No período, houve dezenas de casos sobre pessoas anônimas torturadas e mortas sem que suas histórias ganhassem visibilidade. Para pesquisadora, nem a Comissão da Verdade deu conta dos prejuízos causados pelo regime aos negros brasileiros
Texto / Lucas Veloso | Edição / Pedro Borges | Imagem / Agência Senado
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Nesta segunda-feira (29), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “um dia” contará ao presidente da Ordem do Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, como o pai do jurista desapareceu na ditadura militar, caso a informação interesse ao filho.
“Se o presidente da OAB quiser saber como o pai desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, afirmou.
Fernando Augusto de Santa Cruz fez parte do movimento estudantil e da Ação Popular (AP), organização de esquerda contrária ao regime. Santa Cruz desapareceu em um encontro que teria no Rio de Janeiro, em 1974, com um colega militante da mesma organização.
População negra em 64
No Brasil, a ditadura militar ocorreu entre os anos de 1964 e 1985. Com a tese de evitar a realização de uma ditadura comunista no país, as Forças Armadas brasileiras realizaram um golpe de Estado em 31 de março de 1964, que tirou do poder o presidente João Goulart, o Jango, como era conhecido.
O regime causou grande impacto na população negra. Entre as consequências, aconteceu a desarticulação do ativismo negro organizado existente desde o segundo pós-guerra.
Houve também a retirada da pergunta sobre cor no censo de 1970, o que levou à redução de informações sobre a realidade social, educacional, econômica dos negros durante aquela década. No âmbito da cultura, os tradicionais bailes blacks eram vigiados e sofriam batidas policiais frequentes.
A respeito das falas de Bolsonaro, a professora de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Núcleo Guerreiro Ramos, Flávia Rios acredita que o presidente assumiu a banalização da morte, desrespeitando o direito à memória das famílias e vítimas.
“Não é a primeira vez que ele se manifesta de maneira desumana e violenta com relação às pessoas desaparecidas ou mortas, causando indignação, não só aos parentes, mas também indignação nos brasileiros com o mínimo de dignidade e respeito”, analisa.
“Além do espanto, que não é tanto, ele falava essas coisas antes de assumir o cargo, pensa assim, de maneira violenta sobre as mortes nos presídios brasileiros e assassinatos no país. É a banalidade do mal”, define a pesquisadora.
Mortes na ditadura
De acordo com o livro Direito à Memória e à Verdade, 475 militantes morreram sob tortura ou tiveram suas mortes simuladas como suicídios e atropelamentos, ou tiveram suas prisões não assumidas e seus restos mortais desaparecidos.
O número pode ser maior, devido a extensão territorial do Brasil, a ausência de compilação estatística rigorosa, o número de pedidos de indenização, e a recente inclusão de militantes, camponeses e operários na lista de desaparecidos e aqueles cujos familiares não deram queixa.
Entre homens e mulheres negras, há diversos casos de assassinatos e de desaparecimentos dos militantes que estavam na luta armada ou eram vinculados com organizações revolucionárias, como Carlos Marighella (1911-1969), Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão (1938-1974), Elenira Rezende de Souza, Nazareth (1944-1972), vice-presidente da UNE, Alceri Maria Gomes da Silva (1943-1970) e Ieda Santos Delgado (1945-1974).
Comissão da Verdade
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 pela Lei 12528/2011, e instituída no dia 16 de maio de 2012, teve como objetivo investigar os crimes cometidos contra os direitos humanos no Brasil. Apesar de sua importância, Flávia aponta que o grupo não teve olhar dedicado à questão racial do país.
“Note a falta de especialistas investigando e produzindo relatórios sobre a temática, como houve a produção de outros grupos sociais, como camponeses e sindicalistas”, comenta.
“É possível escolher algumas pessoas negras, e buscar suas histórias, mas aí depende de cada pesquisador interessado. Não há uma compilação do tema racial na ditadura”, explica Flávia.