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Matilde Ribeiro: os marcos, desafios e derrotas da Seppir no governo Lula

19 de fevereiro de 2020

Ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial concedeu entrevista exclusiva ao Alma Preta

Texto / Simone Freire |  Imagem, edição e entrevista / Pedro Borges

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Sua trajetória tem marca registrada na luta pela igualdade racial no Brasil. De São Paulo, Matilde Ribeiro, ganhou notoriedade nacional conforme os passos da luta antirracista a colocaram, entre os anos de 2003 e 2008, dentro do Planalto no cargo de ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Graduada em Serviço Social e mestra em Psicologia Social, Ribeiro atuou em diversas frentes do movimento negro como na fundação da Soweto Organização Negra e no Centro de Estudos sobre Trabalho e Desigualdades (CEERT), além do Fórum de Mulheres Paulistas e o Movimento Nacional de Mulheres Negras.

Em entrevista ao Alma Preta, ela falou sobre sua atuação à frente da pasta, das mudanças do comportamento do partido em relação à pauta racial, bem como os desafios e retrocessos que os anos seguintes experimentaram e experimentam em relação à população negra do país.

Um novo ciclo no partido

No resgate do período em que Lula chegava ao poder, a ex-ministra recorda com detalhes os bastidores da conquista. Para ela, a eleição de 2002 apresentou um diferencial pois houve representação do movimento negro durante a campanha do Partido dos Trabalhadores (PT).

Junto ao grupo que coordenava a disputa eleitoral foi criado o programa Brasil Sem Racismo, que fazia parte do conjunto de publicações que culminaram no programa de governo do então candidato Lula.

“Esse momento do ponto de vista de política governamental ligada a setores de esquerda, ao PT, ao movimento dos partidos de esquerda, foi um divisor de águas. Por quê? Acompanhando antes eu verifiquei que dentro das negociações para as candidaturas dentro do PT, a questão racial pouco aparecia. E sempre foi muito difícil trazer essa temática como parte da agenda”, lembra Ribeiro.

Institucionalmente, até aquele momento, a Fundação Palmares, fundada em 1988, era o único órgão governamental que tratava exclusivamente da questão racial no país. “A Fundação Cultural Palmares foi uma conquista, mas ao mesmo tempo muito questionável, porque reduzia a visão do governo da época da questão à cultura e nós sabemos que o buraco é muito mais embaixo”, explica.

A Seppir

Fruto das discussões do plano de governo de Lula, a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi uma demanda exigida pelo movimento negro. No entanto, lembra a ex-ministra, a criação da pasta foi a primeira disputa do movimento assim que Lula tomou posse. Isso porque havia uma promessa de que a Seppir fosse criada assim que o governo assumisse a Presidência.

Com a justificativa de que a proposta da pasta não estava madura, ela só veio a ser concretizada em março de 2003. A Seppir se constituiu como um órgão de assessoramento à presidência e, como as outras secretarias especiais, tinha status de ministério.

“A terminologia Promoção da Igualdade Racial nos trouxe a responsabilidade de trazer como foco a questão racial negra, mas dialogar com indígenas, ciganos, palestinos, judeus, com todos os grupos vítimas de discriminações históricas, do ponto de vista racial ou étnico”, explica Ribeiro.

Internacional

A Conferência de Durban, a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na África do Sul, em 2001, foi um marco na política racial implementada durante a gestão de Lula e Matilde. O documento da Conferência serviu como embasamento das políticas de governo, influenciando, inclusive, o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que passou a utilizar o critério de autodeclaração de Cor/Raça em suas entrevistas.

Assim que assumiu o governo, a gestão petista do governo federal também iniciou uma aproximação maior com os países do continente africano. Antes de 2003, o Brasil tinha 18 embaixadas e um consulado no território africano. Dez anos mais tarde, o país havia ampliado esse número para 37 embaixadas e dois consulados.

Na esfera diplomática, Lula fez 33 viagens ao continente, Celso Amorim, então Ministro das Relações Exteriores, fez 67 visitas oficiais a 34 países africanos. O Brasil também recebeu 47 visitas de reis, presidentes e primeiros-ministros de 27 nações do continente. Além de acompanhar Lula em viagens, Ribeiro também fez diversas visitas institucionais para outros países conciliando agendas, inclusive, com Gilberto Gil, então ministro da Cultura.

Educação

Na educação, a adoção de cotas raciais, a mudança de perfil do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e o uso da nota para ingresso em universidades federais por meio do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), a criação do ProUni (Programa Universidade Para Todos) e o Fies (Programa de Financiamento Estudantil) tiveram – e têm – impactos positivos para toda população jovem e negra do país.

Em 2005, apenas 5,5% dos jovens desse grupo racial com idade entre 18 e 24 anos estavam na universidade. Segundo o IBGE, em 2015, este percentual subiu para 12,8%. Para Ribeiro, o governo Lula não só mudou a fotografia das universidades públicas, mas também das privadas. “A universidade não pode ser privilégio de poucos”, diz.

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Matilde Ribeiro, ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no governo Lula, durante entrevista concedida ao Alma Preta. (Foto: Pedro Borges)

Desafios

No período em que o ex-presidente Lula esteve à frente do país – oito anos encerrados em dezembro de 2010 -, a pobreza no país foi reduzida em 50,64%, segundo pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir de dados do IBGE.

Mesmo com muita coisa para se comemorar, de um panorama geral, ela diz que é importante reconhecer que o governo Lula não foi uma revolução. “É governo, e tem limites”, diz. “Eu evito de fazer análises muito apaixonadas, de que foi a revolução. Não foi a revolução, deixou muito a desejar, mas apresenta diferenciais. Eu avalio que nós precisamos fazer análises até para poder refletir o que está significando isso hoje”, diz.

A Seppir, embora com status de ministério, nunca teve um orçamento próprio e sempre apresentou dificuldades para se gerir. Para ela, uma das ações que travavam a pasta era o fato de não conseguir trabalhar a questão da igualdade racial para negros com mais autonomia. “Não precisava de uma secretaria que por dentro dela passasse todas as questões de indígenas, ciganos, palestinos, judeus, ribeirinhos. Tudo caia dentro da Seppir porque a dimensão da questão racial é multifacetada”, explica.

Ela explica que tinha plena convicção de que o governo Lula não iria conseguir resolver todas as questões sociais de 500 anos em cinco ou quatro. Em tom de autocrítica, ela avalia que a questão do acesso ao trabalho, do ponto de vista racial, não foi muito trabalhada, embora a questão do trabalho doméstico tenha tido avanços com a ampliação do direito ao FGTS e férias e, posteriormente, com a implementação da PEC das Domésticas.

“Vivendo essa realidade ou construção, no tempo histórico em que eu vivi, nós fomos até o topo. Tem hora que chega no limite, que não tem mais o que negociar. E muitas vezes o resultado não é esperado”, conta. “Mas eu não tenho arrependimento nenhum, porque foi o possível”, frisa.

Politicamente, Ribeiro é enfática ao diferenciar a sua atuação na militância construindo reivindicações e sua atuação no Planalto. “Como a gente costuma dizer, [na militância] a gente visualiza a vidraça e taca pedra. Só que quando você está do outro lado, você tem que mensurar o tamanho da reivindicação, se cabe naquele formato de governo, quanto custa, a quem atende. O planejamento de uma ação de governo tem um nível de detalhe que só vivendo para aprender. Não tem escola, não tem faculdade ou livro que ensine”, diz.

A Seppir pós Lula e Matilde

Em 2008, ano em que saiu da Seppir, Ribeiro se fez o questionamento se era possível afirmar que houve institucionalização das políticas de igualdade racial no Brasil. Procurando respostas, conversou, como ela diz, com os “cabeções da política”, entre eles, Kabenguele Munanga (USP), Cida Bento (CEERT), Luciana Jacu (IPEA) e o Silvio Albuquerque (Ministério das Relações Exteriores). A resposta encontrada foi positiva, havia institucionalização.

Mas na sua avaliação dos dias de hoje, com o governo de Jair Bolsonaro à frente da Presidência da República, Ribeiro lamenta que as coisas tenham mudado. “Só que passaram 10 ou 12 anos e eu me faço a pergunta de novo. Cadê a política institucionalizada? Deixou de existir! A mesma força da lei que faz existir, faz deixar de existir”. lamenta. “Quando nós falamos dos retrocessos do ponto de vista das políticas públicas, de desmontes, eles são reais. Por exemplo, a Seppir deixou de existir”, lamenta.

No entanto, a ex-ministra ainda acredita que todo esforço valeu a pena, tem dado e dará bons frutos. “Todo o retrocesso pode acontecer, mas fica uma chama viva, de que ‘igual ao que foi antes não será mais’. Eu sou otimista, acredito nisso. Eu acho que ainda vamos viver governos democráticos. Nós não sabemos quanto cada um de nós vive, mas a sociedade irá viver”, afirma.

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