de periferia, por qual motivo eu chegaria lá? Depois entendi que estando em contato havia um maior entendimento que é preciso ser feito mais para a população de periferia e, principalmente, de forma conjunta.
AP: E quando você entendeu que era a hora de se dedicar mais ao projeto?
Marcone: Quando eu entendi que era aquilo que eu queria fazer: dar novas perspectivas aos jovens da periferia. Larguei o emprego que estava, enquanto internacionalista, para me dedicar ao planejamento de 2020 do projeto, mas veio a pandemia. Cenário difícil por ter ficado desempregado e com a preocupação do que passávamos com o projeto, que era o de dar a vara para cada um pescar, digamos assim, e que passou a ser pescar e dar para as pessoas que, durante a crise sanitária, estavam passando fome. Meus alunos do projeto me perguntaram como iam estudar sem ter comida em casa. Com ajuda, conseguimos garantir cestas básicas para trezentas famílias durante seis meses, como implementações de pias espalhadas pela comunidade para as pessoas lavarem as mãos. Com as dificuldades da pandemia, coloquei como meta até dezembro do ano passado para entender se as coisas iriam melhorar, foi quando recebi o convite para o cargo que estou ocupando hoje junto à Prefeitura do Recife.
“Brinco que posso até ser o primeiro a ocupar esse lugar, mas não serei o último”, declara o jovem sobre ocupar o cargo de Secretário de Executivo de Juventude do Recife
AP: Com a vitória do prefeito João Campos (PSB-PE) surge o convite para assumir a Secretaria Executiva de Juventude em 2021. Dos nomes apresentados na formação das equipes da nova gestão, com disparidade racial evidente, você foi um dos poucos negros a ocupar uma vaga no secretariado. Em algum momento, isso te gerou um estranhamento ou te preocupou sobre como se daria a sua atuação?
Marcone: Não. Entendi que pessoas como eu precisam estar nesse lugar para que a gente faça política pública entendendo os desafios de viver em vulnerabilidade de verdade. Sempre gosto de pontuar que não tenho sobrenome, histórico com a política eleitoral, mas tenho compromisso com a juventude. Eu, enquanto jovem, que fiz a minha trajetória até aqui, preciso cuidar de mim primeiro para depois tentar ajudar alguém, acho que fala muito sobre isso. Esse lugar, para mim, é muito importante e fiquei feliz com o convite do gestor pela sensibilidade de entender que essa política precisa ser feita por jovens, que entendem os desafios do nosso dia a dia, de fato.
AP: Durante esses oito meses ocupando o cargo, houve receio pela dificuldade de apresentar problemas ou propostas que envolvem as interseccionalidades da juventude para o sistema municipal?
Marcone: Acredito que parte do entendimento de precisar estar onde estou. Passei por cima de qualquer aflição que fosse aparecer após assumir esse compromisso. Estar aqui é a, pequenos passos, ir mudando. Eu brinco que posso até ser o primeiro a ocupar esse lugar, mas não serei o último. Estando nesse lugar, sei que estou abrindo porta para que outros jovens vejam que é possível também. Todos os outros gestores têm abraçado nossas questões e, com isso, eu preciso agradecer. Reconhecem que as políticas públicas precisam ser mais diversas e contemplar recortes sociais. É preciso ter uma compreensão que é uma política feita por nós que precisa ser feita a longo prazo. À medida que vamos dialogando, de forma estratégica, e fazendo pequenas motivações, vamos abrindo portas. Particularmente, não trabalho com o discurso do enfrentamento e, sim, convido para trabalhar junto. É desafiador, mas temos conseguido avançar.
AP: E essa percepção que você traz de atender as demandas da juventude levando em consideração as especificidades e necessidades de cada um(a), reflete na sua equipe de trabalho atual?
Marcone: Sim. Sempre quis ter uma equipe de trabalho que fosse inclusiva, diversa e que pudesse entender essa interseccionalidade. A secretaria, hoje, é composta por um equipe que é majoritariamente formada por mulheres, mais de 50% de pessoas pretas e, nos cargos de gestão, que são quatro, o meu, o da gerência e dois gestores de articulação, a gente tem paridade gênero, racial e de orientação sexual. Começo por aqui e sei que, aos poucos, posso ser referência para outras frentes de gestão.
AP: Diante das problemáticas presentes na cidade e trazidas para a gestão da secretaria, qual é a principal questão a ser trabalhada pelos próximos quatro anos?
Marcone: Sem dúvidas, as problemáticas envolvendo a segurança pública e como isso chega para a juventude. Em breve, inclusive, estamos promovendo atividades de formação dos gestores dos Compaz [Centro Comunitário da Paz] e da Guarda Municipal do Recife entendendo as formas de abordagem e olhar desses profissionais sob os demarcadores étnico-raciais que são lidos de formas deturpadas pelo sistema. Um trabalho que deve ser lido como uma prevenção e resguardo dos direitos desses jovens, com atividades de formação, qualificação, garantindo que esses jovens acessem o mercado de trabalho, acessem a cidade de forma digna, ocupar o Recife Antigo, sem ser abordado de formas violentas. Se a gente consegue garantir esses acessos, a gente não precisa se preocupar tanto com o restante. Recife é a cidade mais desigual do país e sabemos que, o maior índice de homicídio na cidade é para com a juventude negra. Esse recorte nos preocupa também enquanto gestão, pelo jovem negro ser visto comumente apenas em dois cenários: como o violentado ou como o promotor da violência. No nosso ponto de vista, ele é violentado duas vezes, pois se eu garanto políticas que retiram o jovem das vulnerabilidades, estou tirando ele dessa promoção da violência.
AP: A luta pelos direitos da juventude em vulnerabilidade social te levou a ocupar um cargo público. É do teu interesse seguir carreira política dentro de gestões municipais ou estaduais ou continuar na articulação in loco, como a realizada com o Coque Conecta?
Marcone: Digo para todos que estou secretário. Assumi um compromisso com o prefeito e com a juventude da cidade pelos próximos anos. Não sei o que vai ser da minha trajetória depois daqui, mas espero plantar sementes para que possam ser colhidos bons frutos, sabe? Nesse tempo, torço para que a gente consiga criar meios e caminhos que sejam mais fáceis das construções acontecerem dentro dessa política de juventude. Já sou representante do território que pertenço, dos jovens que estão lá. Por isso, ocupando esse cargo ou em qualquer outro lugar que eu esteja, o objetivo vai ser sempre levar as pautas da juventude para frente com estratégia. Se eu conseguir mudar um pouco a estrutura, estou dando continuidade a um movimento de pessoas que vieram antes de mim e oportunizando espaço para as que estão por vir.
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