Mandata da recém deputada iniciou os trabalhos na Alesp no tom de “reintegração de posse”
Texto / Simone Freire
Imagem / Roger Cipó
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Não é um dia comum. Os livros no futuro irão documentar sobre a importância histórica deste dia 15 de março de 2019 para toda comunidade negra de São Paulo e país afora.
Negra, mulher, trans, nordestina, Erica Malunguinho é a primeira deputada negra e trans eleita no Brasil. Foram mais de 55 mil votos. Mas, muito além disso, a recém deputada se soma a Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Benedita da Silva, Leci Brandão, enfim, ao time de negros e negras que ousaram subverter as estruturas do parlamento brasileiro por uma sociedade mais justa.
Algumas horas antes de se deslocar até a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), ainda nos preparativos, a equipe do Alma Preta é recebida por Érica em sua casa. O clima por lá é de agitação: entrada e saída de assessores, amigos e familiares na contenção ajudando nos mínimos detalhes.
Érica está sorridente, o tom é calmo, parece que estamos em um dia qualquer. Para quem acompanha sua trajetória um pouco de perto já está acostumado ao jeito imponente, fala gentil e mansa, mas, ao mesmo tempo intensa.
Embora mantenha a aparência tranquila, os olhos marejados da recém deputada não escondem a emoção logo após a primeira pergunta: “Durante sua campanha vocês [da mandata] usaram muito a frase da Lélia Gonzalez, que diz que a ‘história será contada em primeira pessoa’. Então, qual é a história que a Érica Malunguinho quer contar para o país?”.
Foto: Heitor Salatiel
“A história que a gente quer contar não é nova, já está acontecida muito antes da primeira diáspora, ela remonta a ancestralidade africana e indígena. E é uma história também que diz respeito às lutas e resistências. Isso significa que entendemos como fomos destituídos dos nossos processos de vida a partir da invasão colonial. Então é uma história que será contada pensando em um novo projeto de sociedade. Tivemos uma história que nos colocou dentro do processo de escravização, mas isso não nos deslegitima da participação e de dizer o que será o amanhã”, disse.
Alesp lotada
Na Assembleia, diversas pessoas começaram a chegar para acompanhar a cerimônia de posse. Transitando pelos corredores, Milton Barbosa, o Miltão, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU), comemorou a eleição de Malunguinho, da continuidade do mandato de Leci Brandão (PC do B), além de torcer pela possível posse de Douglas Belchior, atualmente suplente na Câmara federal.
“Hoje é um dia de fundamental importância. Estou aqui com a minha camiseta dos 40 anos do MNU com a certeza de que vamos conseguir ser vitoriosos”, disse.
Se apresentando como uma mulher negra que existe e resiste, Maria Helena, embaixatriz do samba em São Paulo, também esteve presente. Ela também celebrou as candidaturas negras de Leci e Érica, além da de Mónica Seixas que atuará com um mandato coletivo pela Bancada Ativista.
Foto: Roger Cipó
“Caminhando aqui pelos corredores a gente não se reconhece, não se vê, além das pessoas nos olharem diferente. Eu acredito que é novo para a sociedade ver que a gente está furando este bloqueio. Somos poucos ainda, temos muito avançar, mas cada um de nós que vence essa barreira nós comemoramos”, disse.
Os tambores ouvidos a metros de distância de dentro da Alesp anunciaram a chegada da nova deputada. Acompanhada da mãe e de familiares, Érica chegou rodeada pelo cortejo do Bloco Afro-afirmativo Ilú Inã.
Enquanto isso, diversas pessoas e militantes do movimento negro adentraram a Alesp para acompanhar a sessão. No hall do prédio onde foram disponibilizados os telões grupos da direita e progressistas entoavam palavras de ordem.
No plenário, o clima foi semelhante e o primeiro dia de trabalhos dos deputados estaduais resumiu o que poderá ser a rotina da casa legisladora do estado. A sessão foi tumultuada com discussões entre deputados do partido PSL e a mesa diretora e a suspensão dos trabalhos por alguns minutos. De um lado deputados da direita e, de outro, deputados progressistas que, vez ou outra, questionavam os presentes com a pergunta que dura mais de um ano: “Quem matou Marielle?”.
Contragolpe Black Trans Paranauê
Foto: Heitor Salatiel.
Além da primeira deputada negra trans, a composição da Assembleia paulista tem outras particularidades. Este será o primeiro ano em que o PSL terá representatividade na instituição. Serão 15 deputados, constituindo assim, a maior bancada da Casa. Entre eles está Janaína Paschoal, cujo discurso conservador lhe rendeu mais de 2 milhões de votos. Soma-se a isso a entrada de novos nove deputados de origem militar ou de segurança pública, que pode aumentar a chamada “bancada da bala”.
Dentro deste contexto, pensando em sua atuação, Érica é enfática ao dizer que a composição da Casa não representa nenhuma novidade na conjuntura política do país. Segundo ela, o conservadorismo não brotou de agora e, embora o partido seja novo, seu discurso é conhecido a muito tempo.
“O fato é que nós temos um Estado e um poder político institucional que não tem compromisso com o rompimento das violências e das desigualdades. O que nós vamos fazer não diz respeito a partir de agora, diz respeito a pensar a desconstrução dessas violências estruturais que estão desde muito antes”, pontuou.
Para cumprir a missão, a recém deputada eleita levará para dentro da Alesp um time de assessores de mulheres negras e homens negros que tem o intuito de constituir o que conceituaram como “contragolpe golpe black trans paranauê”.
“Esse é um momento histórico por muitos motivos. Não só porque toma posse a primeira deputada trans do estado e do Brasil, por um mandato dos movimentos negros. Mas também por todos os outros corpos e inteligências que vêm junto dela, a começar por nossa equipe toda preta, enquanto na maioria dos gabinetes não há sequer uma pessoa negra, como se não tivéssemos as qualificações necessárias para o exercício da política”, conta Sandra Silva, chefe de gabinete da Mandata Quilombo.